sexta-feira, abril 11, 2014

Palhaçada

Não gosto muito de usar estes termos para uma data a que estou ligado afetivamente, mas acho que a polémica que se está a criar em torno da comemoração dos 40 anos do 25 de abril ameaça converter, uma vez mais, uma evocação que deveria ser festiva numa triste romaria de discursatas, com aproveitamento oportunista por todos, para efeitos políticos de conjuntura. Continuo a pensar o que sempre pensei: o 25 de abril deveria ser comemorado como uma grande festa popular, como uma elegia à liberdade, com o povo na rua numa grande celebração coletiva. Sem um único discurso.

O que, uma vez mais, vai acontecer em São Bento é uma espécie de "assembleia geral" anual do 25 de abril, com os vários "accionistas" a fazerem uma avaliação do "relatório e contas" apresentado pela administração de plantão. Cada um fará o seu "número", uns aproveitando o ensejo para denunciar os "desvios" ao "espírito" de abril, outros tentando passar por entre os pingos das críticas, disfarçando mal a forma como historicamente sempre conviveram com o significado da data. Como há uma eleição à porta, o ensejo irá funcionar como um despudorado tempo de antena de campanha, com os tenores escolhidos a preceito, tentando tirar efeitos cénicos para conquista de prosélitos, para o voto que aí vem.

Os "media" do país europeu com mais canais televisivos de "informação" explorarão, até à exaustão, as "nuances" e as contradições dos adjetivados pronunciamentos, a começar pelo penúltimo texto a ser lido na ocasião pelo ocupante de Belém, que é sempre um "must" na exegese da maratona declaratória da data. De passagem, ouvirão os ex-capitães, todos bem cravados ao peito, irados como lhes compete com a retirada da sua palavra na cerimónia, alguns remoendo patéticas ameaças de um "remake". Os da esquerda mostrarão a sua "indignação" com essa injustiça, os do "outro lado" ("esquerda" assume-se, "direita" esconde-se; por que será?) desvalorizarão o facto, com o argumento de que ninguém é "proprietário" da Revolução - também não lhe chamarão assim, claro, em especial não utilizarão a maiúscula.

Ao final do dia, aquela que deveria ser uma festa da liberdade, acabará transformada num gigantesco "Prós e Contras", com Fátima Campos Ferreira substituída, sem especial vantagem, por Assunção Esteves. Depois queixem-se de que as novas gerações se sentem cada vez mais desligadas do 25 de abril!

quinta-feira, abril 10, 2014

O "22 de Paio Pires"

Há dias, num debate, tive uma ideia "peregrina": falar do "22 de Paio Pires". Havia uma boa razão para isso: estava a tomar a palavra perante um auditório da localidade de Paio Pires. Mas que diabo é o "22 de Paio Pires", perguntarão alguns? Pois é, leitor, foi pela certeza de que a esmagadora maioria do auditório de Paio Pires, ao qual eu falava, não fazia a mais leve ideia do que era o "22 de Paio Pires" que decidi não abordar o tema. Esta é, portanto, desculpem lá!, uma histórieta sobre um "não evento".

O "22 de Paio Pires" foi um divertidíssimo "sketch", interpretado por um ator de que a maioria dos leitores deste blogue também nunca ouviu falar: Humberto Madeira (1921-1971). Madeira tentava ligar para o número de telefone 22 da localidade de Paio Pires e, sequencialmente, saiam-lhe à linha uma diversidade de interlocutores errados, o que tornava a conversa hilariante. 

Falo disto pela circunstância, que cada vez mais me acontece, de ter de cuidar, em conversas ou intervenções públicas, em escolher referências que possam ser entendidas pela generalidade das pessoas presentes. Sei que isto é claramente uma questão etária, mas confesso que começa a ser angustiante ter de olhar em volta, medindo o conhecimento médio do auditório, antes de citar um facto, um autor ou fazer uma graçola com base numa citação.

