quarta-feira, novembro 13, 2013

Aos papéis

O país era ainda jovem, o diplomata que o representava naquela reunião internacional também o era. Tinha, além disso, muito pouca experiência e era visível o nervosismo com que intervinha, de forma hesitante, no inglês de regra. O seu embaraço de novato era seguido, com simpatia, por colegas de outras delegações, que ansiavam, para seu bem, vê-lo terminar a intervenção, que se prolongava para além do razoável, naquela conhecida sina de quem não consegue descobrir um final condigno.

A certo passo, querendo referir-se a uma "folha de papel", a precipitação fê-lo trocar a expressão "sheet of paper" pelo seu inverso - "paper of sheet" - tendo a última palavra da expressão soado como uma sua homófona. A sala caiu em gargalhadas. Acontece...

terça-feira, novembro 12, 2013

Há mar e mar...

Em 2006, no Brasil, decidi criar um blogue da embaixada, que eu próprio redigi durante mais de dois anos. Como lema desse blogue, escolhi uma frase de Vergílio Ferreira que sempre me impressionou, pelo seu simbolismo: "Da minha língua vê-se o mar".

Há dias, numa entrevista na televisão (ontem reproduzida parcialmente num jornal), repeti essa frase, ou melhor, disse-a erradamente. "Do meu país vê-se o mar". Fiquei furioso comigo mesmo. Deve ser da idade...

* uma leitora recorda-me ainda o erro vulgar de escrever "Virgílio" em lugar de "Vergílio". Coisa que o escritor não permitiria.

Responsabilidade

Costumo lembrar que, durante a minha carreira diplomática, tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Sem recorrer ao "name-dropping", posso dizer que alguns me deixaram orgulhoso do os poder representar, outros foram-me relativamente indiferentes, outros ainda me deixaram em forte embaraço pelo modo desajeitado ou mesmo incompetente como não souberam ou não conseguiram defender os interesses do país. Mas nunca, em nenhuma circunstância, me regozijei pelo facto de um ministro, qualquer que fosse a sua coloração política, ter sido infeliz em declarações públicas no estrangeiro. Porquê? Porque, bom ou mau, fora de Portugal o chefe da diplomacia representa sempre o país. Se não se perceber isto, alguém pode ir à final da taça entre a S. Caetano à Lapa e o Rato, com o Caldas em episódicos permeios, mas quem perderá somos todos nós.

segunda-feira, novembro 11, 2013

Adversativos

Há uns anos, ao tempo de outro governo, falei por aqui do "jornalismo adversativo", isto é, da obsessiva tendência da imprensa para não referir algo de positivo sem, de imediato, o fazer seguir de um "mas", introduzindo elementos negativos, como que a "compensar" as notícias favoráveis.

Nos últimos dois dias, foi curioso ver o esforço de muitos para desvalorizar ou relativizar o significado da quebra da taxa de desemprego e o facto dos juros no mercado secundário da nossa dívida pública a 10 anos terem recuado dos 7%.

Deve ser defeito meu, mas não gosto da política feita deste modo.

A diplomacia segundo Álvaro Cunhal

"A política externa deve estar em mãos de gente hábil, de gente capaz de manobrar, de gente capaz de ter linguagens diferentes conforme o sítio onde fala, gente que compreenda que a diplomacia não é bem uma sessão interna de um órgão revolucionário, que a diplomacia de um país revolucionário que vive uma conjuntura internacional determinada e uma situação geográfica como nós vivemos, exige muita maleabilidade e em alguns casos muita ronha"

in "A crise político-militar, Discursos políticos/5, maio/novembro de 1975, Edições Avante!, 1977

Espírito Santo

Portugal tem poucas "marcas" internacionais. Ao longo de toda a minha vida profissional, testei as imagens que o nosso país foi fixando nos outros. Fui avaliando o modo como elas se revelavam identitárias, a sua solidez, a sua permanência no tempo. Através do olhar estrangeiro, medi a sua importância para o "retrato" que de todos nós foi sendo desenhado.

Dentre as poucas que Portugal deixou pelo mundo, a marca "Espírito Santo" surgiu-me sempre como sendo tido por um "valor" seguro. Nunca tive a mais remota relação com o grupo, nem sequer fui depositante do banco. Mas habituei-me a ver o nome "Espírito Santo" respeitado e admirado. E isso não é indiferente a quem, como eu, levou a vida a tentar sustentar a imagem de Portugal no estrangeiro.

