terça-feira, outubro 25, 2011

Telegrama

O homem estava um pouco atarantado. Não era caso para menos. Do outro lado da linha tinha a voz, dificilmente confundível, do "presidente do Conselho", de Oliveira Salazar.

Era uma manhã de domingo, nesses anos quarenta, durante a segunda guerra mundial. Salazar tinha acumulado a chefia do governo com o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros. A "casa" era gerida pelo secretário-geral, embaixador Teixeira de Sampaio, mas o chefe do executivo mantinha um controlo próximo da máquina diplomática, assente em algumas representações diplomáticas, que eram os olhos e os ouvidos de Portugal pelo mundo. As comunicações entre essas missões e Lisboa eram escassas e a sua consulta constitui hoje um rico manancial para estudo. A chegada de um "telegrama", assinado por uma das grandes figuras que titulavam esses postos, era sempre um momento que concitava a atenção do chefe do governo.

Nessa manhã, Salazar pretendia uma informação sobre um determinado telegrama que sabia que chegara de Washington. O diplomata que o atendeu, no "serviço de cifra" das Necessidades, por precipitação ou por incompetência ou por ambas, regressou, minutos depois, ao telefone e informou Salazar que não conseguia encontrar o texto, entre toda a papelada que tinha à sua volta. "Vossa Excelência compreende, estou aqui sozinho..."

Salazar insistiu: "Veja lá outra vez, faça favor". E o homem lá foi, de novo, angustiado pela dificuldade insuperável. Com a alma nas mãos, regressou ao telefone, outros tantos minutos volvidos. "Peço imensa desculpa, mas não encontro nada!". Do outro lado da linha, Salazar retorquiu: "Não está aí nenhuma dactilógrafa?". O diplomata explicou que não, era domingo... "E também não tem nenhum contínuo?". Também não havia nenhum contínuo. Antes de desligar, seco, Salazar comentou: "É pena. Qualquer dactilógrafa ou contínuo teria descoberto o telegrama. Passe bem!".

Não há registos da carreira subsequente desse diplomata que teve o azar de estar na "cifra" nessa fatídica manhã de domingo.

Racismo

A "compreensão", mais ou menos velada, de alguns comentadores mediáticos, face às inúmeras barbaridades cometidas pelos rebeldes líbios sobre Kadafhi e os seus derrotados seguidores, traduz uma evidente forma de racismo eurocêntrico. É como se se assumisse que certos povos e certas sociedades, por virtude de um relativismo cultural, permanecem isentos da obrigação de respeitarem normas que a comunidade internacional de há muito considera deverem enquadrar todos conflitos. Por maioria de razão, aqueles em que a NATO intervém. Ao legitimarem esses novos massacres, essas figuras não se dão conta que isso funciona como uma injusta absolvição daqueles que tinham denunciado no regime líbio derrotado. 

Há gente que nunca aprende nada. Mas, nestas ocasiões, nós aprendemos, pelo menos, a conhecer melhor o caráter de alguns. 

segunda-feira, outubro 24, 2011

Lisboa

Gosto de viver numa rua com elétrico. Não o apanho muito, mas detestaria perdê-lo.

Teatro livre

Emmanuel Démarcy-Mota é uma das grandes figuras do teatro francês contemporâneo. Filho da atriz portuguesa Teresa Mota e de Richard Démarcy, encenador e autor, dirige atualmente o Théâtre de la Ville, em Paris, e o Festival de Outono da cidade. Emmanuel mantém-se fortemente ligado a Portugal, colaborando com diversas instituições nacionais. E, além de tudo isso, é uma personalidade fascinante.

Desde há dias, o seu espetáculo «Sur le concept du visage du fils de Dieu», de Romeo Castellucci, tem sido objeto de boicotes violentos por parte de grupos religiosos integristas. Com coragem, afrontando a fúria sectária, Emmanuel e o Théâtre de la Ville mantêm a determinação de prosseguir as representações.

