segunda-feira, novembro 13, 2017

Noites do Nina


Aquele diplomata não fazia a mais leve ideia da razão pela qual o colaborador do ministro se mostrara tão efusivo, quando o cumprimentou, tratando-o logo pelo nome e por tu. Reagiu a toda aquela cordialidade mantendo uma sorridente distância. O homem era muito simpático, mas a verdade é que a cara nada lhe dizia, pelo que o continuou a intrigar toda aquela intimidade, a qual, no entanto, parecia sincera.

A reunião acabou e coincidiu sairem da sala juntos. O homem, tendo notado o alheamento do diplomata, fez-lhe luz: “Já não te lembras de mim, pá?! Gandas noitadas no Nina! A malta ali, na segunda mesa, à direita de quem entra. Tás a ver?”

O diplomata não se lembrava de nada. Nem se lembrava sequer de ir ao Nina. Aliás, quem ia às casas como o Nina perdia, além de outras coisas, a memória do que por lá se tinha passado. Vagamente, com esforço, pensou que, se acaso alguma vez tivesse ido ao Nina, o que estava longe de ser seguro, a sua mesa era quase sempre a do fundo, à esquerda, perto do bar. Mas, se calhar, o diplomata nunca tinha ido ao Nina. Era até o mais certo. Mas, a partir desse dia, o diplomata passou a tratar pelo nome e por tu o homem com que, com toda a certeza, nunca se tinha encontrado no Nina. Onde seria o Nina?

Passei lá há pouco. Há muit que já não há Nina. E o que é feito desses meus dois amigos?

domingo, novembro 12, 2017

Tweets sobre Hanoi

Alguma vez presidentes americanos como Washington, Lincoln, Roosevelt ou Kennedy sonharam que iriam ter um dia um sucessor capaz de escrever coisas deste quilate?


Um país de graça

Mais no Twitter do que no Facebook (que é uma praia de seniores...), ainda menos neste mundo declinante que são os blogues, o defunto assunto do “webdinner” no Panteão deu origem, desde o primeiro momento, a montes de graças e graçolas. Ainda na madrugada de sábado, alguns comentadores alvitravam divertidas “reações” dos ilustres mortos ao ágape a que “assistiam”, perguntava-se se havia Wifi (com magníficas sugestões para a “password”), outros davam dicas alternativas de locais para o futuro e outras coisas assim. 

De há muito que somos um país de graça fácil, que tenta encontrar um lado risonho para tudo, que surge pronto a exorcizar momentos tidos por mais complexos, evitando tratá-los como tal. A conversa de café, no passado, tinha as suas “vedetas”, uma espécie de especialistas em encontrar um lado divertido para tudo, em trazer aos grupos a última anedota. Hoje, são substituídos pelas redes sociais, onde há gente com muita piada, embora lado a lado com uma legião de sujeitos indignados, de sobrolho carregado, alguns com tiques ridículos de “finis patriae” em tudo aquilo que criticam.

Acho muito bem que assim continuemos a ser, que saibamos rir das coisas e das pessoas. Isso torna os dias mais leves e ajuda a animar as gentes. E é também importante saber hierarquizar os assuntos, para que nos não transformemos num país tremendista, em que tudo é um drama, por dá cá aquela palha. Para dramas, já bastam os verdadeiros dramas.

Os restaurantes “cansados”



Há dias, um amigo falou-me de um conceito para o qual eu não tinha ainda uma expressão: restaurantes “cansados”. Ganhei essa fórmula utilíssima.

Na tarefa simpática a que me dedico para a revista “Evasões” (faço-o também para a revista “Epicur”, mas ali o registo que escolhi foi outro) elaborando notas de análise sobre alguns restaurantes pelo país, há uma realidade que algumas pessoas talvez desconheçam: os críticos não estão sujeitos a qualquer indicação ou recomendação por parte da publicação, podendo, no seu livre arbítrio, selecionar os locais que visitam. Foi aproveitando esta liberdade que (aqui entre nós) tenho decidido selecionar, em regra, restaurantes que já existem há alguns anos. 