A família Espírito Santo, com algumas outras, pagou, no pós-25 de abril, a circunstância ter sido um importante suporte da ditadura que nesse dia terminou, bem como o facto de ter beneficiado de um regime colonial cujo prolongamento no tempo foi fonte de muito sofrimento, em Portugal como em África. Com dignidade, respeitando as novas regras, o grupo Espírito Santo conseguiu retomar o seu papel no âmbito da economia portuguesa, aproveitando a lógica de mercado consensualizada em democracia. Até o conseguir, o grupo foi apoiado por amigos que, no exterior, confiaram na palavra e na honorabilidade dos seus membros. E isso não é coisa pouca nos dias que correm.

Por todas estas razões, e não obstante as culpas próprias do presente, recuso-me a comungar dos sorrisos irónicos, de origens bem diversas, de quantos olham para o momento menos bom que o grupo Espírito Santo hoje atravessa.

domingo, novembro 10, 2013

Comissária

Há dias, numa daquelas "bocas" em que a comunicação social é useira e vezeira, foi "revelado" que a escolha do governo para comissário europeu, nos cinco anos que se sucederão a 2014, poderia ser o professor Poiares Maduro, nóvel governante cujo currículo é ilustrado por algum percurso europeu, desde a academia florentina a órgãos jurisdicionais da União. Conheço bem o percurso de Poiares Maduro e não tenho a menor dificuldade em reconhecer o seu mérito intelectual.

Porém, uma avaliação fria do processo europeu, e dos nossos interesses nacionais nesse contexto, leva-me, também com facilidade, à conclusão de que a pessoa com mais evidente perfil para representar Portugal na futura Comissão Europeia, à luz cumulativa da sua experiência e dos seus conhecimentos, seria, sem a menor sombra de dúvida, a professora Elisa Ferreira, antiga ministra do Ambiente e, depois, do Planeamento, com uma significativa carreira académica, com uma notável prestação no Parlamento Europeu e, de há muito, com uma rede de contactos nesse âmbito que pede meças a quem quer que seja.

Imagino, sem dificuldade, que esta nota possa não ser do agrado da própria Elisa Ferreira. Mas entendi não dever deixar de a colocar aqui.

Taça

Não estou à espera (nem aceitarei) que algum comentário a refira, mas não me coibo de lembrar que, para a minha geração, havia uma frase que avaliava a importância da "taça" face ao "campeonato".
 
E mais não digo, porque hoje me não apetece discutir penáltis. Nem "very lights"...

Urgências

Agora, de um dia para o outro, passou a ser "urgente" debater a "reforma do Estado".

Durante nove meses, o "guião" foi anunciado e reanunciado, com embaraçadas respostas dilatórias, apenas quando alguém se lembrava de perguntar por ele. A certo ponto, ficou bem patente que havia, no seio da maioria, como que uma estratégia para tornar o líder do segundo partido da coligação o responsável pessoal pelo recorrente atraso no exercício. Com algum gozo associado.

Um dia, ultrapassado já o prazo do ridículo, o "guião" lá saiu. E foi "aquilo" que se viu. E, num instante, um texto que pôde esperar meses para ser divulgado, converteu-se numa proposta "incontornável" e, pasme-se!, "urgente". Como se aquele monte de obviedades, com três ou quatro receitas de "thatcherismo" tardio, passasse, por milagre, a ser o eixo do nosso futuro, devendo o país ser convocado e mobilizado para a sua discussão. E, claro!, sendo réu de um crime de lesa-pátria quem não acorresse, pressuroso, a esse debate.

Para o principal partido do governo, cujo nível de "entusiasmo" com o surgimento do "guião" se tornou bem evidente, a polémica passou, de repente, a ser um excelente meio de diversão do difícil debate orçamental. Para o autor político do "guião", convirá, naturalmente, explorar, tanto quanto possível, a "obra feita", para o que já conta com a dedicada colaboração dos "parceiros sociais", sempre à cata de tempo de antena. O que ainda não foi suficientemente sublinhado é a circunstância de um grupo selecionado de socialistas ter logo emergido a terreiro, a relevar a "importância" das "propostas" do "guião", dando interesseiramente a mão à figura do vice-primeiro ministro, com quem contam para aventuras governativas futuras.

