domingo, maio 31, 2015

Levy


Pela décima vez, o filósofo francês Bernard-Henry Levy voltou a ser atingido, numa ocasião pública, por tartes de doce, o conhecido "atentado pasteleiro", que a história tem consagrado.

Levy é uma das mais irritantes personagens do universo intelectual francês. É, além disso, o "iluminado" político que conseguiu convencer Nicolas Sarkozy à operação de intervenção na Líbia, apresentando-lhe as figuras da oposição a Kadhafi que acabaram por fazer o "lindo serviço" que está à vista! Grande parte da tragédia das migrações mediterrânicas deve-se ao atual caos na Líbia, provocado por uma intervenção que não levou a cabo exclusivamente aquilo a que o mandato das Nações Unidas lhe permitia, "explorando o sucesso" (como dizem os militares) e descuidando o dia seguinte. Foi a clara e oportunista subversão desse mandato que deu um bom alibi à Rússia para recusar soluções para a Síria no Conselho de Segurança.

Noel Godin, o anarco-humorista que organiza regularmente estes "atentados" contra o cabelo estudadamente armado de Levy, realiza o sonho clandestino de muita gente. Francesa e não só...

Carlos Costa


Conheço Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, há bastantes anos. É uma personalidade a quem sempre reconheci um elevado sentido de responsabilidade no serviço público, uma pessoa séria e dedicada, com grande conhecimento da área financeira e europeia. Não tenho a menor dúvida em considerá-lo um dos grandes técnicos que Portugal possui nesta área. 

Todos estes atributos não excluem a possibilidade de Carlos Costa poder cometer erros. No caso BES pareceu-me ter ficado evidente que Carlos Costa, podendo tendo visto chegar a "vaga" da tragédia que se aproximava, não foi capaz, em tempo útil, de "puxar o tapete" a Ricardo Salgado. A doutrina divide-se sobre as razões por que assim procedeu, sendo que a versão menos benévola é a de que teve receio de provocar um embaraço público ao governo no termo da presença da "troika", com risco de afetar a "glória" da "saída limpa". 

Já me parece menos criticável a solução encontrada para o BES, embora todos devamos estar solidários com os custos que a mesma implicou para muitos. Naqueles difíceis dias, julgo que Carlos Costa - que o executivo deixou, de forma cobarde, sozinho no meio da praça - teve uma atuação muito responsável e tecnicamente tão boa quanto era possível. Com a única exceção, como à época aqui disse: não ter acautelado a eventualidade do processo poder acabar por ter um encargo substancial para o erário. Neste particular, ao afirmar, com aparente convicção, aquilo que não era uma evidência, fez um desnecessário frete ao governo e não prestou assim um serviço à imagem do Banco de Portugal. Foi pena.

A recondução de Carlos Costa por Passos Coelho não me surpreendeu. Como também não me surpreendeu que os tenores da maioria na Assembleia da República, que haviam sido estimulados pelas declarações da ministra das Finanças a criticar a supervisão na Comissão parlamentar de inquérito sobre o BES, tivessem mudado de agulha verbal, quando confrontados com (mais um)a cacofonia dissonante do governo - e isto não é um elogio para eles, é claro. 

O primeiro-ministro quer no Banco de Portugal, nos próximos anos, alguém que prolongue, qualquer que seja o seu destino nas urnas, a defesa da bondade da solução encontrada para o BES. Melhor: alguém que lhe sirva de pára-raios retroativo no caso do processo Novo Banco vir a obrigar um forte custeio orçamental. Passos Coelho, lá de Massamá, irá silenciosamente fazer dizer que a decisão da solução foi de Carlos Costa. Se acaso as coisas correrem menos mal, então não deixará de lembrar que foi ele quem renomeou Carlos Costa.