Porquê? Desde logo, porque há uma imensa publicidade a propósito dos novos restaurantes - eu diria mesmo, um excesso de “informação” que, muitas vezes, me parece derivar de bem sucedidas operações de marketing, com algum “spin” de comunicação a funcionar. Isso não significa que não haja coisas magníficas a despontar, um pouco por toda a parte, mas eu gosto de os “deixar pousar”, de os testar já com algum tempo de prova.

Mas há uma segunda razão. Sempre achei magnífico o esforço de algumas casas, espalhadas pela província portuguesa, que, às vezes com uma notável constância, teimam em sobreviver e continuar, frequentemente afrontando a concorrência agressiva de restaurantes episódicos mas que, enquanto duram, lhes corroem a clientela. Muitas dessas casas atravessaram os anos de crise, com grande dificuldade, e entendo que merecem ser apoiadas. E, por essa razão, porque as conheço e admiro há muito, apetece-me visitá-las e dar-lhes a oportunidade de serem destacadas com uma página de uma revista de grande difusão como a “Evasões”, distribuída com o “Diário de Notícias” e o “Jornal de Notícias”. 

É para esses restaurantes uma publicidade totalmente gratuita, mas que nem sempre possível. Eu explico. É que, com alguma frequência - com muito mais frequência do que se pode pensar - saio desses restaurantes com um sorriso amarelo: havia regressado com alegria, acabo desiludido pelo que encontrei. E, naturalmente, nada vou escrever sobre essa casa, porque a minha regra de ouro é reportar exclusivamente locais onde tenha tido uma experiência positiva. Não quero, com um texto crítico, fruto de uma única visita, que não está isenta de poder ter sido uma infelicidade conjuntural, correr o risco de poder afastar clientes e ter um impacto comercial desagradável, afetando um negócio e o emprego de pessoas e o sustento de famílias. É claro que, nada escrevendo, pago a conta do meu bolso, mas esse é o preço da minha opção. Nunca quebrei esta regra de só “dizer bem” e espero nunca ser confrontado com uma situação limite que me obrigue a quebrá-la.

Como disse, tenho-me confrontado com algumas desilusões em restaurantes “com nome”, mesmo com alguma história no panorama da gastronomia portuguesa. E, cada vez mais, tenho encontrado por aí os tais restaurantes “cansados”. 

Sucedeu-me há uma semana, numa cidade nortenha que não vem para o caso. Apeteceu-me ir ao mais “histórico” restaurante da localidade, onde me recordo de ter tido refeições magníficas (às vezes pergunto-me, confesso, se o meu critério de então era o mesmo de hoje). E tive uma imensa desilusão.

A sala estava muito pouco composta, mantendo, contudo, o estilo tradicional, aquele género rústico, com cadeiras de couro, que, a partir dos anos 50 e 60, se espalhou como uma epidemia decorativa, de norte a sul do país. O serviço, simpático mas rarefeito como começa a ser triste “moda”, era executado por um único funcionário, simpático mas muito impreparado. A lista, manchada de azeite, tinha mais pratos do que a realidade nos ia oferecer, como fomos logo avisados. A insistência para que optássemos pelos pratos do dia revelou uma cozinha preguiçosa, com produtos disponíveis pouco frescos (ou “frescos” demais). Era jantar e, claramente, algumas das coisas vinham já do almoço. Os pratos, que até não estavam mal de todo e vinham em doses generosas, tinham uma apresentação abaixo de qualquer classificação, fruto de gente sem a devida qualificação profissional. Um sinal de alarme, sintoma de banalidade, e que ali era bem patente, foi o facto dos acompanhamentos de pratos muito diferentes serem exatamente os mesmos. Como é de regra quase geral nestas casas “cansadas”, a lista de vinhos estava imensamente desfalcada. Ah! E as entradas não tinham a menor imaginação, nem sequer fazendo jus aos produtos da região. Idem para as sobremesas, com uma torta que eu perguntei ao funcionário se era da “Firestone” ou da “Mabor”. Não percebeu a piada...

Saí triste de mais este restaurante “cansado”. Mas não vou desistir de continuar a tentar mostrar o esforço de quantos, por esse país, teimam em manter a nossa cozinha tradicional, com uma oferta honesta, sólida e com brio. E há muitos, podem crer.