A vida política portuguesa está a ficar tão transparente...

sábado, novembro 09, 2013

Entrevista

A convite da "Antena 1" e do "Diário Económico", dei uma entrevista a Rosário Lira e Bruno Proença que é divulgada na "Antena 1" no sábado, dia 9, e na 2ª feira, dia 11, na edição do "Diário Económico" e no canal de cabo "Económico TV" (23 horas).

Nessa conversa, falou-se de várias temáticas externas, desde a diplomacia e do atual "estado da arte" no MNE, até à situação europeia, "resgate" incluído, bem como da relação com Angola e a situação em Moçambique.

A entrevista (para quem tenha tempo e paciência para mais de 50 minutos de conversa), pode ser ouvida aqui.

sexta-feira, novembro 08, 2013

Insensatez

Foram, no mínimo, lamentáveis as declarações produzidas por entidades políticas portuguesas, sugerindo-se como possível "ajuda" às autoridades moçambicanas, em matéria de cooperação policial bilateral, de pôr cobro à insegurança que reina naquele país. Esses comentários, dos quais ressaltou uma triste forma de paternalismo, foram ao ponto de fazer notar aos responsáveis moçambicanos os efeitos, em matéria de investimento externo, que podem decorrer da presente situação de crise. Como se eles o não soubessem...

Este tipo de propostas e sugestões - como ensinam as mais elementares regras da diplomacia - devem sempre ser feitas com total discrição, no pleno respeito pela sensibilidade dos países. Permitir-se este tipo de comentários na praça pública - e em televisões que são avidamente vistas em Moçambique - tem como despudorado objetivo retirar dividendos políticos, "dar ares" de se estar atento aos interesses portugueses.

Mais pudor e maior profissionalismo é o que se recomenda.

quinta-feira, novembro 07, 2013

Ainda a Constituição

Há um grande "teatro" que convém deixar claro, em torno do modo como os agentes políticos e sociais se colocam na "guerra" entre o governo e o Tribunal constitucional. Na realidade, o que existe por detrás deste debate é uma questão bem mais "simples": há quem esteja, de há muito (alguns desde sempre...) contra esta Constituição e há os que a utilizam como escudo da proteção possível de um statu quo institucional, que evite o que entendem serem males piores.

Sejamos honestos: é evidente que o texto da atual Constituição está bastante datado, embora seja difícil um consenso sobre aquilo que deveria mudar e aquilo que deveria permanecer no texto. Alguns que, em tese, poderiam estar abertos a revisitar o texto constitucional, temem que a "caixa de Pandora" possa ser escancarada por quantos detestam esta Constituição. E, assim, acabamos todos neste "compromisso" imobilista. Mas é ridículo pretender que seja a jurisprudência do Tribunal Constitucional a fazer a "revisão" que os eleitos políticos se revelam incapazes de levar a cabo.

Constituição

O presidente da Comissão europeia voltou ontem a alertar para as consequências que podem advir de uma eventual rejeição, pelo Tribunal constitucional português, de algumas normas do orçamento geral do Estado.

Não é nova esta posição do antigo líder do PSD. Interrogo-me, contudo, por que razão a Comissão europeia, a montante da apresentação do orçamento, não optou por recomendar ao executivo português que tivesse o maior cuidado em garantir que as propostas que viesse a fazer respeitassem, em absoluto, as normas da Constituição do país. É que, se acaso assim procedesse, não haveria o menor risco de um "chumbo" pelo tribunal.

Talvez também conviesse lembrar, à atenção de quem tenha a menor pretensão de vir a ser candidato à chefia do nosso Estado, que, se acaso fosse eleito, lhe competiria, no ato de posse, "defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República portuguesa".

quarta-feira, novembro 06, 2013

Táxis

Há pequenas coisas que denotam a deterioração da autoridade do Estado.