Termino dizendo que Carlos Costa não deveria ter aceite continuar sem exigir ao governo que o PS ficasse associado à sua recondução. Da mesma maneira que, quando foi nomeado por um governo PS, este não deixou de tomar em conta a opinião do então principal partido da oposição, o PSD, partido de quem Carlos Costa nunca escondeu estar politicamente próximo. Tenho muita pena que isso não tivesse acontecido, por Carlos Costa e pelo país, que necessitaria de ter, nos próximos anos, um governador do Banco de Portugal forte e com um reforço político assegurado.

sábado, maio 30, 2015

Seleção

Na semana que agora termina, fiz parte de um painel de seleção de jovens "trainees" para uma das maiores empresas nacionais, cujo negócio se situa maioritariamente fora do país. Ao longo de vários dias, foram muitas horas de diálogo com dezenas de jovens de diversas origens académicas, sem exceção com mestrados em excelentes instituições universitárias, com idades que raramente ultrapassavam os 25 anos. O grupo a selecionar representava já só 1% (leram bem) dos inscritos, que haviam sido sujeitos, ao longo de meses, a um rigoroso processo de seleção profissional. Já em 2014 tivera experiências idênticas, em Portugal e no estrangeiro. Dentro de semanas, farei isso noutro continente.

Devo dizer que ser parte deste exercicio é, ao mesmo tempo, uma experiência fascinante e delicada. 

Fascinante porque este tipo de experiência acaba por ser uma montra ilustrativa do Portugal de hoje. Ouvir os jovens falar das suas ambições, dos seus interesses pessoais, do modo como olham o país e o mundo, da sua leitura da relação com a família e os amigos é muito interessante e instrutivo. No meu caso, para quem viveu muito tempo no estrangeiro e perdeu um pouco a ligação à realidade do país novo que aí está, este tipo de tarefa, somada às incursões que tenho vindo a fazer na vida universitária, permite "atualizar-me" sobre Portugal. E, sem ter tido surpresas, confesso que tive algumas revelações.

A delicadeza deste tipo de exercícios é, contudo, muito grande. Trata-se de conseguir avaliar, pela observação da interação em exercícios conjuntos, complementada por entrevistas individuais, a disponibilidade para o trabalho em grupo, o potencial de liderança e de entusiasmo pelas tarefas que os esperam, que leitura esses jovens têm da realidade que os envolve, procurando perceber, por detrás do que exprimem e de como se exprimem, se revelam potencial para as exigências específicas da profissão a que se estão a candidar. A complexidade agrava-se ainda mais pensarmos na imensa responsabilidade que consiste, através de um simples "sim" ou de um "não", dar sequência ou pôr termo a um sonho de carreira, a um investimento pessoal num concurso que, para cada um deles, pode significar uma profunda mudança de vida. 

sexta-feira, maio 29, 2015

Anarquismos

Ontem, à hora de almoço, passei em frente à morada onde esteve instalado o restaurante "Os Anarquistas", junto ao teatro da Trindade. O que por lá está hoje já não lembra o que foi. Era um dos mais antigos restaurantes de Lisboa, criado em 1906, por décadas pouso de artistas, intelectuais, jornalistas e outros frequentadores de animadas tertúlias. Diz-se que o nome viria mais dessa agitação verbal do que de qualquer vocação libertária. Recordo-me de, nos anos 70, quando trabalhei na zona do Chiado, ter lá comido algumas vezes, curiosamente sem grande memória apreciativa do que o restaurante servia, registando apenas que não era muito barato e que fazia parte da tradição de cozinha de galegos que muito marcou a restauração de Lisboa. 

Há anos, um amigo meu passou em frente ao restaurante e, num impulso, decidiu almoçar por lá. O nome tinha mudado e ele achou curioso experimentar o que propunha a nova gerência. Entrou, sentou-se, pediu a lista à empregada e começou a ler o seu jornal. Quando levantou os olhos, notou, com alguma perplexidade, que naquele espaço só havia mulheres, em todas as mesas à sua volta. Essa estranheza foi reforçada pelo facto de algumas delas deitarem olhares insistentes para a mesa onde ele estava, sozinho, a aguardar o que tinha encomendado. A persistência dessas miradas começou mesmo a incomodá-lo. 

De repente, teve um sopro de conforto: tinha acabado de entrar uma velha amiga! Finalmente, ia quebar o seu isolamento! A reação da amiga, contudo, surpreendeu-o: "O que é que tu estás aqui a fazer?!". De início não percebeu o espanto mas o sorriso malicioso da sua agora companheira de mesa acabou por fazê-lo compreender no que se metera! O espaço que sucedera a "Os Anarquistas" era agora um lugar gay feminino! A amiga, uma conhecida figura pública que ele sabia ter essa tendência, estava divertidíssima. Ele, logo que pôde, pôs-se a milhas... 