Tempos atrás, comecei a contar num grupo de jovem colaboradores uma história relacionada com Pedro Moutinho, uma das mais populares figuras da rádio dos anos 40 a 60. Conheci Moutinho bastante bem, já depois do 25 de abril, em circunstâncias curiosas - mas só relevantes em função do conhecimento do passado de Pedro Moutinho. Ele deixara de ser locutor e fora mesmo algo hostilizado pelo regime democrático. A certo passo da minha narrativa, pela cara dos presentes, dei-me conta de que estava a fazer verdadeira "geometria no espaço". Ninguém ouvira alguma vez falar de Pedro Moutinho, pelo que a minha historieta pessoal com este último não tinha, aos seus ouvidos, a menor relevância. Os sorrisos simpáticos que dedicavam ao que lhes dizia relevavam mais de uma piedosa tolerância do que de uma genuína atenção. Aprendi a lição. 

Talvez por isso, abstive-me de contar o episódio do "22 de Paio Pires". Mesmo em Paio Pires. 

quarta-feira, abril 09, 2014

A memória de Jouyet

Jean-Pierre Jouyet, antigo secretário de Estado dos assuntos europeus de Nicolas Sarkozy, acaba de ser nomeado secretário-geral da Presidência da República francesa. Trata-se de um lugar da maior importância no xadrez político de Paris. Jouyet é um homem muito próximo de François Hollande, um dos seus maiores amigos, e já em 2012 o seu nome "corria" para o cargo. É uma figura de uma extrema cordialidade, com quem criei uma ótima relação, com uma leitura muito interessante do papel da França na Europa. Numa sociedade tão polarizada como a francesa, diz muito da sua qualidade o facto de ter sido aceite a sua "travessia" da fronteira esquerda-direita, isto é, integrar o "core" do poder socialista depois de ter pertencido ao governo de Sarkozy. Para quem conhece a França, é obra!

No termo da presidência francesa da União Europeia, em 2008, Jouyet publicou um livro que passou praticamente despercebido na vaga da literatura "de conjuntura" em que a França é fértil. Chamava-se 'Une Présidence de Crises". A certo ponto do livro, Jouyet critica fortemente a Comissão Europeia sobre a gestão da crise de 2008. Passo a traduzir um extrato significativo: "Ela (a Comissão) deveria ter antecipado muito mais e ter modificado a sua linha da conduta muito mais cedo. Na sexta-feira (10 de outubro de 2008), enquanto que Fortis (importante instituição financeira do Benelux) está à beira da falência, José Manuel Barroso, que eu cruzo em Nova Iorque, quase que se ri de mim: "Jean-Pierre, estás enganado, diz-me ele. Não é necessário alarmar as pessoas. Trata-se, antes de tudo, de uma crise americana". Viu-se!

Lei da rolha

Pinto da Costa foi suspenso por criticar a atuação de um árbitro. Sou insuspeito da menor simpatia pelo FCP, mas espanta-me que a sociedade portuguesa conviva sem uma revolta com esta verdadeira ditadura da "justiça" desportiva, que impede que um dirigente, seja ele quem for, possa considerar má ou medíocre, em público, uma arbitragem, ou tenha uma livre opinião sobre aspetos da prestação de um cavalheiro do apito, no pleno uso da liberdade que a lei comum concede a todos nós. É claro que, se na formulação dessas críticas, alguém vier a atingir a honorabilidade da pessoa do árbitro, lá estarão os tribunais comuns para julgar a eventual ofensa. 

Esta "lei da rolha" que vigora nos órgãos futebolísticos - e atinge jogadores, treinadores e dirigentes - é em absoluto contrária à liberdade constitucional de expressão ganha no 25 de abril. E por que será que ninguém fala disto?

João Paulo Guerra

A Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu ontem o prémio "Igrejas Caeiro", dedicado a uma personalidade destacada da rádio portuguesa, a João Paulo Guerra. Por lá estivemos, amigos, familiares e admiradores do João, a dar-lhe o merecido abraço.

Foi uma cerimónia simples, talvez demasiado simples, pelo menos para o meu gosto. Senti pena que a SPA não tivesse cuidado em aproveitar este ensejo para criar um momento que permitisse sublinhar devidamente o notável percurso radiofónico de João Paulo Guerra, enquadrando os seus diversos tempos na rádio com o trabalho desenvolvido em jornais, relevando também a sua obra publicada e, porventura, recortando alguns aspetos mais interessantes do próprio perfil pessoal do homenageado. João Paulo Guerra foi e é uma figura de primeira grandeza na rádio em Portugal. Se este prémio da SPA o honra a ele, o contrário também não deixa de ser verdade.