Há uns anos, os táxis deixaram de ter as tradicionais cores verde-e-preto para passarem a uma cor amarela, tipo areia. À época, recordo-me de ter ouvido sólidos argumentos em favor da opção por essa nova cor. Agora, de há uns meses a esta parte, verifico que os táxis regressaram ao verde-e-preto. Imagino que haja outras luminárias a avançar especiosas razões favoráveis ao regresso a essas cores originais, seguramente contradizendo em absoluto as anteriores.

A minha questão é, porém, outra. Enquanto, na anterior versão verde-e-preto as cores eram únicas, agora o verde usado nos táxis parece ter sido deixado "à vontade do freguês". Hoje, durante alguns minutos no aeroporto, dei-me conta de, pelo menos, seis tons de verde utilizado. Alguns deles são, de forma propositada, tão escuros que quase se aproximam da cor preta. Outros vão desde evidentes espécies de azul ao verde claro "saloio", passando verde "elegante" (do Sporting, claro).

A minha pergunta é simples: é normal esta variedade ou trata-se de uma padronização falhada? Ou será que o Estado tem medo aos taxistas? Ou isto já é produto da doutrina liberal "in the making"?

terça-feira, novembro 05, 2013

França

Não deixa de ser preocupante para a Europa a situação que hoje se vive em França, muito em especial pelas implicações que esse estado de coisas pode ter no futuro do projeto europeu.

A França é um país-chave da equação continental. Por muito que alguns não gostem de reconhecer isto, devem-se ao eixo franco-alemão os passos mais significativos do processo integrador. É mesmo muito curioso observar que, sendo a França um país que tem "uma certa ideia da Europa", que passa bastante pela sua muito específica ambição em termos de poder no projeto continental - e que está muito longe de ser aquilo que se chama "europeísta", no sentido bruxelense do termo -, ela soube sempre dar uma contribuição que se revelou imprescindível para os grandes avanços que foram conseguidos. Sem a França não há projeto europeu - as coisas são tão simples como isso!

Ora a França atravessa um tempo difícil. É um país que, ao longo dos "trinta gloriosos" anos do pós-guerra, estabeleceu uma sociedade de bem-estar cujo património é hoje defendido em todos os setores do espetro político. Um modelo que obriga a que seja o país da União com a mais elevada percentagem de despesa pública face ao PIB. Esse modelo, com todas as virtualidades e vantagens que lhe estão associadas, torna-a fortemente resistente à mudança que os novos ventos financeiros europeus querem impor-lhe. 

A França tem um potencial económico e um tecido financeiro que parece colocá-la ao abrigo de colapsos como os que abalam hoje alguns dos seus parceiros mediterrânicos. Mas os números preocupantes do seu défice, a forte quebra da sua balança comercial, a perda de competitividade de muitas das suas indústrias e o agravamento de alguns outros indicadores (como o próprio desemprego) revelam que alguma coisa tem que mudar rapidamente no país. Acresce que, nos últimos anos, uma mutação significativa está a gerar na sociedade francesa clivagens e derivas preocupantes, nomeadamente pelo sucesso de algum populismo com laivos xenófobos e até racistas.

O drama francês é também o nosso drama. O apagamento, embora talvez conjuntural, do papel que a França desempenhava no centro do projeto europeu parece estar a conduzir a Alemanha a uma inédita "solidão", que Berlim pode ser tentada a atenuar através de novas alianças, cuja resultante está longe de corresponder aos interesses de um país como Portugal. Além disso, a França é a segunda pátria de muitas centenas de milhares de portugueses, sendo hoje uma das importantes fontes de remessas financeiras que compensam a nossa debilidade interna. Os portugueses em França, ou os luso-descendentes, não incorrem no menor risco por essa sua condição específica. Mas uma crise na sociedade francesa atingi-los-ia em pleno.

Por tudo isto, e também pelo que a França representa para a nossa maneira de estar no mundo, o seu futuro imediato não nos deve ser alheio.

segunda-feira, novembro 04, 2013

Do liberalismo semântico

Há uns meses, num blogue de "neocons" caseiros, vi surgir uma proclamação enfática: "nunca mais escrevemos Estado com "E" maiúsculo!".
 
Essa subliminar consigna deve estar a fazer escola. Há dias, publiquei um artigo numa revista. E lá notei que, no meu texto, sempre que eu falava de Estado, foi feito o "downgrading" da maiúscula inicial. Devem pensar: "quanto mais não seja, vencêmo-los pela gramática!" 
 
