Fechados em casa, muito dependentes daquilo que nos chega, estamos, mais do que nunca, reféns da palavra dos outros - e nesta incluo, claro, as imagens, porque elas também nos “dizem” coisas.
Não sendo, por estes dias, testemunhas diretas do escasso quotidiano que se vive lá fora, recebemo-lo através de mediadores, seja aquilo que a internet nos traz, bastante a televisão, alguma coisa a rádio, cada vez menos a informação escrita – e isso dá-nos já alguns sinais para o futuro.
Cada um de nós seleciona, dessa avalanche de informações que chegam, dos números e das “curvas”, das previsões e das opiniões, umas mais “achistas”, outras mais científicas, aquilo que mais diz às suas preocupações. Alguns passam os dias a divulgar o que acham de relevante, outros, como é o meu caso, tentam blindar-se do “diário do vírus”. E a fugir da especulação, do diz-que-disse, do alarmismo tremendista, do rumorismo conspiratório.
Muitos, com forte razão, concentram atenções nos graves efeitos económicos que já se detetam. Porque têm empregos e famílias a sustentar. Ninguém, por ora, tem dados seguros, salvo a certeza de que o choque vai ser imenso. E que será assimétrico nos efeitos sobre os vários setores, cuja capacidade de reabsorção será muito variável. E, no nosso caso, como economia muito aberta que somos, com os nossos parceiros em crise, vamos ter a nossa crise e vamos importar a dos outros.
Porque a vida não para, muitos procuram continuar a trabalhar, embora seja necessário assumir uma realidade: salvo em algumas profissões, já bastante aculturadas à digitalização, é uma ilusão pensar-se que, de um dia para o outro, se transita de um escritório onde estão os dossiês, as notas e os papéis, para um idílico teletrabalho. As coisas não são assim. Nem a vida das casas de muitos é passível de uma reconversão eficaz, por razões óbvias. A própria gestão do tempo é difícil de se fazer. Passar do “from-nine-to-five” para um ambiente doméstico pode ser muito complexo.
E há ainda a nova realidade dos imensos telefonemas. Nestes dias, falamos muito com a família, com os amigos, até com simples conhecidos. As conversas, em geral monotemáticas, são até bastante mais longas do que habitual, no pressuposto implícito de que o nosso interlocutor tem, para nós, todo o tempo do mundo. E vice-versa.
Muitos de nós ainda não reorganizámos o nosso quotidiano e, pelo que às vezes vejo ser a minha própria reação, parto do princípio de que estamos todos um pouco em férias, ligando aos outros pelo telefone a toda a hora, poupado talvez o tempo das refeições. Na verdade, ninguém pode hoje dizer que não atendeu um telefonema porque não estava em casa, mas é legítimo que as pessoas não estejam disponíveis para receber sempre chamadas. Tem de ser criado um “protocolo” informal novo para esta situação inédita, porque, se perdemos momentaneamente a liberdade de movimentos, isso não implica que percamos o direito à nossa privacidade.
Há dias, um amigo telefonou-me: “Mandei-te um email há meia hora e ainda não respondeste!”. O remoque era curioso. Como eu tinha colocado, nesse período, algo numa rede social, ele partia do princípio que eu estava em frente ao computador, isto é, permanentemente atento à caixa de entrada dos emails. E ao não lhe ter respondido de imediato, isso significava, aos seus olhos, colocar essa sua mensagem num grau de prioridade inferior à graçola que eu me divertira a escrever. E se eu estivesse a ler um livro ou uma interrupção me perturbasse a sequência de um filme?
Nada do que acabo de dizer atenua a importância do ato de indispensável simpatia que significa, nos dias que correm, falarmos com amigos a quem, em regra, apenas ligamos nos aniversários ou pelo Natal. Sabe bem ouvir quem raramente ouvimos, reatar amizades a que o tempo diluiu a densidade do contacto pessoal.
Nestes tempos cinzentos, é precisamente a riqueza das relações pessoais que nos pode ajudar a libertar de uma nefasta cultura de ansiedade, que se torna vital combater.
1 comentário:
Vai haver muita graça e muita desgraça.
Quem está ou fica sem emprego, que está ou fica sem dinheiro, quem está ou fica com a empresa falida, quem está ou fica encostado ao orçamento (tacho), quem está ou fica afastado do orçamento (tacho);
No fim vai ser um baralhar e tornar a dar, tal qual como aconteceu na revolução abrilista.
E ainda cá estamos...noutras circunstâncias, mas no fim, vai ser na mesma, um desenrasque-se quem puder!
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