Em tempo: ouçamos o João Paulo aqui.

terça-feira, abril 08, 2014

Benita Ferrero-Waldner

Era o dia dos meus anos, naquele início de 2000. Fazia um périplo pelas capitais europeias para tentar ultrapassar as dificuldades surgidas no arranque das negociações da Conferência Intergovernamental que iria fixar o Tratado que viria a chamar-se de Nice. Vinha de Estocolmo e o Falcon, já de regresso a Lisboa, parou em Madrid, onde eu iria ter um encontro com o meu colega, o secretário de Estado espanhol dos Assuntos Europeus, Ramón de Miguel.

À saída do avião, tinha dois recados.

O primeiro era de Lisboa: no termo da reunião com os espanhóis, deveria fazer uma declaração à imprensa sobre a decisão da Áustria de constituir um governo que incluía um partido de extrema-direita, que fora anunciada na noite anterior. Competia-me explicar o modo como a presidência portuguesa da União Europeia via a questão, que já estava a agitar toda a Europa.

O segundo recado era mais intrigante. O meu colega espanhol mandava avisar-me que a indigitada nova ministra dos Negócios Estrangeiros austríaca, Benita Ferrero-Waldner, estava secretamente de visita a Madrid e queria encontrar-se comigo, de forma discreta.

Eu conhecia Benita muito bem. Ela fora, até então, responsável pela pasta dos Assuntos Europeus no governo do seu país e havíamos criado, ao longo de quase cinco anos, uma excelente relação pessoal. Viera recentemente a Lisboa, a meu convite, e recebera-me em Viena, em anos anteriores. Diplomata de carreira, antiga chefe de protocolo das Nações Unidas, é a mais latina de todos os austríacos que conheci, o que seguramente se fica também a dever ao facto de ser casada com Francisco, um simpático espanhol. Benita, aliás, fala um impecável castelhano.

Sem revelar o inesperado encontro que ia ter aos três jornalistas que me acompanhavam - Alexandra Marques, Lassalete Marques e Paulo Nogueira -, fui discretamente falar com Benita numa sala do Palácio de Santa Cruz, as "Necessidades" espanholas. O que foi dito nessa conversa fica para ser analisado em outra altura. Apenas posso dizer que foi algo difícil compatibilizar essa conversa com a declaração que, depois, tive de fazer na conferência de imprensa.

Este e outros episódios desse tempo complexo foram ontem lembrados por ocasião de um jantar em Lisboa, a que Benita esteve presente, juntamente com Luís Amado, outro dos seus amigos portugueses. Ela teve a simpatia de recordar o modo natural como Jaime Gama e eu próprio a acolhemos no primeiro Conselho de Ministros da UE a que assistiu já como MNE, contrastando com a atitude de muitos outros colegas, que positivamente a ignoraram. Disse-me que nunca esqueceu esse nosso gesto e estou em crer que talvez isso tenha contribuído para que a sua primeira visita a um parceiro comunitário, após o levantamento das "sanções" à Áustria, tivesse sido a Portugal.

Benita Ferrero-Waldner ficou vários anos como ministra. Encontrei-a por diversas vezes em Viena, quando por lá trabalhei junto da OSCE. Viria a ser ainda comissária europeia, tendo tido um papel essencial na questão da parceria estratégica com o Brasil, aquando da nossa presidência de 2007. Hoje dirige uma fundação para as relações entre a Europa e a América Latina, com sede em Espanha.

(Quem tiver curiosidade sobre o tema das sanções à Áustria em 2000, pode consultar aqui e aqui)

segunda-feira, abril 07, 2014

A entrevista de José Sócrates

Se a RTP pretendia aumentar as audiências do programa "A entrevista de José Sócrates" (estou em crer que o nome "A opinião de José Sócrates" não pode sobreviver por muito tempo, no formato atual) tê-lo-á conseguido plenamente. O episódio de ontem foi delicioso para quem a ele assistiu e, agora, todos aguardaremos as cenas dos próximos capítulos.

A vida e a curva

Ontem, na festa de aniversário de um amigo - um tempo de reencontro e também de poesia - alguém lembrou este belo poema de Alberto Caeiro. Já o não ouvia há uns bons anos, mas fez-me muito bem recordá-lo.