Estejamos muito atentos a estes "copydesks" ideológicos! Um destes dias, se os deixarmos grimpar, República e Constituição passam a minúscula.

domingo, novembro 03, 2013

Ainda a "reforma"

Uma leitora atenta deste blogue deixou, num comentário, a nota e a constatação de que, em Portugal, os socialistas haviam criado um ministério para a "reforma do Estado", sem, contudo, nunca a terem levado a cabo. Concedo que possa ser verdade.

Já agora, e se puxarmos pela memória, talvez devamos recordar que o primeiro membro de um governo que teve a seu cargo a "reforma administrativa" foi um (então) militante do CDS, Rui Pena, ministro do governo PS-CDS, nos idos de 70. A "reforma administrativa" tinha aliás uma tradição pré-25 de abril, com um famoso "secretariado", ainda dos tempos marcelistas.

Aproveito o mote para dizer que, em minha opinião, a "reforma do Estado" tem duas vertentes, que quase sempre surgem misturadas.

A primeira são as adaptações a introduzir no formato e funcionamento da Administração Pública, tarefa a que todos os governos se dedicam. Desde logo, para colocarem as estruturas em consonância com as novas leis orgânicas com que sempre se entretêm a balharar e dar de novo, bem como para despacharem algumas promessas que deixaram nos programas eleitorais. No bom sentido, recordo que ninguém como Maria Manuel Leitão Marques, membro de um governo socialista, foi tão longe em medidas para agilizar o Estado. Nunca vi isso seriamente contestado.

A segunda vertente prende-se com a questão das funções do Estado, que, por mais voltas que se lhe dê, é sempre uma questão que releva do modelo constitucional e do que dele decorre para o quadro de responsabilidades que competem ao Estado. É essa a origem dos conflitos com o Tribunal Constitucional. Ora a Constituição só pode ser alterada por um amplo consenso, movimento que, como é da lógica do desenho de todas as leis (e, por maioria de razão, da lei fundamental), deve ter menos a ver com uma pressão conjuntural de urgência e mais com uma análise serena e pactuada dquilo que a moderna sociedade portuguesa hoje deve exigir.

Permito-me agora dizer duas coisas talvez polémicas.

A primeira é que um repensar das funções do Estado não pode ser, necessariamente, sinónimo de redução do papel do Estado. "Reformar" não é reduzir e, por mais que isto possa surgir como sacrílego, não excluo liminarmente que, em alguns domínios, possa vir a constatar-se a necessidade de "mais Estado". Pense-se, por exemplo, na segurança pública e na proteção civil.

A segunda será talvez mais chocante para alguns, mas é o que sinceramente penso. Este governo tem uma maioria, conferida por uma indisputável lógica eleitoral. E, em democracia, isto é o essencial. Nessa qualidade, tem todo o direito de apresentar ao país as propostas que entender. Mas, se acaso tivesse um mínimo de sensibilidade, já deveria ter percebido que a evidente erosão da sua legitimidade política é menos conforme com projetos para cuja concretização necessitaria de maiorias que nem as mais fantasistas hipóteses lhe conferem. E quando essas propostas são de um ridículo quase pungente, então não se deve admirar que a gargalhada seja a resposta. A menos que o momento da apresentação do "guião" não tenha sido inocente e tivesse como objetivo ser uma mera cortiina polémica de fumo para fazer esquecer a brutalidade deste orçamento, hipótese que, curiosamente, não vi suficientemente explorada. Se assim é, de facto, qualquer papel serve.

sábado, novembro 02, 2013

Os Santos

Foto de Fernando Ribeiro

Esta é a altura dos "Santos", lá por Chaves. É uma das grandes festas transmontanas, famosa desde sempre como grande feira rural, hoje, dizem-me, está muito urbanizada nos usos mas, nem por isso, menos movimentada e atraente.

Na minha infância, em alguns anos, fui de Vila Real "aos Santos". Almoçávamos quase a meio da viagem, em Bornes, junto às Pedras Salgadas, em casa dos meus avós maternos. Atravessava-se a ponte de Trajano já ao entardecer. Recordo-me de ter criado a ideia de que era uma festa algo estranha, porque quase sempre tinha lugar em tempo frio, quando, em Portugal, a generalidade deste tipo de feiras ocorre numa altura quente do ano. Mais tarde, vim a apreciar frígidas feiras em período natalício, no norte da Europa, com adequadas bebidas quentes para atenuar esses efeitos.