A luta pela liberdade de opinião e expressão não tem fronteiras. E estar ao lado de quem a protege e promove é um dever mínimo para quem preze a democracia, Assim, lá irei, num dos próximos dias, ao Théâtre de la Ville para ver o espetáculo e para dar um abraço solidário ao Emmanuel. Quem quiser conhecer melhor este "homem de teatro de Paris cuja pátria é o Alentejo", pode ler aqui

Europa alegre

Não deve ser por acaso que o hino europeu é a "Ode an die Freude" (ode à alegria), tirada da nona sinfonia de Beethoven. A alegria está no centro do projeto europeu. Leiam-se, a este propósito, as significativas palavras do ministro búlgaro das Finanças, Simeon Djankov, no "Le Monde" de hoje:

"Même si ce n'est pas bien joli, il y a un certain degré de joie mauvaise (à l'égard de la Grèce), parce que la Bulgarie est toujours comparée à la Grèce [...]. On a maintenant l'impression que les Grecs vont plus mal que nous, cela nous aide beaucoup en tant que gouvernement."

domingo, outubro 23, 2011

Portugal (1)

1. Missa. Não sendo embora a minha especialidade, sei distinguir uma boa de uma má homilia. E aquela havia sido desastrosa e muito desinspirada, indigna do falecido. O sacerdote "embrulhou-se" e não conseguia acabar com jeito. Comentei com um velho amigo, a meu lado. Resposta dele: "Também achei. Este deve ter tirado o curso para padre nas Novas Oportunidades".

Há gente muito mazinha...

2. Trás-os-Montes, anteontem:

- Com este défice, não vamos lá! E onde é que se meteu o dinheiro?
- Vieste de Lisboa, ainda hoje? Como é que conseguiste?
- Fiz a A8/A17 até Aveiro, depois a A25, a finalmente o IP2. Até que foi rápido! Porque é que perguntas?
- É porque, sendo assim, vieste "pelo" défice...

3. Sintra, ontem:

- E lá se foi o verão, não é? Vi agora na televisão: só há bom tempo na Madeira.
- Assim ficamos completos: é chuva na eira e sol no nabal...

4. Lisboa, já hoje:

- Bela exposição que vi à tarde na Gulbenkian. É dedicada a "naturezas mortas".
- A Gulbenkian está sempre muito atenta à realidade portuguesa...

sábado, outubro 22, 2011

Secretos

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, as telegramas qualificados de "secretos" têm, como é natural, uma distribuição muito limitada, que segue a regra britânica do "need to know".

Não há muito tempo, procurei saber se um determinado colega, em Lisboa, tinha lido um "secreto" que eu tinha enviado dias antes. Cuidando em não falar pelo telefone da substância do texto - o que infringiria as chamadas "regras de cifra" - eu queria ter a certeza de que o telegrama lhe chegara, porque sabia que o assunto, por razões que não vêm ao caso, lhe interessava. Recordo que foi um pouco difícil contactá-lo, tendo a minha secretária apurado que só era possível encontrá-lo em casa. Estranhei, mas foi isso o que foi feito.

- Olha lá! Viste um "secreto" que há dois dias mandei para aí?

Resposta pronta:

- Ó homem! Então não sabes que eu já estou aposentado? Para mim, agora, secretos só de porco...

Eugénio Lisboa

A universidade de Aveiro promove hoje uma justíssima homenagem a um homem a quem a literatura portuguesa muito deve, através do lançamento do livro que lhe é dedicado: "Eugénio Lisboa: vário, intrépido e fecundo - uma homenagem". Tenho imensa pena de não pode estar presente nesta ocasião, mas o dom da ubiquidade, por ora, ainda me é alheio.