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

domingo, abril 06, 2014

As mulheres e a Europa

Quando andei pelos assuntos europeus, as mulheres eram largamente predominantes nos cargos técnicos especializados. Na primeira estrutura criada aquando da nossa adesão às Comunidades, trabalhei num "open space" rodeado de colegas femininas, apenas com um outro homem em toda a imensa sala. Fui, aliás, o primeiro funcionário diplomático, na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a ser chefiado por uma técnica, exterior à carreira. Anos mais tarde, no meu gabinete, quando membro do governo, chegou a haver um período em que, salvo os motoristas, só tinha mulheres a trabalhar comigo - chefe de gabinete, adjuntas, assessoras e pessoal administrativo. Nas minhas funções, aliás, foram muito raros os homens que nomeei para lugares de chefia.

Lembrei-me disto ontem, num colóquio sobre a Europa em que participei. Além de mim, todas as restantes quatro intervenções especializadas foram de mulheres. Aliás, magníficas prestações. As mulheres continuam "a dar cartas" nos assuntos europeus.

sábado, abril 05, 2014

Isto anda tudo ligado

"Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira, como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade."

(Excerto de "Isto anda tudo ligado" (Lisboa, 1970), do poeta e flaviense Eduardo Guerra Carneiro, que dedico ao comentador ARD)

sexta-feira, abril 04, 2014

Kumba Ialá

Morreu Kumba Ialá, antigo presidente da Guiné-Bissau.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do grupo "amigos da Guiné-Bissau". O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca (atual cônsul-geral do seu país no Porto), e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua expressiva vontade de mudança. Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas com as reticências face à sustentabilidade das políticas que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou entretanto a sensível questão da corrupção. Notei que Kumba Ialá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ele não rouba, não! - e dizia isto, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Ialá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com estas palavras, creio que só a intérprete que ia traduzindo as intervenções do presidente se inteirara do teor da comprometedora declaração. Contudo, a coreografia e o tom de Ialá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam a tradução.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as embaraçantes frases do presidente. E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government".

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

Em tempo: quando escrevi esta historieta, estava longe de pensar que me encontraria, logo dois dias depois, num almoço, com o meu querido amigo Gelson Fonseca, com quem me ri do episódio.

Educação diplomática

O "jet lag" não ajudava nada. Naquele primeiro dia em Seul, mais do que seguir o calendário de eventos daquele seminário, eu morria de cansaço. Mas o "dever" chamava-me: cabia-me co-presidir a um exercício que pretendia retirar, da experiência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, lições para a gestão das tensões na península da Coreia. Coordenava uma delegação multinacional ida de Viena, tendo como meu contraparte o secretário de Estado coreano dos Negócios Estrangeiros, velho amigo de outros postos.

O programa de uma das noites incluía assistir uma peça de teatro coreano, a que se seguia um jantar num restaurante típico. Estafado como estava, passei "pelas brasas" no espetáculo, aproveitando a redução das luzes. Chegados ao restaurante, um espaço tradicional, percebi que nos íamos sentar "à coreana", em almofadas e com as pernas cruzadas sob uma mesa baixa, o que iria pôr à prova os meus sacrificados joelhos. Mas, pronto!, era serviço!

Por feitio, não sou muito dado a experiências gastronómicas radicais e, muito em especial, sou habitualmente avesso a culinárias étnicas. Por isso, à vista dos pratos locais, fui fazendo uma seleção criteriosa sobre aquilo que neles me apetecia comer. Até que chegou o prato principal. Nunca consigo recordar o que era; só sei que era algo "sinistro", pelo cheiro e pela prova. Com alguma arte, fui afastando a comida pelo prato, enquanto alimentava a conversa com o meu contraparte, sentado à minha frente. A certo passo, notando que eu já não comia e muito do que fora servido já estava disperso, o anfitrião coreano perguntou, preocupado:

- Não gosta da comida? 

Senti-me culpado pelo facto de não estar a corresponder à sua gentileza, pelo que me saiu qualquer coisa como isto:

- De forma nenhuma! Estava muito bom! Gostei imenso, mas já acabei.