Falar claro


Há dias, num debate público, veio à baila a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). De imediato, convergiram sobre a organização os tradicionais discursos congratulatórios sobre o trabalho desenvolvido, com a "juventude" do modelo a ser arguida como justificação complacente para as suas insuficiências. Não foi por espírito de contradição que não me juntei ao coro.

A CPLP tem quase duas décadas, pelo que tem já as responsabilidades da maioridade. Se hoje é o que é, isto é, se não atingiu uma velocidade de cruzeiro mais entusiasmante, não foi por falta de tempo: foi por ausência de vontade política dos Estados integrantes para ter ido mais longe.

Não vale a pena esconder o facto de que a organização sofre da anómala circunstância de que, ao contrário das suas congéneres britânica ou francesa, não está centrada no seu país membro mais relevante à escala global. Como a questão do acesso da Guiné-Equatorial bem demonstrou, Portugal não tem hoje qualquer tutela substantiva sobre a CPLP – e isso torna-a, em grande medida uma organização mais igualitária e equilibrada. Mas, nem por isso, mais dinâmica.

Desenhada nos seus estatutos sob valores ético-jurídicos tributários de uma cultura política “eurocentrada”, no processo interno da CPLP projeta-se uma ordem de valores onde prevalece a leitura mais flexível e relativizada com que, tradicionalmente, o Sul sempre olha as dimensões democráticas ou do Estado de direito. Isto é um juízo de facto, não de valor.

Mas este é apenas um dos aspetos em que a atipicidade da CPLP se objetiva. Com “sócios” nos cinco continentes, sem fronteiras entre si e com graus de desenvolvimento muito díspares, os Estados CPLP têm a caraterística de operarem em espaços de afirmação geopolítica sem potenciais contradições entre si. O crescimento de cada um dos Estados acarretará assim vantagens sinérgicas para o conjunto. E isto é muito valioso.

Duas décadas depois da sua criação, o que leva a esta evidente “anemia” da organização? O principal fator é o facto do Brasil não se ter decidido utilizar a CPLP como um instrumento matricial da sua política externa. É no empenhamento do Brasil que reside a chave do futuro da organização. Mas isso não chega.



A CPLP tem de ser olhada em perspetiva e repensada, de forma aberta e descomplexada, nisso envolvendo a multiplicidade dos agentes que hoje se expressam em português. Uma língua falada por muitos milhões de pessoas mas da qual praticamente ninguém fala fora desse espaço. E isto é preocupante.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 28, 2015

O consenso "à la carte"

A palavra "consenso" tem uma carga forte nos últimos anos. Nem sempre pelas melhores razões.

Nos últimos tempos, sempre que foi necessário fazer pagar aos portugueses um custo que afetasse os seus haveres, o governo apelou ao consenso do principal partido da oposição.

Há dias, viu-se isso na hipótese de voltar a cortar nas atuais reformas. Era a forma de partilhar o odioso, uma forma de desresponsabilização sobre o fracasso de uma política. Em 2013, como se recordarão, o presidente da República foi um complacente agente da "operação consenso".

Mas, curiosamente, não se viu agora o chefe do Estado apelar publicamente a que, em temas como a questão da privatização total da TAP ou da recondução do governador do Banco de Portugal, o maior partido da oposição fosse ouvido. Por que será?  O consenso é "à la carte"?

quarta-feira, maio 27, 2015

150 anos em português


O "Diário de Notícias" faz 150 anos. Para um jornal, é obra! Esta bela imagem de Stuart, de 1930, cujo desenho a alguns trará à recordação dos tempos do "major Alvega", serve-me de suporte à nota sobre um debate em que participei esta manhã, comemorativo do aniversário, sobre os desafios da língua portuguesa no mundo, com colegas de vários países lusófonos, no Pavilhão de Portugal do Parque das Nações.

terça-feira, maio 26, 2015

Teresa Paixão


A RTP 2 é o parente pobre da RTP. E, no entanto, sob a mão culta e imaginativa de Teresa Paixão, o canal dá hoje, cada vez mais, grandes lições de qualidade televisiva, em sinal aberto, a muita gente que anda aí pelo cabo.

Um grande abraço de parabéns, Teresa! Viva a televisão pública!

