segunda-feira, novembro 28, 2022

A Rondónia, a estátua e a memória


Há dias, no restaurante “Solar dos Duques”, um empregado brasileiro disse-me que era da Rondónia (em português do Brasil, da Rondônia). Vir desses confins para Portugal é obra!

Nem lhe perguntei se ouvira falar no Forte do Príncipe da Beira, uma fabulosa construção que os portugueses por lá deixaram, construída no final século XVIII, na fronteira da Rondónia com a Bolívia, num sítio remoto, onde só consegui chegar com a ajuda da Força Aérea brasileira. O nome do Estado homenageia o marechal Rondon, que, em 1911, descobriu o forte, o qual, por muito tempo, havia estado coberto pela forte vegetação amazónica.

Este encontro lembrou-me a minha ida a Porto Velho, capital da Rondónia, há 14 anos. Decidi incluir naquela visita, que depois prolonguei para o Acre, um jantar com as pessoas que, por ali, tinham ligações a Portugal, luso-brasileiros descendentes de portugueses, orgulhosos cidadãos do Brasil, ainda ligados às memórias da “terrinha” (como por lá se diz que os portugueses dizem) dos seus pais.

Quis então saber se não haveria, a viver na Rondónia, nenhum português, nascido em Portugal. Havia um, fui informado. E disseram-me que esse cidadão, com os seus frágeis 93 anos, que lhe não lhe iriam permitir ficar para jantar, tinha manifestado à família interesse em conhecer “o seu embaixador”.

O senhor estava emocionado. E eu, que sou de emoções fáceis, também estava. E o encontro tornou-se ainda mais comovente quando constatei que ele nascera … em Vila Real! Esse meu conterrâneo chegara ao Brasil em 1925, com 20 anos - e nunca mais tinha voltado a Portugal. Não era oriundo exatamente na cidade de Vila Real, nascera numa aldeia próxima, mas lembrava-se bem de ali ter apanhado o comboio, com bilhete só de ida, que o havia de conduzir ao Brasil, como destino final de vida.

Na breve conversa, curioso, perguntei-lhe sobre aquilo de que ainda se lembrava, nas suas idas a Vila Real. De muito pouco, disse-me: apenas “do rio lá no fundo”, das muitas igrejas e do “campo”, um grande terreiro, no meio da cidade. “Deve ser o Campo do Tabolado, hoje a avenida Carvalho Araújo. Recorda-se ainda da grande estátua que existe a meio da avenida?” Não se recordava.

Fiquei com o episódio na cabeça, por uns anos. E a ele associei sempre a minha íntima estranheza pelo facto do meu conterrâneo não identificar aquilo que é um marco identificativo da nossa cidade comum. Até que, um dia, o mistério desfez-se: a estátua a Carvalho Araújo, o heróico marinheiro da Grande Guerra, só foi inaugurada em 1931 e o nosso homem passara pela cidade, onde nunca regressou, em 1925. Imagino que o cavalheiro, que, se fosse vivo, teria hoje uns impossíveis 117 anos, se terá questionado sobre a fiabilidade da sua memória. Ou não.

O que um encontro com um rondoniense, num restaurante de Campo de Ourique, me trouxe à memória! Mas, pensando bem, vir da Rondónia para Lisboa, nos dias de hoje, não é nada comparado com ter mudado de vida, há mais de um século, indo de Vila Real para aquelas remotas paragens.

10 comentários:

Luís Lavoura disse...

Muitos tios meu (irmãos do meu avô paterno) emigraram para o Brasil, e o meu pai não sabia o que foi feito deles, por lá terão ficado.
O meu avô também para lá foi, em 1924, mas voltou em 1946,
quando o seu filho mais novo, que ele tinha deixado em Portugal com a mãe, morreu num lamentável acidente com eletricidade.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Bela história!
Há um rapaz que tem um canal no YouTube que também veio de Ji-Paraná, veio para cá há 5 anos com a esposa, que estava grávida, tendo o menino nascido em Cascais.

Anónimo disse...

Pergunto-quantas pessoa haverá que não sejam de Vila Real
Fernando Neves

Retornado disse...

Em 1925 viajava-se em Navios a vapor.
O Titanic tinha 29 caldeiras a vapor.
E do Porto ou Lisboa para as Américas eram em geral Navios ingleses a vapor.
O passageiro português em geral viajava de porão.
Para o Brasil seriam 2 meses aproximadamente.
Minhotos, beirões Trás-os-Montes e Alto Douro, foram clientes habituais dessas companhias de navegação a vapor.
Viajar de porão uma semana para Angola, para a Guerra do Ultramar era um pesadelo terrível.
Falar sem intérprete na Rondónia, é compensador?
Sei não!!!

Carlos Antunes disse...