(A fotografia, está bem de ver, não respeita a nenhum dos restaurantes de que falo no texto)

sábado, novembro 11, 2017

Panteão


Às vezes, vale a pena abanar as consciências, doa a quem doer. A realização do jantar da Web Summit no Panteão foi uma dupla insensatez. De quem a promoveu e de quem a autorizou. Reconheceram isso o ministro da Cultura, o primeiro-ministro e o presidente da República. Ainda bem!

O evento tinha cobertura legal, com base num despacho do anterior governo? Já se tinham realizado jantares idênticos e ninguém protestou? Nem tudo o que é legal é necessariamente sensato. E os erros do passado não servem de alibi aos do presente e, pelo menos, podem ajudar a evitá-los no futuro. 

O normativo legal que, erradamente, permitiu o ato vai agora ser mudado. Ótimo, mais vale tarde do que nunca. Mandaria o decoro que quem o subscreveu guardasse de Conrado o prudente silêncio, em lugar de esbracejar agora, postumamente, numa ridícula tentativa de guerrilha virtual com o presente.

A regra, a partir de agora, é muito simples: à sua maneira, para além de um monumento, o Panteão é um cemitério. E não se janta em cemitérios. Ponto. Passemos à frente!

A dúvida



Com o tempo, e com as incertezas induzidas pela sabedoria que a idade nos traz, inquietamo-nos sobre a eventual justeza de certas opiniões pessoais. Seremos nós quem não está a ver bem as coisas? Aconteceu-me agora. Ajudem-me: acham mesmo normal que o jantar final do Web Summit seja entre os túmulos do Panteão Nacional?

sexta-feira, novembro 10, 2017

Ver os aviões


   

Ainda fui desse tempo. Quem visitasse Lisboa não passava sem uma ida ao aeroporto, nesses anos 50 (Nas outras capitais. era também assim: ouçam o “Dimanche à Orly”, de Bécaud). Para “ver os aviões”. O serviço na esplanada era caro mas, caramba!, valia a pena, e uma vez não são vezes! 

Lisboa, para quem vinha em família, da província, incluia o flanar, a comprar novidades e a ver as montras, pelo Chiado e pela Baixa, andar nas escadas rolantes do Grandela, ver o preto à porta da Casa Africana, tomar café na Brasileira, na Suiça ou no Nicola. Olhar a “outra banda” do topo do Parque Eduardo VII, fazer o lento passeio de carro pela esquadria urbana em construção das Avenidas (então) Novas, ter o deslumbre noturno que era a Fonte Luminosa, tudo isso era parte do programa. Os adultos não passavam sem uma ida aos fados ou a uma sessão (havia duas, três ao domingo) de uma revista, seguida de jantar no Parque. Para os miúdos, como eu era, havia, claro!, a visita ao Jardim Zoológico com a moeda ao elefante, e pouco mais... No domingo, o “passeio dos tristes” também era obrigatório: ir a Cascais pela Linha, subir a Sintra e regressar pelas portas de Benfica ou pela “imensa” autoestrada, com paragem no miradouro do Viaduto Duarte Pacheco (a sério, era possível!) e na Torre de Monsanto. Com bom tempo, num cacilheiro, ia-se almoçar ao Ginjal. Às vezes, sempre num domingo e sempre às três da tarde (havia regras, nesse tempo, ora bem!), ia-se à “bola” de um dos grandes (em que o Belenenses então figurava). Ah! E com a chegada do Metro, já nos anos 60, outro atrativo se criou. E, claro, para quem viesse de comboio, o prateado “Foguete”, que ligava ao Porto, era o máximo! E, no fim, levava-se que contar, por uns tempos. Até à próxima.

Saudades? Uma ova! A Lisboa de hoje tem mil vezes mais graça, mais oferta, mais qualidade de vida. Se olharmos para trás, o tempo era como a fotografia: a preto e branco. Ora a vida é a cores!

(Em tempo: alguém me lembra, e bem!, que não referi a Feira Popular. É verdade, nunca me levaram lá! E, agora, é muito tarde: infelizmente, não tenho a quem me queixar...)