O que eu fui dizer! O meu amigo coreano, temeroso que eu não tivesse ficado saciado, e apoiado no meu pronto elogio à sua comida nacional, logo mandou vir para mim uma nova dose, idêntica àquela que eu tinha dispersado com tanto cuidado pelo prato. E lá tive eu que comer aquela mistela, desta vez com escassa capacidade de disfarce. Foi uma noite bem penosa, confesso! A educação diplomática, às vezes, tem um elevado preço.

quinta-feira, abril 03, 2014

Novo governo francês

Não vou aqui entrar numa análise personalizada do novo executivo francês, chefiado por Manuel Valls, há pouco anunciado. Seria desinteressante para a maioria dos leitores deste blogue. Mas sempre direi que, tal como o anterior, ele representa uma calibrada representação das várias tendências e "baronatos", num modelo de "apaisement" que vai muito com o sentimento de François Hollande. Afinal de contas, não devemos esquecer que, na ordem constitucional francesa, é o presidente da República quem preside aos Conselhos de ministros, pelo que o governo é "o dele".

Valls não vai ter tarefa fácil, com os Ecologistas fora do executivo, ainda mais livres para o criticarem como vem sendo habitual, com a ala esquerda reforçada ou confirmada em algumas posições importantes (Economia, Educação, Justiça). Os "hollandais" de raíz garantem ou reforçam terrenos decisivos (Finanças, Defesa, Agricultura, Interior, Trabalho), com Ségolène Royale a obter uma pasta importante mas complexa (Ambiente e Energia) e duas suas antigas colaboradoras a preservarem áreas socialmente relevantes (Igualdade e Cultura). Resta alguma continuidade e a fusão de pastas, bem como certas promoções. 

"Much ado about nothing", apetece-me dizer, citando Shakespeare, ao verificar a composição deste novo governo. Por razões óbvias, não ouso traduzir o título da obra anglosaxónica por "a montanha pariu um rato"...

quarta-feira, abril 02, 2014

Escolher

Aqui na Polónia, fiz hoje parte de um pequeno painel de seleção para emprego de jovens com idade inferior a 26 anos, todos com elevadas qualificações académicas, na esmagadora maioria dos casos já com alguma experiência, obtida através de estágios profissionais ou de outro tipo de atividade pós-académica. Era um grupo de escassas dezenas de pessoas, que representavam menos de 1% dos candidatos originais a ingressar na empresa em que trabalho. Dominavam as mulheres. A seleção durou um dia completo e não foi nada fácil. No final, o grupo ficou naturalmente reduzido.

Sinto sempre um sentimento estranho quando intervenho neste tipo de seleção - e isso já me aconteceu no passado, noutros contextos. As coisas são relativamente fáceis quando se trata dos melhores candidatos ou daqueles cuja reprovação não suscita grandes dúvidas. Há apenas que saber descontar o efeito "show off" e as limitações provocadas por um conjuntural stresse. Os problemas situam-se na "zona cinzenta", que abrange quantos nos "dividem". Por mais questões que coloquemos, por muito que os ouçamos, individualmente ou interagindo em grupo, ficamos na incerteza se contribuir para o seu recrutamento é um erro nosso que a empresa vai ter de pagar ou se, ao invés, não será injusto estarmos a arruinar todo o seu esforço. É que um simples "não" de qualquer membro do júri é, neste contexto, suficiente para afastar um candidato.

O que de fascinante teve este exercício foi a possibilidade de conversar, por horas, com pessoas que representam uma nova geração, que nos ajudam a perceber melhor o que é a Polónia de hoje e os anseios daqueles que irão integrar as suas elites. Foi muito interessante verificar a matriz cosmopolita destes jovens, desde logo traduzida no inglês em que os exames se processaram, a importância que para eles teve o programa Erasmus, a leitura diversa que fazem dos vários mundos exteriores com que contactaram e, muito em especial, o modo como olham a construção das suas carreiras, a grande aposta que fazem na sua valorização pessoal, a qual é, para muitos deles, bem mais relevante que a obtenção de um mero emprego. No final, ficamos felizes pelos que escolhemos, mas acabamos sempre o exercício com alguma dúvida relativamente a quantos mandámos de volta para o mercado de trabalho.