Acordar sereno

Nos tempos da “outra senhora”, o discurso oposicionista dizia que os portugueses ansiavam por ter a certeza de que, quando alguém lhes batia à porta de manhã cedo, era o padeiro e não a polícia política. Os padeiros, ou os leiteiros, já não batem diariamente à nossa porta (infelizmente!) e a polícia política desapareceu. A democracia pretendeu regular o arbítrio e, em tese, dar sossego a um cidadão que não deva nem tema.
 
Nos dias de hoje, os portugueses anseiam por uma sociedade previsível, continuam a não gostar de más surpresas, estando contudo preparados para as mudanças que lhes sejam benéficas. A sociedade democrática tem a mudança no seu ADN. Ao colocar regularmente aos eleitores a possibilidade de escolhas, abre o caminho à alteração das regras da sociedade, mas, sempre e só, com o objetivo de melhorar a qualidade das políticas públicas, de oferecer aos cidadãos soluções coletivas mais favoráveis à realização dos seus interesses individuais.
 
Porque não é de admitir que os programas políticos apresentem novas propostas apenas pelo capricho de “fazer diferente”, é suposto que a imaginação de quem se propõe mudar o “statu quo” não ultrapasse nunca esse limiar de responsabilidade cívica. Olhando para o que o principal partido da oposição agora propõe – e que, no essencial, está já à vista dos futuros eleitores -, parece evidente que tal vai nesse caminho.
 
Nos últimos anos, esta espécie de “suspensão da democracia”, que o programa da “troika” e os excessos locais de zelo nos trouxeram, acarretou uma instabilidade sem precedentes na vida dos portugueses. Era inevitável? Se o respeito pelas pessoas, em especial pelas mais idosas, mais frágeis e mais desprovidas de recursos, tivesse sido a regra orientadora da execução das políticas, o país não teria mergulhado nesta angústia ansiosa de que ainda se não libertou.
 
A arrogância autoritária com que hoje se mudam as regras, com que unilateralmente se reformula o contrato entre o cidadão de boa fé e o Estado, em que a instabilidade fiscal e legislativa em geral passou a fazer parte do nosso quotidiano, em que uma espécie de administração “kafkiana” se converteu numa instância inapelável, tudo isso induziu nos portugueses uma profunda síndroma de desconfiança. Nos dias que vivemos, está criada a sensação de que nada pode ser dado por assente ou adquirido, porque o que era verdade ontem pode deixar de sê-lo amanhã, sem uma desculpa, sem uma justificação, no fundo, sem respeito pelos cidadãos.
 
Se há um conselho – e um só – que eu possa dar àqueles que se propõem como alternativa para tutelar o Estado nos próximos anos é o de que procurem transmitir aos portugueses a certeza de que tudo farão para que eles possam vir a acordar, todos os dias, sem o temor de que esse mesmo Estado lhe vai trazer más surpresas e mudanças drásticas e incómodas à sua vida e das suas famílias. Alguns anos vividos nessa simples mas essencial estabilidade poderiam ajudar muito a recuperar a confiança perdida, reconciliando os cidadãos com o seu Estado.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

A ler vamos...


José António Inácio de Sousa Quitério, conhecido como José Quitério, de quem aqui já muito se falou, homem que deu à cultura da alimentação em Portugal grande parte da sua vida, acaba de publicar este seu quinto livro, onde reúne textos magníficos, que nos ensinam e dão muito prazer.
 
Se pudesse, publicava aqui essa elegia que se chama "O Adeus português ao Bacalhau", um texto imperdível que este livro também acolhe, onde a História se cruza com a cultura e a cultura da nossa culinária, um fresco nacional onde todos estamos representados.
 
Muitas vezes, no final das noites, nas madrugadas em que hesito entre a escolha da última leitura, regalo-me com um pedaço de um texto de José Quitério como faço com as crónicas de Manuel António Pina ou de Miguel Esteves Cardoso ou com a poesia de Alexandre O'Neill. São eles, entre outros, que, com o seu humor saudável, me mantêm bem acordado para as coisas da vida, antes de ir dormir.
 
Leiam este livro de José Quitério. Garanto que não se arrependerão!

segunda-feira, maio 25, 2015

Terei olhado os jacarandás?


Entre abril e junho, em alguns locais de Lisboa, florescem os jacarandás. É uma árvore que alia a beleza a algum incómodo, porque o seu fruto, quando tomba sobre a pintura dos automóveis, não deixa os respetivos proprietários em excessivo contentamento.