No tempo


Às vezes, olhando imagens de vedetas do cinema de outros tempos, dou comigo a pensar como o conceito de beleza feminina mudou com os anos. Vou mais longe: raramente vislumbro figuras dessa época que possam rivalizar com a beleza de algumas atrizes contemporâneas, naturalmente à luz dos padrões estéticos que hoje seguimos. Por essa razão me parece tão excecional esta fotografia que hoje encontrei, de Hedy Lamarr, uma vedeta dos anos 30, com uma imagem que não podia ser mais atual. Não acham?

CPLP

No dia 29 de novembro, pelas 17 horas, na Sociedade de Geografia de Lisboa, na Rua das Portas de Santo Antão, 100, no âmbito de um ciclo de palestras, irei falar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e dos principais problemas que, a meu ver, marcaram o desenvolvimento desta organização, nos mais de vinte anos que decorreram desde a sua criação.

Diplomacia e política


Aquando do recente falecimento do embaixador João Hall Themido, alguém se interrogava como fora possível ele ser o representante diplomático português em Washington, entre 1971 e 1981, com a Revolução de permeio - sucessivamente representando a ditadura, o pós-25 de abril e a democracia, com primeiros-ministros tão contrastantes como Marcelo Caetano ou Vasco Gonçalves. Percebo a perplexidade, mas ela não tem razão de ser.

Historicamente, a representação de um Estado perante outro começou por ser assegurada por delegados pessoais dos soberanos junto dos seus homólogos. Com o decurso do tempo, todos os países foram criando um corpo profissional de especialistas para acompanhar funcionalmente as suas relações externas – a chamada carreira diplomática. Nos dias de hoje, entre nós, o acesso a esta carreira passa pelo mais exigente concurso em toda a nossa Administração Pública.

Isso não impede alguns países de continuarem a utilizar para tal como figuras oriundas de fora desse corpo profissional – os “embaixadores políticos”. Isso acontece, mais vulgarmente, no caso de ditaduras e de regimes autoritários ou presidencialistas.

Entre nós, o Estado Novo começou por ter apenas “embaixadores políticos”, tal como já acontecera com a I República e o regime monárquico, mas, atendendo ao aumento das missões diplomáticas, foi aderindo à prática de nomear para a chefia de algumas dessas missões funcionários da carreira diplomática, que entretanto se foi estruturando. A ela pertencia Hall Themido.

Mário Soares confessava ter chegado ao palácio das Necessidades, após o 25 de abril, com fortes interrogações sobre a carreira diplomática que, antes da Revolução, tinha defendido externamente as políticas do regime derrubado, nomeadamente a política colonial. Mas rapidamente se terá apercebido de que, com muito escassas exceções, o corpo de funcionários que o MNE punha à disposição do novo regime era constituído por dedicados servidores públicos, com grande sentido patriótico e lealdade funcional ao Estado. 

A democracia e a estabilidade da sua representação externa muito ganharam com a continuidade que Soares então preconizou e veio a prevalecer. Isso não impediu que, em ciclos políticos diferentes, o novo regime não tenha sido tentado a nomear quase uma trintena de “embaixadores políticos”. Desde 2011, não há nenhum chefe de missão exterior à carreira diplomática portuguesa, mas sinto que a tentação poderá não ter desaparecido por completo nas nossas hostes político-partidárias, da esquerda à direita. Espero que a maturidade da democracia portuguesa seja suficiente para, no futuro, ser capaz de resistir às tentações e que o chefe do Estado disso seja um guardião atento.

quinta-feira, novembro 09, 2017

Comentário internacional

É notória a magnífica qualidade do comentário internacional que, nos dias de hoje, os especialistas oriundos das universidades portuguesas espalham pelas nossas televisões - por todas elas. 

Gente em geral jovem, muito bem preparada e conhecedora, equilibrada no comentário e fugindo ao impressionismo do velho jornalismo internacional português, que se habituou a “tomar partido”, não percebendo quanto assim se descredibiliza. 

Mas, atenção!, continua a haver excelentes jornalistas na área internacional da nossa comunicação social, que sabem apresentar com rigor as razões de cada lado, não caindo no facilitismo medíocre de “decretar” quem tem razão. Com o tempo, estou certo que o joio acabará expulso pelo trigo.

quarta-feira, novembro 08, 2017

Portugal na UNESCO



É uma magnífica notícia, que honra a diplomacia portuguesa, a nossa eleição para o Conselho Executivo da UNESCO, a mais importante instância da organização. Vale a pena notar que a Alemanha foi o país derrotado no nosso grupo geográfico. 