terça-feira, abril 01, 2014

As Europas

No "lounge" da Lufthansa onde me encontro, no aeroporto de Munique, estamos, à vontade, mais de meia centena de pessoas. Não se ouve uma mosca, ou melhor, poder-se-ia ouvir alguma, se acaso as houvesse por aqui. O ruído das rodas das malas, toques de talheres ou de loiça, passos no soalho de madeira e o folhear de jornais é quase tudo o que surge como fundo. Estou aqui há quase uma hora e, acreditem!, nem um único telemóvel tocou alto. A esmagadora maioria dos olhos não encara os outros, concentra-se nos laptop, nos tablet ou no visor dos smartphones. Quem fala, fala baixo, como se estivesse numa biblioteca, condicionando os outros a proceder de forma idêntica. Até duas crianças se silenciam em frente de dois iPads. Há minutos, uma japonesa deu uma leve gargalhada e logo suscitou teutónicos sobrolhos. Não sei se gosto disto, mas imagino que quem gosta dificilmente deve aceitar o que nós somos.

Viagem


Paulo Barbosa (1945-2014)

Quando somos novos, a diferença de idades conta muito. Lembro-me do Paulo Barbosa, nos tempos de juventude em que Viana do Castelo era destino invariável dos meus agostos. Mas nunca falámos, por essa época, separados pela lógica etária dos grupos de amigos.

Só vim a conhecer o Paulo já na "carreira", para onde havia entrado sete anos antes de mim. A geografia nunca nos aproximou muito, mas tínhamos uma relação pessoal muito agradável. O Paulo era um homem sereno, elegante, com uma ironia fina, decantada de uma leitura amena da vida, que compatibilizou com um percurso profissional seguro e de mérito. 

O Paulo Barbosa morreu no passado sábado. Sabia-o bastante doente, mas não esperava vê-lo desaparecer tão cedo. 

A escolha de Valls

Há um novo tempo na política francesa. A nomeação de Manuel Valls, o enérgico ministro do Interior, que vinha a seduzir alguns setores da direita pela frontalidade do seu discurso securitário, traz para a linha dianteira da ação governativa um "outro" Partido Socialista. Alguns lembrarão, nos próximos dias, que Valls chegou a propôr a mudança do nome do partido, por considerar que o rótulo "socialista" podia ser inconveniente...

Desde logo, fica confirmada, com esta designação, a recente mudança de direção levada a cabo por François Hollande, ao escolher o empresariado como o seu parceiro para o relançamento da economia francesa. Valls tem um pendor liberal (embora estas coisas, em França, devam ser contextualizadas) e sentir-se-á seguramente confortável com esta linha de ação. Assim, na economia, não deve esperar-se muito de novo.

Mas se esta escolha pode "cair bem" num eleitorado mais conservador, ela também poderá vir a ter efeitos divisivos no seio do PSF, cuja ala esquerda já tinha reagido com desagrado ao pacote de medidas anunciado, tido como demasiado "social-democrata" e que, de certo modo, confronta a memória socialista tradicional. Por isso, vai ser interessante perceber que "compensações" estarão preparadas para a esquerda do partido, de que a composição do novo governo será a resposta. Havia a sensação de que Valls tinha feito com algumas figuras deste setor uma aliança tática para a aproximação de uma nova geração ao poder. Veremos como este passo sobrevive. A questão do "nacionalismo económico", que inclui a temática europeia, vai estar, com certeza, em alguma evidência. Valls pode encontrar por aqui um terreno para uma certa ligação à esquerda, tanto mais que o seu entusiasmo pelo tema europeu nunca foi excessivo. Curiosamente, isto está longe de ser contraditório com a prioridade a dar ao mundo das empresas, dada a matriz protecionista do país.

Resta saber qual o futuro papel de Hollande. Com a saída de Ayrault e a nomeação de um primeiro-ministro "a pedido" do país, o presidente perde muito do pouco espaço de manobra que já tinha. Valls vai ser um primeiro-ministro enérgico e visível, o que quase sempre se tem mostrado menos compatível com o presidencialismo da V República. Se tiver sucesso, será ele, com toda a certeza, a tentar a ascensão ao Eliseu em 2017, em nome dos socialistas. Se falhar, depois de experimentada esta que era a cartada mais à direita que os socialistas tinham na mão, o caminho para o regresso ao poder dos conservadores franceses fica definitivamente aberto.