E aqui fica o curto texto com que, no livro, saúdo o Eugénio:

Por décadas, li o nome de Eugénio Lisboa em textos críticos sobre literatura portuguesa que me iam passando à frente dos olhos. Como essa era uma “praia”, como agora se diz, que eu apenas tocava pela rama, tinha, acerca dele, alguma, mas não excessiva, curiosidade, apenas potenciada pela raridade do facto de se tratar de um “engenheiro”, qualidade que partilhava com o Jorge de Sena – mas isso num tempo em que os engenheiros ainda não assumiam a importância que, entre nós, viriam a ter…

A circunstância de ter raízes em Moçambique e de, mais tarde, ter andado por França e pela Suécia, situavam Eugénio Lisboa, no meu imaginário, na prateleira prestigiada dos expatriados da nossa cultura, essas figuras com cujas assinaturas eu tropeçava em livros e artigos e que, de quando em quando, entrevia em colóquios ou na televisão, saídos da sua habitual geografia. Mas eu nunca fui fã de José Régio (o Eugénio não me vai perdoar esta!) e esse era o terreno de estimação do nosso crítico, pelo que não atentava, como seguramente deveria, ao que ele escrevia sobre o poeta – no “Colóquio Letras”, no JL e noutras folhas cultas e de culto.

Um dia, no início dos anos 90, ao ser colocado em Londres, tive oportunidade de pôr finalmente uma fotografia no nome do Eugénio Lisboa. E, simultaneamente, no de Rui Knopfli, com quem ele fazia um singular “par” de conselheiros da coisa escrita – o Lisboa, da cultura, o Knopfli, da imprensa – dentro da nossa Embaixada. Durante mais de quatro anos, convivi diariamente com ambos e, no meu saldo pessoal, julgo neles ter feito dois amigos. Era muito interessante observar a sua complementaridade, o sublinhar das comuns raízes moçambicanas, distintos no trabalhar de certas memórias, sobre figuras do passado frequentado e no modo de viver o presente de então. Porém, onde o Eugénio era uma formiga de trabalho, o Rui era uma cigarra, de cigarros seguidos e outros vícios, onde parecia assentar a alegria residual da sua vida e em que preparava, com uma certeza que íamos visualizando, o caminho apressado para a morte. Por mais de uma vez, fui aliado do Eugénio Lisboa – cuja óbvia ternura pelo Rui sempre mascarava – na tentativa de salvar o poeta de si próprio. E ambos sofríamos, cada um a seu modo, a inglória certeza, a prazo, desse esforço. 

Sou testemunha privilegiada de que, em Londres, Eugénio Lisboa desenvolveu um trabalho notável na promoção da nossa cultura. Para além de animar, frequentemente com a sua presença, muitas iniciativas, dedicava-se, com afinco, à edição de traduções de clássicos da nossa literatura, através da “Carcanet Press”. Com o Helder Macedo e com Michael Collins, seus principais cúmplices em iniciativas a que, com pertinácia, se dedicava, o Eugénio procurou “furar” o complexo mundo do tecido cultural britânico, tendo, a seu lado na Embaixada, a ajuda entusiasta e atenta de Mercês Gibson. Olhando para trás, tenho consciência de que procurei ser útil, à medida do que me era possível, a esse labor, onde frequentemente nos deparávamos com boas vontades – como era o caso da Fundação Calouste Gulbenkian – mas, igualmente, com alguns egos de estimação, às vezes de natureza institucional, bem difíceis de contornar.

Foi pela mão do Eugénio Lisboa que vim a conhecer figuras como o jornalista António de Figueiredo, lendário representante de Humberto Delgado em Londres, o advogado Adrião Rodrigues, nome destacado dos “Democratas de Moçambique”, ou Alexandre Pinheiro Torres, um escritor cuja obra justificaria maior reconhecimento público. Em Londres, o Eugénio funcionava como uma espécie de “placa giratória” por onde passava muito do mundo cultural português, mas onde a África lusófona estava sempre presente.

