A tia Ângela não era minha tia. Percebo que, à partida, possam achar que só uma desesperante falta de assunto, na “silly season”, me leve a vir aqui falar de uma tia-avó da minha mulher. Admito que seja legítimo que pensem assim, mas só porque têm uma boa desculpa para isso: é que não conheceram a tia Ângela.
E que idade teria a tia Ângela quando eu a conheci? Pensando bem, não devia ser muito mais “nova” do que eu hoje sou. E, no entanto, a senhora, arreliada com eventos do seu matrimónio que não vêm aqui ao caso, tinha, ainda na casa dos seus sessenta, posto um ponto final num longo enlace matrimonial. Nada de especial? Experimentassem fazer isso numa então vila de província, nos anos 70 do século passado! O abalo que aquilo deve ter sido! Os diz-que-disse que não terá provocado! E, no entanto, ela não hesitou: “alea jacta est”.
Tenho para mim que a tia Ângela engraçava comigo, o sobrinho-neto “postiço”, desde que me conheceu, no dealbar do nosso casamento. Imagino que a isso não era indiferente o facto de eu tratar bem a sua sobrinha-neta “legal”.
Verdade seja que eu estava muito longe de ser o único usufrutuário do seu bondoso e permanente sorriso, da sua simpatia e disponibilidade, que sempre se espalhava como um bálsamo por toda a família. Mas reivindico para mim uma orgulhosa quota de responsabilidade nas gargalhadas com que pontuava as nossas divertidas trocas de graçolas.
Ela fingia que se chocava com alguns dos meus ditos mais bizarros, mas, no fundo, dela emanava sempre um registo positivo, de muito boa onda, sem arestas ou a menor acidez. Estar com a tia Ângela, numa viagem ou num restaurante, numa ida aos fados em Alfama ou numa conversa solta num jardim de casa, era um eterno seguro de boa disposição. Se alguma vez houve uma unanimidade na família, a tia Ângela foi sempre essa unanimidade.
Um dia, concretizámos uma ideia ha muito engendrada: levámos a tia Ângela para um tarde de chá com quatro tias, irmãs da minha avó materna, que viviam numa casa que, até ao seu fim, foi uma âncora afetiva da minha própria família. O encontro dessas senhoras, cuja idade acumulada se aproximava dos quatro séculos, foi um momento extraordinário. A tia Ângela e essas minhas tias, como sempre tinhamos pensado que aconteceria, deram-se lindamente, com um toque de cerimónia entre si a conferir uma graça mais ao ambiente. Ali, à volta de uma braseira, com chá, torradas e uma imensa onda de simpatia, registámos um momento para a vida.
Sem surpresas, a tia Ângela, politicamente, era bastante “reaça”, num tempo em que eu era um estouvado esquerdista. Se bem me recordo, sentia-se atraída pelo CDS, coisa comum na região onde vivia, nesses tempos imediatamente após as horas para ela inquietas de Abril. Eu “ameaçava” com imaginários cataclismos políticos, ela ria-se e não me levava a sério. E era ela quem tinha razão.
Hábil e rápida na feitura de renda, tarefa lúdica que lhe enchia as mãos e os dias da reforma de professora, prontificou-se uma vez, a sugestão minha, a executar uma espécie de cortina para uma janela, com a configuração do desenho da cabeça de Karl Marx. E a coisa só não foi avante porque fui incapaz de lhe fornecer a matriz em papel. Ainda bem que o não fiz: não sei bem onde hoje colocaria essa cortina, sem provocar alguns chiliques em alguma da minha vizinhança na Lapa.
A tia Ângela já se foi desta vida há muitos anos. Mas por que será que, sempre que dela nos recordamos, nos sai, a todos os que a conhecemos, um sereno sorriso? Haverá melhor saudade?
5 comentários:
Também tive a grande sorte de ter um par de tias cuja recordação me enche o coração de ternura.
João Vieira
Não há melhor saudade nem melhor legado.
Também eu sorri ao ler este texto pelas memórias que me suscitou.
Que felizes nos sentimos com estas e outras memórias de antanho.
Como sempre um belíssimo texto. Adoro, porque não tenho um passado com memórias como estás.
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Obrigada pela partilha. Boas férias Sr. Embaixador
Maria Isabel
eu tambem tive a sorte de ter tias ao genero da tia Angela. Mas tambem tive a pouca sorte de ter 2 tias ... ui!
maitemachado59
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