Carlos Galvão de Melo faria 100 anos, no dia 4 de agosto. Muita gente já não se recordará dele, mas eu lembraria que foi um coronel da Força Aérea que os capitães foram buscar à reserva para integrar a Junta de Salvação Nacional, no dia 25 de abril de 1974, promovendo-o a general.
Viria a revelar-se o mais conservador de todos os membros da Junta, Spínola incluído. Foi afastado daquele órgão depois dos acontecimentos de 28 de setembro de 1974. Anti-comunista assumido, veio a ser deputado pelo CDS e foi mesmo candidato à presidência da República.
Os seus discursos contra os comunistas, de que ficou marca um que fez em Rio Maior, no auge do “verão quente” de 1975, ficaram no património afetivo de uma certa direita portuguesa. A qual, seguramente, também se recordará dos “bodyguards” ciganos de que Galvão de Melo se rodeava nas suas campanhas políticas.
Foi no fundo da rampa que dava acesso à antiga RTP, para quem vinha da Alameda das Linhas de Torres, que me “encontrei” pela primeira vez com Galvão de Melo. Eu fazia parte da pequena força militar da EPAM, chefiada pelo tenente João Pinto Bessa, que ali aguardava a Junta de Salvação Nacional, ao fim do dia 25 de Abril.
Os elementos da Junta (salvo Diogo Neto, que estava em Moçambique) chegaram em vários carros (vinham da Pontinha, como a História depois nos ensinou), desembarcando junto à bomba de gasolina que ali existia. Só Spínola e Costa Gomes eram caras nossas conhecidas. Todos começaram a subir a rampa, a caminho do estúdio onde iriam fazer a célebre comunicação ao país, e nós, cumprindo instruções, procurámos evitar que fossem seguidos por outras pessoas, nomeadamente jornalistas, que também queriam ir para as instalações da RTP. Um cavalheiro de sobretudo claro, com ar descontraído, procurou então aproximar-se de Spínola. Barrei o seu andamento com a minha metralhadora. Ele sorriu, complacente, e disse: “Eu também sou membro da Junta”. Eu retribuí o sorriso, mas em amarelo…
Passaram pouco mais de dois meses e, por uma irónica coincidência, acabei por ir parar, como adjunto, ao gabinete de Galvão de Melo, aí destacado pela Comissão de Extinção da PIDE/DGS, que ele tinha sob a sua tutela. Nesse mês de julho de 1974, fui trabalhar para o Palácio da Cova da Moura (20 anos depois, iria conhecer bem melhor aquele palácio, noutras funções), pela mão de José Manuel Costa Neves, então major, hoje general da Força Aérea. E por ali fiquei, até que Galvão de Melo foi forçado a sair da Junta, no final de setembro.
Éramos muito poucas pessoas, no gabinete de Galvão de Melo: uma simpática, e que recordo como muito eficiente, secretária que ele tinha trazido da Petrofina, onde era presidente, Costa Neves e eu. A agenda de atividades e audiências de Galvão de Melo, contudo, escapava-nos quase por completo. O nosso quotidiano passou a estar cheio de questões ligadas à subsistência das famílias dos antigos agentes da PIDE detidos e à gestão dos problemas da respetiva Comissão de Extinção, com visitas regulares de Conceição Silva e Alfredo Caldeira, que dela eram responsáveis.
Para o escritório de Galvão de Melo, em frente àquele que eu partilhava com o José Manuel Costa Neves, viamos, dia após dia, rumar um mundo das pessoas que tinham ficado de cabeça perdida com o 25 de Abril. A “reação” ia passando por ali, mesmo ao nosso lado. Era uma diária romaria de roceiros santomenses em fúria, de latifundiários em desespero, de generais “com contas no cartório”, em vias de serem saneados, tentando ainda “deitar o barro à parede”, para tentar evitar o inevitável. Galvão de Melo era, na Junta, o grande “muro das lamentações” contra o novo estado de coisas. Mas nada disso transpirava para a nossa sala, onde vivíamos mergulhados em intendência. Como o tempo viria a provar, o escritório do general acabou por ser um dos locais onde foi preparada a frustrada manifestação da “maioria silenciosa”, em 28 de setembro.
Pessoalmente, Galvão de Melo era uma pessoa agradável e educada, sem ser excessivamente simpática. Tinha uma expressão enfática e um pouco gongórica na conversa, projetava a imagem de um ex-galã, de um ator “canastrão” de Hollywood. Desportista, não perdia os seus momentos lúdicos, do ténis à equitação. Era formal na atitude mas percebia-se que tinha um forte sentido político das coisas. O futuro, em que mostrou algumas ambições nesse domínio, viria a confirmar essa perceção.
Um dia, numa das raras conversas a dois que tivemos, no seu gabinete, disse-lhe que tinha ficado surpreendido pelo facto de Álvaro Cunhal o ter citado, anos antes, no livro “Rumo à Vitória”, a propósito de uma reclamação que ele proferira contra o estado das Forças Armadas, atitude que, aparentemente, tinha levado ao seu afastamento da Força Aérea. “ Ah! Você leu isso! Nem imagina a popularidade que essa frase me tem trazido!” E deu uma gargalhada.
Galvão de Melo morreu em 2008, com 86 anos.
2 comentários:
Quando foi da maioria silenciosa criaram-se barreiras às entradas de Lisboa, com jovens de calça â boca de sino, tacão de 5 cm. à moda, que fiscalizavam automóveis à procura de armas.
Diziam aos passageiros para saírem da viatura, espreitavam para dentro do carro, e mandavam seguir, simples e rápido.
Até que apareceu um motorista de um carro à entrada da ponte (ainda Salazar?)gritou com os jovens, e ensinou-lhe que uma vistoria à procura de armas não se fazia daquela maneira, e obrigou a rapaziada, sujar aquelas calcinhas e deitarem-se no chão e espreitar por baixo do carro, o que transformou um divertimento numa tremenda chatice, para os putos que borraram a fatiota domingueira, e para as pessoas que tinham pressa, e começaram a fazerem-se bichas de carros.
Afinal era um gozão reacionário aquele "instrutor de fiscais", que teve que arrancar a toda a velocidade quando a rapaziada o topou a rir-se da partida que lhes preparou.
Lembranças!
Senhor embaixador: e não nos disse nada dessa responsabilidade de Galvão de Melo sobre os processos do arquivo da PIDE...
MB
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