Sempre tive grande curiosidade pela figura de José Estaline, no triângulo de personalidades que ficaram na memória da Revolução Russa, que amanhã comemora um século.
Lenine, o líder incontestado, teorizador ímpar do comunismo, morreu cedo, consagrando-se em mito e em corpo embalsamado. Léon Trotsky, intelectual de imenso mérito, ideólogo desviante, rapidamente afastado do país, morreria no México, perseguido por Estaline, sob o machado de gelo de Mercader.
Estaline iria prolongar-se no poder por mais de duas décadas. Chefiou gloriosamente a luta militar patriótica contra a agressão nazi, tendo instaurado um regime de auto-endeusamento e de inimaginável terror, que só muito a custo o regime soviético viria a denunciar depois da sua morte.
Em Portugal, Estaline, o “pai dos povos, o “Zé dos bigodes”, foi idolatrado no seio do PCP. Seguidores acríticos de Moscovo, os comunistas portugueses viriam a aceitar, muito a custo, as teses da “desestalinização” que emergiram do famoso XX Congresso do PCUS. É altamente duvidosa a sinceridade com que o PCP alinhou no coro oficial anti-Estaline da generalidade do mundo do Komintern e, tendo conhecido ainda alguma gente “do partido” desse tempo, estou em crer que a denúncia de Estaline feita por Krutshev nunca abalou por completo afetividade profunda sentida pelo líder desaparecido.
Com o cisma sino-soviético e com o surgimento (também) entre nós das correntes maoístas, Estaline viria a ser recuperado como figura política referencial nesses meios. Essa era também uma forma de denunciar o “revisionismo” do PCP, ódio declarado principal de todos esses grupos, sem exceção. Assistiu-se então, nesses anos 70, a loas a José Estaline de uma criatividade assinalável, dos jornais e panfletos aos cartazes e pinturas de parede. Com o declínio desses grupos, Estaline voltou a submergir na memória pública.
Há cerca de quatro anos, fui convidado para participar num painel, em Moura, sobre Fronteiras, juntando oradores que, a convite de Santiago Macias, então presidente da Câmara local, eleito pela CDU, abordaram o tema sob diversas perspetivas. Tive a meu cargo as fronteiras políticas e, devo confessar, deu-me imenso prazer trabalhar a ideia e colaborar na iniciativa.
A certo passo da minha intervenção falei de Estaline. Disse, “en passant”, da “perfídia” do ditador georgiano ao desenhar algumas das fronteiras entre as repúblicas soviéticas da Ásia Central (dei mais do que um exemplo), deixando propositadamente grupos étnicos divididos por essas barreiras, o que provoca ainda hoje choques e tensões que muito limitam a estabilidade da região.
No termo da reunião, um cavalheiro, também com responsabilidades autárquicas, agradeceu todas as contribuições que ouvira mas, virando-se para mim e apenas para mim, disse não poder concordar com as imputações que eu fizera ao antigo dirigente soviético. A sua contestação não entrou minimamente pela substância das coisas que eu referira mas, muito simplesmente, dava mostras de refletir uma dimensão afetiva que eu ferira com o meu comentário. É que Estaline permanece ainda vivo no coração de uma certa geração comunista, portuguesa e não só.