Meu Caro

Longe vão esses dias de 2010 em que você, aqui por Paris, me revelava, entre duas “demi”, a angústia matinal que sentia ao verificar, no Financial Times, o contínuo alargamento dos “spreads” dos “bonds” portugueses. Conhecemo-nos numa operação de “charme” que as suas autoridades por essa época organizaram, para explicar as medidas que tomavam para controlar os indicadores macro-económicos. Para si, eu fazia parte dos “mercados” que era necessário convencer. Para mim, você era o embaixador de um país simpático que lutava para se manter à tona, numa tormenta que não controlava e que revelava cruelmente algumas das suas fragilidades endémicas. Passámos a ver-nos com alguma regularidade.

As coisas complicaram-se, entretanto. A “troika” chegou aí e vi o seu lamento em face da “injustiça” das agências de notação, quando elas “puniam” Portugal porque fazia exatamente aquilo que lhe tinham pedido para fazer. Recordo-me de lhe ter dito que os diabolizados “mercados” não eram uma entidade a que fosse possível exigir racionalidade, muito menos justiça, porque a sua lógica era apenas fazer ganhar dinheiro.

Portugal passou, entretanto, por uma cura de rigor financeiro nunca antes vista. Lembro-me de lhe ter dito da minha admiração pelo caráter estoico do seu povo. Você fornecia-me números sobre o ajustamento já feito, na secreta esperança que eles pudessem animar a perspetiva dos “mercados” sobre o seu país. Pelas conversas que então teve comigo, imagino o que outros seus colegas devem ter feito pelo mundo, para mostrar o vosso esforço nacional.

Antes da sua partida de Paris, e quando lhe notei, a uma mesa do Flore, que ia regressar à “cidade branca”, nome que Alain Tanner chamara a Lisboa, você reagiu: Tanner estava errado, Lisboa era a cidade das cores e eu teria oportunidade de verificar isso, quando o fosse visitar. Tinha razão. Confirmei-o consigo, na semana passada, entre duas “imperiais”, na esplanada “cliché” da Brasileira, sob um sol quase obsceno em Março. Frente a uma loja simbolicamente chamada “Paris em Lisboa”, dei-lhe nota da leitura que, pela Europa, se vai fazendo do vosso processo de ajustamento, das perplexidades que subsistem quanto à sustentabilidade do “retrato” que hoje apresentam e quanto tudo dependerá, no essencial, da estabilização de uma resposta europeia institucionalizada.

Você falou-me, preocupado, da quase impossibilidade de manter o país, por muito mais tempo, sob o peso sobre-humano de austeridade. A propósito, pediu a minha opinião – ironizou, a opinião “dos mercados” – sobre um “manifesto”, que entre vós tinha tido grande impacto, subscrito por gente relevante, que ia desde a direita à extrema- esquerda, sobre a necessidade de encontrar meios de aligeirar o modo de pagamento da vossa dívida pública. Traduziu-me mesmo o essencial do texto.

Agora, de volta a Paris, tendo refletido sobre o assunto, quero felicitá-lo: o “manifesto” é “música” para os ouvidos dos mercados. Quando muitos esperariam que a esquerda portuguesa, e eventualmente alguma direita soberanista, defendessem, pura e simplesmente, o não pagamento de parte da dívida, conseguir juntar todos esses setores numa solene posição comum, que apenas disputa as taxas de juro e as maturidades, constitui um ato de grande responsabilidade. Parabéns! Eu não posso falar pelos “mercados”, mas posso garantir-lhe que eles estarão agora muito mais serenos sobre o que poderão ser as consequências de uma mudança política em Portugal. Ou uma mudança de “cores”, como você diria!

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Hermano Sanches Ruivo

Hermano Sanches Ruivo foi reeleito Conselheiro na "Mairie" de Paris. Conheci-o em 1996, quando Eduardo Prado Coelho me convenceu a ir a Paris para apoiar uma iniciativa da "Cap Magellan", uma estrutura de jovens portugueses que dava os primeiros passos no complexo mundo do associativismo em França, que Hermano já então liderava.

Com uma forte determinação, Hermano Sanches Ruivo tem feito um caminho muito interessante na defesa da especificidade portuguesa no quadro do sistema político francês. É hoje a mais relevante figura dentre os cidadãos de origem portuguesa envolvidos na política francesa. 

Um forte abraço, Hermano!

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...