A vitória portuguesa vem provar, uma vez mais, a excecional capacidade do nosso país de ganhar eleições no mundo das organizações multilaterais.

É assim tempo de Portugal voltar a ter um embaixador dedicado exclusivamente à UNESCO porque, agora mais do que nunca, passa a ser impossível ao nosso embaixador em França assegurar o seu trabalho com o do Conselho Executivo. Estou certo que o MNE está atento a isto e à necessidade de reforço da nossa Delegação junto da organização.






Trump


Um ano com Trump. Recordando o ambiente que antecedeu as eleições americanas, a surpresa (para muitos) do resultado e o debate de um mundo aturdido em torno do mesmo, o mínimo que se pode dizer é que Trump não “desiludiu” a generalidade das expetativas. Os balanços aí estão, por toda a comunicação social, relativamente uniformes. Em síntese, pode dizer-se que ninguém esperava que uma sociedade com a maturidade política como a americana pudesse produzir na Casa Branca uma figura tão escassamente preparada para dirigir o mais importante país do mundo. Trump é hoje um visível embaraço para grande parte da América e é patente que o seu “establishment” se vê em grandes dificuldades para controlar a impulsividade e o estilo errático, no limiar do desastre, da sua presidência. O mundo exterior, depois do primeiro impacto, parece andar à procura do melhor modo de lidar com ele, na certeza de que, nesse relacionamento, nada é adquirido e tudo pode mudar no instante seguinte. O grande drama para a comunidade internacional é que, pela importância dos EUA numa multiplicidade de áreas, não é possível ficar à espera do pós-Trump. Se, para os americanos, como referi, Trump é um embaraço, para o resto do mundo é e vai continuar a ser um imenso problema.

terça-feira, novembro 07, 2017

João Hall Themido (1924-2017)


Morreu João Hall Themido. A esmagadora maioria dos portugueses não o conhece, mas é interessante deixar registado que foi um dos mais importantes embaixadores portugueses. 

Com Vasco Futscher Pereira, Tomaz Andresen e Calvet de Magalhães, Themido fez parte da geração de embaixadores de topo que assegurou, com grande profissionalismo, a continuidade do Estado na transição da diplomacia da ditadura para o novo regime democrático. No 25 de abril, era embaixador em Washington, desde 1971. Aí ficou uma década (isso mesmo!) - de Marcelo Caetano a Palma Carlos, de Vasco Gonçalves a Mário Soares e alguns outros primeiros-ministros. Antes, tinha sido embaixador em Roma e sê-lo-ia ainda em Londres, depois de exercer o cargo de secretário-geral no MNE.

Hall Themido era naturalmente um especialista nas relações luso-americanas. Um dia, em 1988, ao tempo em que chefiava a embaixada em Londres, perguntei-lhe pelas memórias que “obrigatoriamente” tinha de escrever. Disse-me que estava a trabalhar nisso. Fá-lo-ia mais tarde, com “10 anos em Washington” (1995) e “Uma autobiografia disfarçada” (2008). 

Nessa ocasião, advertiu-me quanto àquilo que, enquanto diplomatas, podemos dizer aos jornalistas. Contou-me então que se arrependera de uma conversa tida como José Freire Antunes, a propósito das relações com os EUA. A certo passo da conversa, Themido teria deixado cair, pensava ele que “off the record”, um comentário menos apreciativo sobre o Visconde de Botelho, entretanto já falecido, figura que teve alguma visibilidade, nos anos 70, no mundo das relações transatlânticas de segurança e defesa. Freire Antunes não terá respeitado (ou entendido como tal) a confidencialidade do comentário, pelo que o transcreveu “ipsis verbis” num livro e a família do Visconde cortou relações com Hall Themido. Referiu-me também que Franco Nogueira tinha tido uma experiência similar com o mesmo jornalista. “Tenha sempre muito cuidado com o que diz aos jornalistas, Seixas da Costa!”. Tive e tenho, mas nunca tive surpresas excessivamente desagradáveis.