Esse “carrefour” londrino nem sempre era tão pacífico como se poderia pensar – mas, com o tempo, habituei-me a perceber que o mundo cultural é um espaço onde, com alguma facilidade, as personalidades se chocam e as palavras podem desencadear grandes fogueiras. Recordo-me de uma polémica, que envolveu o Eugénio Lisboa e o José Saramago, a propósito de um almoço que eu havia oferecido ao escritor, com a presença do Hélder Macedo, da Paula Rego, do Bartolomeu Cid dos Santos, do Luís de Sousa Rebelo e do Rui Knopfli. O modo como Saramago relatou uma cena desse repasto, nos seus “Cadernos de Lanzarote”, criou uma fúria no Eugénio, que zurziu o escritor no JL. A diplomacia não exclui a indignação.  

Devo confessar que tenho alguma saudade das conversas que, aos fins de tarde, mantínhamos no meu gabinete, muitas vezes acompanhados pelo fumo e pela ironia do Rui Knopfli. Ouvia-os então cruzar memórias africanas, referências literárias, leituras pessoais de episódios comuns do passado, tudo envolvido na agudeza crítica que, quando inteligente, não faz mal a ninguém.

Homenagear o Eugénio Lisboa, como grande figura da cultura portuguesa – não esquecendo a imprescindível serenidade da Antonieta, a seu lado –, é um ato mínimo de justiça. E, para mim, é também uma oportunidade para lhe enviar um abraço de sólida amizade.

sexta-feira, outubro 21, 2011

JL

A convite do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, publico na última página do seu mais recente número um "Diário" intitulado "Cais das Necessidades". Os leitores deste blogue pouco ou nada lá encontrarão de novo...

quinta-feira, outubro 20, 2011

Eduardo Lourenço

A Sorbonne e a Fundação Calouste Gulbenkian homenagearam ontem, em Paris, o professor Eduardo Lourenço. À noite, na embaixada, tive o prazer de convidar para jantar Eduardo Lourenço e alguns amigos, juntamente com os interventores no seminário que celebrou a sua obra.

Depois de um dia completo que havia sido consagrado a Lourenço, tive a prudência de ser parco nas curtas palavras de admiração que lhe dirigi. Mas não deixei de sublinhar a minha gratidão, como português, pelo facto de Eduardo Lourenço, ao longo destes anos, me ter ajudado a "ler" melhor o meu país. Em especial, ensinou-me uma certa forma portuguesa de ser europeu. Na minha intervenção, referi que o que mais me surpreende é o facto de o ter feito com textos que não se refugiam nunca no hermetismo e que são, deliberadamente, "reader's friendly". Para se ser profundo não é necessário ser complexo, como Eduardo Lourenço sempre demonstra.

Deixo aqui um seu magnífico retrato de Bottelho.

O barman

É bom termos a sorte de nos lembrarem cenas em que participámos, mas que já havíamos esquecido! Há dias, um estimado colega (cujo nome não refiro, porque não cuidei em lhe perguntar se o podia fazer) recordou-me uma história passada numa reunião da Conferência Intergovernamental para a negociação daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, ao tempo em que eu era o representante do governo português nessa tarefa.

A presidência rotativa semestral da União Europeia pertencia então aos Países Baixos. Discutia-se a eventual alteração do modelo de voto nas decisões comunitárias, que teria de passar por uma "reponderação" da força relativa de cada Estado no processo decisório. O tema era muito atual, mas muito polémico. Mudar a relação de forças entre os países foi sempre uma questão delicada e divisiva no seio da União Europeia.

Um dia, a presidência holandesa decidiu, sob a sua responsabilidade, colocar sobre a mesa uma proposta algo ousada que, em especial, alterava a relação interna de poder entre os três países do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), que tinha sido mantida intocada desde a criação das Comunidades Europeias. Para os negociadores holandeses, chefiados pelo embaixador Ben Bot, que anos depois haveria de ser chefe da diplomacia do seu país, haveria que retificar essa relação, por forma a dar uma maior consideração ao fator demográfico. Nessa perspetiva, os Países Baixos eram beneficiados, porque tinham uma população substancialmente maior que a dos seus dois outros parceiros do Benelux. Nesta lógica, as coisas tinham uma certa racionalidade, só que a lógica em que as coisas se apoiavam estava muito longe de ser consensual.