Caro Embaixador
A propósito da sua menção ao “Forte do Príncipe da Beira, uma fabulosa construção que os portugueses por lá deixaram, construída no final século XVIII, na fronteira da Rondónia com a Bolívia, num sítio remoto”, recordo as palavras de um General brasileiro dirigidas ao seu colega, então Embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Ribeiro Telles:
«Embaixador, nós temos agora um estudo muito sofisticado sobre a segurança e as vulnerabilidades do Brasil em relação à ameaça externa e você sabe que os pontos mais sensíveis, mais vulneráveis que encontramos, foram exactamente os mesmos onde os portugueses há quatro séculos construíram os fortes?».
Assombrosa o que revela esta declaração do general brasileiro!
Quanto mais leio sobre os Descobrimentos e a expansão portuguesa dos sécs. XV e XVI – e nos tempos em que falar dos Descobrimentos ou da colonização portuguesa é razão suficiente para eu ser considerado como um “esclavagista-colonialista” – mais me convenço que foi o único período da nossa História em que os políticos portugueses tiveram a ousadia e a grandeza de definir e levar a cabo uma estratégia de desenvolvimento para Portugal, associando políticas, conhecimento (Escola de Sagres), estratégia militar, com o objectivo de ultrapassar a pequena dimensão do Portugal de então.
Cordiais saudações

Portugalredecouvertes disse...

Muito histórico Sr. Embaixador,
então procurei o general Rondon (1865-1958)
"um conhecido sertanista (explorador do interior do Brasil)"
tendo nascido Cândido Mariano da Silva (o sobrenome Rondon foi acrescentado posteriormente )
" Seu pai, Cândido Mariano da Silva, descendia de portugueses e espanhóis miscigenados com indígenas guanás.." faleceu antes do menino nascer, e sua mãe "Claudina Freitas Evangelista, era descendente de índios terenas e bororos.." faleceu quando o menino tinha dois anos de idade
As pessoas viviam com muitas dificuldades também nesses lugares longínquos..
O menino foi criado pelo avô, José Mariano da Silva, e, após a morte deste, por um tio paterno, Manuel Rodrigues da Silva Rondon, que havia modificado o próprio nome, adicionando o sobrenome de sua mãe, Maria Rosa da Silva Rondon (a avó de Cândido), para não ser confundido com um homônimo "cujas falcatruas andavam pelos jornais" .. em homenagem a esse tio, Cândido Mariano acrescentaria o Rondon ao próprio nome...
De ideias abolicionistas e republicanas, Rondon participou diretamente com Benjamim Constant das articulações do golpe republicano que derrubou Dom Pedro II, o último imperador do Brasil...

"Benjamin Constant Botelho de Magalhães (Niterói, 18 de outubro de 1836 – Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1891) era filho de Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães, no passado um Tenente do Corpo de Artilharia da Marinha Portuguesa, era professor. Seu pai veio para o Brasil no início de 1822.."
Portugueses em destaque histórico

Luís Lavoura disse...

Carlos Antunes,

e veja a inteligência dos portugueses do século 16, que construíram a sua capital na Índia em Goa, precisamente o sítio de toda a costa ocidental indiana que tem as melhores praias - que ainda hoje fazem as delícias de centenas de milhares de turistas, indianos e estrangeiros.

Aprecie ainda a sagacidade de gerações de portugueses que transformaram Goa no sítio mais rico de toda a Índia. Ainda hoje Goa tem um PIB per capita superior ao de todos os outros estados da Índia - nalguns casos por uma ordem de grandeza.

Flor disse...

Sr. Embaixador as conversas são como as cerejas e quando puxamos pela memória lembramo-nos de coisas passadas que caem em "catadupa". Gostei muito de ler.

Anónimo disse...

Eu emigrei também com os meus pais para o Brasil mas nos anos 50; ainda tenho um exemplar da revista O Cruzeiro dessa época com uma extensa reportagem sobre o Marechal Rondon, cuja divisa era "Morrer, se preciso for, matar nunca".Albertino Ferreira

Carlos Antunes disse...

Luís Lavoura
Tem toda a razão.
Depois de uma viagem de 2 semanas pela Índia, aterrar em GOA proveniente de Bombaím, foi como chegar a um oásis vindo de um deserto da miséria, sujidade e pedinchice reinante por toda a Índia.
Não certamente por acaso, aos fins-de-semana, o hotel onde me encontrava hospedado – de resto como os restantes resort´s de GOA – foi inundado por indianos de fora de GOA, à procura das excelentes praias, o jogo que é permitido nos casinos dos hotéis, e da excelente gastronomia goesa.
Não sei, se foi como diz, pela influência portuguesa por mais de 400 anos, mas que GOA é um verdadeiro oásis, não tenho a menor dúvida.
Cordiais saudações

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...