Tal como a parte superior da rua Castilho, a avenida dom Carlos I (nunca percebi por que se diz "primeiro", porque nada indica que vá haver um "segundo"...) parece-me ser a artéria da capital onde os jacarandás oferecem um panorama mais deslumbrante (agora me lembro que, no jardim da casa onde vivi em Brasília, havia também um jacaradá fabuloso!).

A "dom Carlos" foi, em 1974, o local onde o MES (o então recém-criado Movimento de Esquerda Socialista) tinha as suas instalações, em dois prédio diferentes. Já me tenho perguntado se, à época, a nossa militância (eu sempre fui um sofrível militante) nos permitiu atentar na beleza do arvoredo da artéria. Duvido muito! Embora as coisas e as pessoas bonitas não fossem indiferentes a uma geração que se entretinha então a fazer a Revolução, posso imaginar que o ritmo desses dias (e, principalmente, dessas noites) não dava espaço para contemplações dessa natureza. É que só uma certa maturidade nos conduz a parar perante algumas coisas (e também pessoas) que, por muito evidentes "ali à volta", tendemos a não olhar com a atenção devida.

Ao andar pela cidade, reparei uma vez mais nos jacarandás. Mas, passados todos estes anos, só há horas descobri que, no largo do Rato, também há jacarandás. Não deixa de ser curioso...   

domingo, maio 24, 2015

Sem saudades

Náo há nenhuma razão particular nem nenhum motivo próximo para que aqui recorde uma pequena historieta que o meu pai me contava, em criança, e que sempre muito me impressionou. Só o facto de a ter relatado a um amigo, hoje, durante uma conversa.

Era a propósito de um cavalheiro que, nos anos 20 do século passado, estava emigrado no Brasil. Era um homem relativamente abastado, pelo êxito obtido nos seus negócios. Para trás, deixara a família, numa aldeia nos arredores de Viana do Castelo. Cada três ou quatro anos, regressava à terra, nessas longas viagens de barco que o aproximavam ou separavam da mulher e dos filhos.

Invariavelmente, o convívio com a família distante "acabava mal". Depois de algumas discussões, que se agravavam nos últimos dias da sua estada na aldeia, acabava quase sempre por bater nos filhos, numa atitude que chocava os seus amigos.

Um deles ousou um dia perguntar-lhe a razão desse comportamente, tanto mais que os filhos manifestamente gostavam dele e sofriam com a sua ausência. A resposta do homem, na rudeza de uma cultura comportamental em que a exposição do afeto não era muito comum, foi surpreendente: "É porque gosto muito deles que lhe bato, nas vésperas da minha partida. Vou estar de novo fora muito tempo, até posso morrer por lá. Por isso, ao bater-lhes, espero que sofram menos com a minha ausência, que tenham menos saudades de mim"

Diplomatas


Há dias, descobri por acaso, numa livraria, um pequeno livro editado pela Universidade Católica Editora que recolhe os testemunhos pessoais de seis embaixadores portugueses sobre o futuro da União Europeia. Trata-se da transcrição de palestras feitas em 2013 e 2014 pelos nossos embaixadores em Madrid, Roma, Londres, Berlim, Dublin e Paris - respetivamente, Álvaro Mendonça e Moura, Manuel Lobo Antunes, João de Vallera, Luís de Almeida Sampaio, Bernardo Futscher Pereira e José Felipe Moraes Cabral.

Lamento imenso que este livro não tenha tido a divulgação que merece. Cada um a seu estilo, com perspetivas e metodologias de abordagem diferentes, estes meus colegas, também muito diferentes entre si, apresentam um magnífico fresco de reflexões sobre a Europa, lida esta a partir dos países onde estão ou estiveram acreditados.

Tenho pena que a classe política portuguesa e a nossa comunicação social não leia com atenção estes trabalhos, porque talvez pudesse, através deles, avaliar da excecional qualidade de observação da nossa diplomacia, do modo atento como defendem o interesse português no contexto da União Europeia e do mundo, bem como da profundidade, culta e profissional, da sua abordagem. É que, ao fazê-lo, talvez pudessem diluir algumas ideias preconceituosas sobre aquela que é uma grande carreira de serviço público, por vezes caricaturada e muito mal tratada. 

sábado, maio 23, 2015

Joaquim Durão


Há menos de dois anos, publiquei aqui este texto:

"Há pessoas que perdemos de vista, às vezes por anos, e que, por um acaso, voltamos a reencontrar. Ontem, voltei a cruzar uma figura que as novas gerações provavelmente desconhecem mas que, décadas atrás, foi um nome destacado do desporto nacional, imensamente popularizado pela televisão. Refiro-me ao xadrezista Joaquim Durão.

