Naqueles tempos dos anos 80, de guerra civil em Angola, era muito difícil encontrar produtos alimentares. Os vegetais iam aparecendo nas "quitandeiras" dos mercados, algum peixe conseguia-se junto dos pescadores da ilha, mas o mais difícil era a carne. Nas idas a Portugal, traziamo-la em caixas frigoríficas, a espaços o frango ia aparecendo na chamada "loja diplomática", algumas vezes conseguimos importar alguns quilos do Zimbabwe. Mas para o quotidiano, isso continuava a ser insuficiente.
Um dia, um dos contínuos da embaixada, o simpático e avantajado Bia, surpreendeu-me com uma pergunta: "O senhor doutor quer comprar uma vaca?" Explicou-me que tinha um primo que tinha vacas e que estava disposto a vender-nos uma. "Viva?", perguntei. Sim, viva, mas o vendedor poderia mandar cortar o animal em grandes peças. Além disso, aceitava receber em Kuanzas, a moeda local.
Esta questão da moeda não era indiferente. Por esse tempo, surgiam-nos algumas propostas, de angolanos e portugueses residentes, para aquisição de produtos alimentares. A sua liquidação, no entanto, deveria ser feita em contas no estrangeiro ou por troca com whisky, que só os funcionários da embaixada tinham facilidade em importar. Cair nessa "esparrela" seria infringir a lei local, num tempo muito delicado nas relações bilaterais.
Lá se fez o negócio e, uma tarde, fui com o meu Golf a uma determinada casa na zona da Corimba, a sul de Luanda, buscar as peças da vaca. Olhando hoje para trás, puno-me pela inconsciência do gesto: que carne era aquela? Em que condições sanitárias estava? Mas isso deve-me ter parecido despiciendo, nesse tempo de escassez.
Para poder cortar as peças de carne, era necessário recorrer a um talho. Mas, se em Luanda não havia carne à venda, onde diabo poderíamos encontrar um talho? Descobriu-se que um funcionário do consulado tinha sido talhante e ele facilitou-nos um espaço. Um amigo português, com experiência no "ramo", prontificou-se para a operação de corte. E lá fui eu levar as peças pelas traseiras de um antigo talho.
Só que, quando as peças começaram a ser transportadas, do meu carro para o interior do talho, a miudagem dos apartamentos da vizinhança, convencida de que se tratava de um fornecimento normal, dasatou numa gritaria ("Há carne! Há carne!") que trouxe uma multidão para as imediações do talho. Vi-me em dificuldades em concluir a "operação" e sair dali...
Ao final da tarde, em convenientes pedaços, a carne chegou-nos a casa. Era péssima! Rija e nervosa, criou-se mesmo, nos amigos com quem a partilhámos, o dito de que era carne "importada" e que essa famosa vaca, para ser tão "musculada", devia ter vindo a pé desde o Zaire... Por meses, houve lá por casa tantos croquetes em jantares que, finalmente, fizémos juz prático ao conceito da "diplomacia do croquete"'!