Com a morte de Hall Themido, desaparece o último expoente de uma geração de profissionais de grande qualidade, num período muito complexo da história externa do país, que havia imediatamente sucedido àquela que teve por figuras maiores Marcello Mathias, Franco Nogueira, António de Faria ou José Manuel Fragoso, que haviam cessado funções antes do 25 de abril. 

Web Summit

Desprezar o Web Summit é uma parolice? Não, não é, é apenas uma imensa estupidez, é não perceber a importância (quase histórica) que representa para Portugal poder colocar-se no centro do mapa do mundo do futuro. É neste tipo de reações que se deteta melhor a razão pela qual, como país, temos dificuldade em sair da cepa torta.

MEC



Não vou deixar de ler Miguel Esteves Cardoso depois da parvoíce deste texto, embora faça parte daquela que ele considera ser a “gente rancorosa, obstinada e estúpida” que prefere manter Portugal independente da Espanha. 

Mas, claro, passei a ter bastante menos consideração por alguém que, sendo um frustrado súbdito de Espanha, consegue a proeza de escrever num ótimo português e que, às vezes, tem imensa piada. Como agora, neste texto, que me fez rir muito (dele) e que, com toda a diplomacia, me motiva a mandá-lo comprar caramelos a Badajoz ou a qualquer outra parte.

(Em tempo: Francisco Bélard nota, e bem, que MEC escreveu na véspera um texto em que afirma praticamente o contrário. Descontada a esquizofrenia, querendo ou não o autor ser irónico, este é o texto que os leitores têm para ler e que não traz qualquer ”disclaimer”

100 anos


Passam hoje 100 anos sobre aquela que é considerada a data da Revolução que inaugurou o regime soviético na Rússia. Para uns, foi uma data libertadora que iniciou um percurso novo de esperança para o mundo. Para outros, trata-se da data funesta que abriu um tempo ditatorial trágico. Para este texto é-me perfeitamente indiferente esta inconciliável dicotomia.

Faço parte de uma geração que nasceu para a cidadania no período da ditadura salazarista. Habituei-me a respeitar os militantes comunistas como as principais vítimas desse sinistro período repressivo. Nunca tendo pertencido às suas hostes, a (sua) Revolução russa faz parte do meu património de memória afetiva. E eu sou incorrigivelmente apegado àquilo a que um dia me senti ligado.

Em 1980, fui a Leninegrado e fiz o percurso ”turístico” da antiga Petrogrado que a minha geração fazia: da estação da Finlândia ao Aurora, do Palácio de Inverno à esquina trágica da Nevsky Prospekt. (Era já então uma URSS triste, sem esperança, no estertor de um projeto falhado.)

Em 2012, voltei, agora a São Petersburgo. (Era a nova Rússia de Putin, uma sociedade estranha, dominada pela humilhação da perda da Guerra Fria, acossada e perigosa.) Por alguns dias, trabalhei por ali no edifício da Duma, onde Lenine falou e está retratado em quadros célebres. Ao ter o ensejo de tomar a palavra naquela sala mítica, não posso esconder que senti uma estranha emoção.

Felizes os que não têm contradições, porque deles é o reino da (sua) verdade.

segunda-feira, novembro 06, 2017

Estaline e a geografia


Sempre tive grande curiosidade pela figura de José Estaline, no triângulo de personalidades que ficaram na memória da Revolução Russa, que amanhã comemora um século.

Lenine, o líder incontestado, teorizador ímpar do comunismo, morreu cedo, consagrando-se em mito e em corpo embalsamado. Léon Trotsky, intelectual de imenso mérito, ideólogo desviante, rapidamente afastado do país, morreria no México, perseguido por Estaline, sob o machado de gelo de Mercader. 

Estaline iria prolongar-se no poder por mais de duas décadas. Chefiou gloriosamente a luta militar patriótica contra a agressão nazi, tendo instaurado um regime de auto-endeusamento e de inimaginável terror, que só muito a custo o regime soviético viria a denunciar depois da sua morte.