Conhecemo-nos em Angola, quando ele foi por lá representar o xadrez português. Encontrámo-nos depois, em outras ocasiões. Curiosamente, seria de novo Angola - ou melhor, uma conversa sobre um artigo que ontem publiquei sobre as relações luso-angolanas - a "juntar-nos".

Joaquim Durão tem hoje 82 anos e uma história notável contada no curto filme (6 minutos) que pode ser visto aqui."

Revelo agora que nos "juntámos" nesse dia 17 de outubro de 2013 numa longa conversa telefónica, por sua iniciativa, a felicitar-me por um artigo que eu tinha escrito num jornal sobre as relações luso-angolanas. Disse-me então coisas muito simpáticas, porque, sem eu saber, seguia a minha vida com alguma atenção. Lembrou-me ter estado no lançamento de um livro meu, uma surpresa muito agradável que eu também não tinha esquecido. Tomei a iniciativa de lhe enviar outro que ele não possuía. Nunca mais falámos.

Joaquim Durão fazia parte das minhas antigas memórias televisivas. Aprendi a "mexer as pedras" com ele no écran. Foi ele quem, com o seu estilo agradável e didático, me fez despertar o gosto pelo xadrez. Possuo uma foto do meu pai a jogar uma "simultânea" com Joaquim Durão, nos claustros do Governo Civil de Vila Real, em que havia conseguido um empate com o mestre, feito de que muito se orgulhava. Em 1984, Joaquim Durão foi a Angola, onde o seu prestígio como xadrezista era imenso. Em alguns dias consecutivos, em jantares em minha casa, nesses tempos poucos fáceis da vida de Luanda, criámos uma relação de forte simpatia, que perduraria para sempre.

Soube que Joaquim Durão morreu, há três dias. Se não fosse uma banalidade, eu diria que perdeu o seu último jogo, numa vida felizmente cheia de grandes vitórias. Mas não sei dizer melhor. Deixo aqui o meu muito sincero pesar à sua família.

Ainda sobre o meu voto



A propósito do artigo "A cara", que publiquei no "Jornal de Notícias" e aqui reproduzi, em que defini o perfil daquele em quem votarei para primeiro-ministro, Helena Sacadura Cabral, numa simpática nota no seu blogue, inquire de mim: "só me resta perguntar se ele conseguiu, sempre, encontrar ao longo dos anos em que terá votado, os políticos que cumpriram com este seu retrato. É que, basicamente, os votantes desejam sempre que o modelo seja este. Todavia o aumento inegável da abstenção parece demonstrar o contrário..."

É uma resposta difícil, se a queremos dada com sinceridade. E eu vou ser sincero sobre os meus votos, de toda a espécie. Que exerci várias vezes em Lisboa, outras no "círculo da Europa", mais do que uma vez em Vila Real (onde desde há uns anos estou inscrito!) e também no "círculo do resto do Mundo".

Desde que comecei a votar - a primeira vez foi em 1969 - não votei sempre da mesma maneira, longe disso!, mas votei invariavelmente no mesmo sentido, "if you know what I mean"... Cheguei a votar em partidos e pessoas que sabia, à partida, que não tinham a menor possibilidade de serem eleitos, quase apenas para aferir estatisticamente quantos "maduros" seguiam a mesma e teimosa opção. Votei, por vezes, mais contra certas pessoas do que a favor das que beneficiaram do meu voto, porque detestava a ideia de ver eleitas as primeiras (numas vezes tive sucesso, noutras não). Votei em favor de partidos diferentes, em eleições autárquicas e legislativas próximas, embora, como disse, sempre "no mesmo sentido". Votei em candidatos e partidos que foram derrotados e nunca me arrependi de nenhum desses votos, sem exceção. Abstive-me algumas (poucas) vezes, nunca votei branco ou nulo. Nunca votei (nem votarei) num qualquer referendo: levo a família ao local de voto e fico à porta. Acho o referendo um instituto caricatural e populista.