Nesse tempo e nessa idade, a minha grande curiosidade era ouvir falar espanhol pelas ruas, coisa que nunca acontecia no nosso quotidiano de Vila Real, algumas escassas dezenas de quilómetros a sul. É que, tal como sucedia aos flavienses que se deslocavam anualmente "aos Lázaros", a Verín, no mês de março, nesse dia a fronteira era relativamente franqueada para os galegos virem a Chaves, com dispensa de passaporte. Essa minha sedução pelo que soava a "estrangeiro" era, em Chaves, sublinhada pela ideia mítica do contrabando que lhe ia associada, da comercialização do que não havia do lado de cá, de que era expoente a famosa loja da Aninhas Vitorino, que então muito se frequentava e que sobrevivia por complacentes e dizia-se que poderosas cumplicidades.

Nessa "romaria", recordo-me que se ia sempre visitar a nossa família flaviense e, invariavelmente, passava-se no "Aurora", o café do sr. Avelino, um cidadão galego que tinha vivido, por alguns meses, refugiado num armário da casa das minhas tias, nas Pedras Salgadas, durante a guerra civil espanhola. Um mundo de aventuras juntava-se, na minha cabeça de miúdo, à figura do sr. Avelino e às suas andanças políticas na esquerda espanhola. E, com naturalidade, passei a ter simpatia pelas causas que tinham motivado aquele amigo da família.

Guardo ainda a imagem das barracas noturnas no jardim do Bacalhau - ou seria na praça General Silveira? -, do bulício da gente, para cima e para baixo, na rua de Santo António. Depois, era o longo regresso noturno a Vila Real, por Vidago, pelo Reigaz acima, pelas longas retas de Sabroso e Vila Pouca, com a subida da Samardã como último obstáculo.

Outros tempos. Agora, com a A24, tudo é mais fácil. Já prometi a mim mesmo: para o ano, vou "aos Santos"!

Surpresa

O meu prezado amigo e antigo colega de governo, Daniel Bessa, diz hoje no "Expresso" que o "guião para a reforma do Estado" é uma "boa surpresa", um "documento com princípio, meio e fim". 

Tendo lido o texto com um cuidado quase masoquista, só posso concluir que, das duas uma: ou Daniel Bessa aguardava um texto indigente e "tudo o que vier à rede é peixe" ou, lá para o Norte, foi distribuída uma versão diferente. Mas numa coisa concordo plenamente com Daniel Bessa. O documento tem um "fim". Foi ontem.

Gérard de Villiers (1929-2013)

Morreu Gérard de Villiers. Durante anos, usei os seus livros para "antecipar" a visita a alguns países mais bizarros, onde ele ia situando as façanhas do seu herói intemporal, o agente da CIA e príncipe austríaco Malko Linge, denominado SAS (Sua Alteza Serenísima). 

aqui falei do seu curioso livro sobre a Lisboa revolucionária de 1975. Em Angola, recordo-me de ter lido, divertido, as descrições dos salões do Hotel Trópico (onde vivi quatro meses) nas páginas de um "thriller" sobre a guerra civil local onde, como era seu hábito, sempre havia muita violência e sexo. Villiers estava longe de ser um grande romancista, mesmo dentro do seu próprio género. Era um "autor de aeroporto", ligeiro, que combinava uma sugestiva realidade física dos locais - que fazia questão de visitar pessoalmente - com tramas algo maniqueístas, de onde ressaltava o seu profundo anti-comunismo e, mais recentemente, a sua atitude anti-islâmica. Honra lhe seja que sempre assumiu tudo isso com garbo e sentido de mercado.

Não sei se recomende, ou talvez o faça apenas pela curiosidade que representa, o seu livro sobre a Guiné-Bissau, intitulado "Féroce Guinée", centrado nos militares e no tráfico de droga (Villiers trabalhava com a realidade...), como habitualmente com belas mulheres à mistura, de que as capas dos volumes sempre destacavam as qualidades mais salientes. 

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...