Em Portugal, Estaline, o “pai dos povos, o “Zé dos bigodes”, foi idolatrado no seio do PCP. Seguidores acríticos de Moscovo, os comunistas portugueses viriam a aceitar, muito a custo, as teses da “desestalinização” que emergiram do famoso XX Congresso do PCUS. É altamente duvidosa a sinceridade com que o PCP alinhou no coro oficial anti-Estaline da generalidade do mundo do Komintern e, tendo conhecido ainda alguma gente “do partido” desse tempo, estou em crer que a denúncia de Estaline feita por Krutshev nunca abalou por completo afetividade profunda sentida pelo líder desaparecido. 

Com o cisma sino-soviético e com o surgimento (também) entre nós das correntes maoístas, Estaline viria a ser recuperado como figura política referencial nesses meios. Essa era também uma forma de denunciar o “revisionismo” do PCP, ódio declarado principal de todos esses grupos, sem exceção. Assistiu-se então, nesses anos 70, a loas a José Estaline de uma criatividade assinalável, dos jornais e panfletos aos cartazes e pinturas de parede. Com o declínio desses grupos, Estaline voltou a submergir na memória pública.

Há cerca de quatro anos, fui convidado para participar num painel, em Moura, sobre Fronteiras, juntando oradores que, a convite de Santiago Macias, então presidente da Câmara local, eleito pela CDU, abordaram o tema sob diversas perspetivas. Tive a meu cargo as fronteiras políticas e, devo confessar, deu-me imenso prazer trabalhar a ideia e colaborar na iniciativa.

A certo passo da minha intervenção falei de Estaline. Disse, “en passant”, da “perfídia” do ditador georgiano ao desenhar algumas das fronteiras entre as repúblicas soviéticas da Ásia Central (dei mais do que um exemplo), deixando propositadamente grupos étnicos divididos por essas barreiras, o que provoca ainda hoje choques e tensões que muito limitam a estabilidade da região. 

No termo da reunião, um cavalheiro, também com responsabilidades autárquicas, agradeceu todas as contribuições que ouvira mas, virando-se para mim e apenas para mim, disse não poder concordar com as imputações que eu fizera ao antigo dirigente soviético. A sua contestação não entrou minimamente pela substância das coisas que eu referira mas, muito simplesmente, dava mostras de refletir uma dimensão afetiva que eu ferira com o meu comentário. É que Estaline permanece ainda vivo no coração de uma certa geração comunista, portuguesa e não só.

Ainda a Catalunha

É muito interessante acompanhar a crescente polarização, entre nós, do debate em torno da questão catalã. Ela assume contornos quase clubísticos, com a graça adicional de aliar figuras de espetros ideológicos frequentemente opostos, o que torna a polémica muito divertida pelo bizarro somatório dos argumentos, assentes em escolas de pensamento bem diversas. 

Há uma realidade inescapável nesta polémica: estamos perante duas ordens de valores e de interesses que se opõem de forma radical. 

Os defensores da unidade espanhola têm a Constituição do país como um valor supremo, considerando o secessionismo um crime de lesa-pátria, razão pela qual entendem que devem ser punidos todos quantos atentem contra a integridade do país, neste caso os promotores da independência.

Os simpatizantes do independentismo catalão entendem que nada, muito menos uma ordem constitucional pré-existente, pode impedir o direito à autodeterminação do futuro de um povo, que tem o inalienável direito de decidir, em total liberdade, o seu destino.

Resta acrescentar que os primeiros consideram inquestionavelmente democrática a ordem constituional espanhola, defendendo que ela foi sufragada em plena liberdade. Por seu turno, os segundos defendem que se tratou de um compromisso imposto na transição, que não representou uma livre assunção de vontade, expressa num tempo de democracia plena.

Perante isto, quem tem “razão”? É óbvio que a “razão” está sempre do lado em que nos colocarmos, porque se trata de pontos de vista à partida inconciliáveis. Estamos por um lado ou pelo outro, pela valoração diferenciada que damos aos argumentos dos dois lados, com alguma emoção afetiva a embotar a racionalidade.

A meu ver, só a ameaça iminente de uma tragédia pode, porventura, fazer emergir um terreno que, eventualmente, venha a ser aceite por ambos como intermédio, sem perda absoluta da face de um deles - como o seria a criação de uma Espanha de natureza federal, em moldes a decidir numa futura revisão constitucional. 

Mas muita água vai ainda correr sob as pontes, antes que isso tenha condições para acontecer. Esperemos que só água.

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...