Volto agora à pergunta da Helena. Se já houve políticos que cumpriram o que deles esperava com o meu voto? Claro que sim. Dois presidentes e dois primeiros-ministros. Os quatro cumpriram, no essencial, aquilo a que se tinham comprometido a fazer e que eu esperava que fizessem. E, nas duas eleições que aí vêm, vou fazer o mesmo, exatamente com a mesma confiança. Porque vou votar em pessoas de bem - só voto em pessoas que, à partida, tenho por pessoas de bem -, o que me sossega duplamente: faço o que puder para que sejam eleitos e fico também de bem com a minha consciência. 

sexta-feira, maio 22, 2015

Paulo Castilho


Sou amigo e colega de profissão de Paulo Castilho. Mas sou, igualmente e não por essa razão, um leitor atento e fiel de tudo quanto publicou até agora. Gosto da sua escrita límpida, sem artificialismos, num registo que ressoa a alguma literatura anglo-saxónica. Paulo Castilho tem uma maneira muito própria de, nos seus livros, olhar as mulheres e os mundos que elas criam à sua volta. Por tudo isso, porque já tinha passado demasiado tempo sem que um seu novo romance tivesse surgido, estou muito curioso de ler "O Sonho Português", que imagino vá ser um sucesso na Feira do Livro que aí vem.

A cara

 
Os socialistas apresentaram as ideias centrais do seu programa eleitoral. Há quem acuse o texto de ter uma preocupação tão obsessiva em ser realista que, porventura, alguns o verão como pouco mobilizador.
 
Nos seus detratores, para além dos sons normais da polémica, nota-se alguma dificuldade em colar ao texto um rótulo de vendedor de uma irresponsável ilusão.
 
Um dos fatores descredibilizantes da nossa vida política prende-se com o facto dos programas eleitorais terem quase sempre pouco a ver com a prática dos partidos, quando chegados ao poder. Chamemos as coisas pelos nomes que têm. Os portugueses - não só os portugueses - parece aceitarem, sem grande escândalo, que os políticos têm uma espécie de licença para mentir. E, em lugar de os punirem fortemente nas eleições seguintes, muitos acabam por aceitar isso como um "fact of life", como se estivesse na sua inescapável natureza serem, em geral, uns relapsos e incuráveis pantomimeiros. É como se, ao votar neles, os insultassem: "eu sei que este tipo é um mentiroso, mas tudo bem!". O grau de "respeito" que daqui decorre para a imagem da classe política parece-me óbvio.
 
Romper com este ciclo de ilusão desencantada é um dever de quem quer estar na política como uma pessoa de bem. E ainda há muitas pessoas de bem na política, se bem que haja outras que - tira-se-lhes "pela pinta", basta olhar-lhes para a cara! - se percebe logo "ao que andam". Estar na política como pessoa de bem obriga a cumprir o que se prometeu, a não se enredar na desculpa estafada de que a realidade trouxe surpresas e de que, afinal, as coisas não eram aquilo que pareciam. Um político que quer ser uma pessoa de bem, se acaso não pode pontualmente cumprir algo a que se comprometeu, pede desculpa, explica isso ao país, não tenta "jongleries" verbais, meias-verdades que querem fazer passar os outros por parvos. A humildade é um sinal de caráter.
 
Nas eleições legislativas que aí vêm, para além dos partidos e dos seus programas, estaremos a escolher a pessoa que vai dirigir o futuro Governo. Dir-me-ão que não é bem assim, que são os deputados que iremos selecionar. A mim, contudo, importa-me essencialmente a cara daquele a quem eu posso pedir contas pelo voto que lhe dei. E, neste jogo de caras, de credibilidade, eu só estarei ao lado de uma pessoa de bem, de quem tenha um passado político e cívico cristalino e intocável, de alguém a quem nunca tenha visto fazer o contrário daquilo que prometeu.
 
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, maio 21, 2015

Felicidade ?

Encontrei-o esta tarde no Chiado. Já o não via há bastante tempo. Eu vinha de um almoço, com pressa, porque tinha um compromisso para o qual já estava atrasado. Ele passeava-se, com calma, já um pouco bronzeado, gozando a sua reforma. Lancei-lhe:
 
- Gosto de te ver com esse ar feliz!
 
- É verdade, tenho saúde, não tenho problemas pessoais e o dinheiro vai dando. A felicidade, tenho vindo a aprender, é uma coisa simples.
 
- Simples, uma ova, meu caro!
 
- Estás enganado! Basta que nos deitemos a desejar que o dia seguinte seja pelo menos tão bom como o que acaba.
 
Pensando bem, ele é capaz de ter razão. Esta noite vou lembrar-me disso.

quarta-feira, maio 20, 2015

Ele há cada coincidência!



20 de maio de 1965. Um grupo de arruaceiros da ditadura, enquadrados por elementos da Legião Portuguesa, assaltava as instalações da Sociedade Portuguesa de Escritores, que o governo encerraria formalmente no dia subsequente. O motivo foi a atribuição à obra "Luuanda", de Luandino Vieira, um nacionalista angolano então preso no campo de concentração do Tarrafal, do prémio anual de literatura da Sociedade. António Valdemar conta a história hoje no Público. Membros do júri do prémio foram então detidos. Entre os elementos da direção da SPE que não se solidarizaram com os seus colegas figurava o nome de Luís Forjaz Trigueiros (1915-2000), jornalista, escritor e crítico. Por esse seu gesto, pagou para sempre um preço no mundo intelectual português.
 
20 de maio de 2015. Passou exatamente meio século, dia por dia, Há minutos, num alfarrabista de Campo de Ourique, por cinco euros, adquiri o "Diário 1962-1972" de João Palma Ferreira. Era da biblioteca de Trigueiros, com um cartão com a dedicatória: "Ao Luis Forjaz Trigueiros, recordando tantas amabilidades, com a gratidão do seu sempre admirador e amigo, João Palma-Ferreira, Salamanca, Abril, 72" . (Para tornar mais críptica a compra, vem dentro um bilhete para uma "poltrona" no Jardim Cinema, sessão da noite de 1 de março de 1969. 10 escudos, para que conste). 

"Observador"


Faz agora um ano que um grupo de investidores criou o "Observador". Trata-se do primeiro jornal informático em Portugal de acesso aberto, que reproduz, sem o copiar, o espanhol "El Confidencial". O projeto, dirigido por David Dinis e José Manuel Fernandes, tem real qualidade e, na minha opinião, tem vindo a melhorar como produto jornalístico.

A coluna de opinião do "Observador" foi, desde o primeiro momento, a sua marca de identidade. Um sintomático artigo ontem nela publicado por Maria João Avillez revela isso de uma forma quase incauta: trata-se de um projeto destinado a dar direito de cidade às várias direitas que aí andam pela praça pública, parte delas sempre um pouco "mal à l'aise" com o estigma da velha ditadura a que alguma esquerda teima em colá-las. Nele se acolhem alguns notórios "arrependidos" (a começar por José Manuel Fernandes e Manuel Vilaverde Cabral) até ao conservadorismo bloguista (os blogues estão hoje a ficar fora de moda), onde as escolas ideológicas da Universidade Católica, do Compromisso Portugal e da velha revista Atlântico estão também fortemente presentes. Na economia como nas coisas da vida, o "Observador" hesita entre correntes liberais (da escola de Chicago a uma linha mais tocada pela democracia cristã) até perspetivas da direita mais radical, tendo dele praticamente desaparecido qualquer matriz social-democrata.

Para mim, leitor atento e regular, não tenho a menor dúvida, identificando bem os financiadores do projeto: a criação do "Observador" teve como objetivo, a montante do que previam ser o risco do fim deste ciclo de tomada do poder pela direita (governo e Presidência), apoiado na oportuna ideologia da "troika", tentar captar politicamente um "novo" Portugal, da casa dos 30 e 40 anos, que aí anda com maior frequência das redes sociais e dos meios informáticos. No fundo: tentar evitar que a esquerda possa vir a ganhar as ocasiões eleitorais de 2015 e 2016. Nada que seja ilegítimo em democracia, diga-se, desde já.

Devo dizer que considero saudável que a direita, em democracia, explicite de cara aberta (ia dizer "de cara ao sol", mas os meus amigos de direita chamar-me-iam provocador) as suas ambições e os seus reais desígnios. Isso é preferível a uma ínvia cultura ideológica que só se qualifica por contraponto, uma espécie de envergonhada "não esquerda", temerosa de assumir o rótulo. Porque acho isso? Porque, nas batalhas, facilita o combate ver os adversários bem de frente.

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