Assumir uma presidência implica respeitar uma certa neutralidade naquilo que se propõe. Não se espera que o país que a detem apresente, de uma forma ostensiva e despudorada, ideias que diretamente a possam beneficiar. Foi isso, contudo, que, nesse dia, os holandeses fizeram.

Acabada a intervenção de Ben Bot, o delegado belga, uma grande e experiente figura da diplomacia europeia, o embaixador Philippe de Schoutheete, pediu a palavra e, com a inteligência, franqueza e humor que todos lhe conhecíamos, disse, muito simplesmente: "Senhor presidente. Tomámos boa nota da proposta que acaba de nos apresentar em nome dos Países Baixos. O meu único comentário sobre essa sua proposta é o seguinte: o senhor portou-se como uma barman que se serviu a si próprio antes de servir os clientes".

E a proposta holandesa morreu aí.

terça-feira, outubro 18, 2011

Olá, Raul!

Um jornal lembra-me que você faria hoje 82 anos. Parabéns! Não teremos velas para assoprar porque, vai para uns tempos, deu-lhe na veneta voltar-nos as costas e partir para outra. Não lhe vou contar o que sem passado por cá, desde a sua saída. Nem eu posso, nem você acreditava. A sério! ("Lá está ele a reinar", diria). No nosso comum Procópio, onde vertemos tantas lágrimas escocesas de riso, a noite do pessoal da "Dois" está cada vez mais curta. O Nuno foi à faca (dizem-me que, no hospital, tinha uma fisioterapeuta que era o máximo!), mas já esta aí para as curvas e vai ganhar "a Guerra", porque, como dizia o Lubitsch, "heaven can wait" (no caso, traduz-se por "a Céu pode esperar"). Há mesmo quem diga que os nossos amigos que ainda param lá pelo bar perderam muito da piada que tinham (há dias, a Diana Andringa, cruel, interrogava-se: "seria porque eu bebia que antes lhes achava mais graça ou eles tinham mais graça porque nessa altura bebiam?"). Até a Alice, armada em Merkel das Amoreiras, tem vindo a alargar os "spreads" (termo que agora se usa cá muito) face aos preços do Papagaio, a tasca que fica ao fundo da escadaria. É que anda por aí uma coisa nova chamada "troika" (lembra-se de uma Teresa Ter-Minassian, que em tempos vinha pelo FMI, cujo nariz arrebitado era muito fotografado a sair do Altis? Pois agora é mais ou menos isso, mas são mais e vêm de calças...). Nem lhe digo que o texto de cabeceira que agora está na moda - não quando temos insónias, mas quando temos sonhos - se chama "MoU", porque imagino que você fazia logo um trocadilho... É assim, Raul, é assim que andam as coisas, ou melhor, não é bem assim mas, como diria o Chico Buarque, "o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta". Bem que tentamos seguir o seu conselho - "façam o favor de ser felizes! - mas não está fácil, sabe? Mas nós somos como o seu Belenenses: andamos ora para cima ora para baixo. Agora? Agora... não estamos em cima! Receba um abraço saudoso do Francisco

O meu mais longo discurso

Ontem à noite, na inauguração do novo Centro cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, encontrei a professora Cleonice Berardinelli, uma distinta académica brasileira a que já me referi aqui e aqui. E recordei, com ela, uma das mais complicadas cenas protocolares que tive de enfrentar, ocorrida no Brasil, em 2006.

Um ano antes, por feliz sugestão do diretor internacional da Gulbenkian, João Pedro Garcia, eu havia proposto que fosse concedida à professora Berardinelli a grã-cruz da ordem de Santiago de Espada, como forma de manifestarmos o nosso reconhecimento por uma vida académica dedicada ao estudo e promoção da literatura e da cultura portuguesas no Brasil. A minha sugestão foi aceite por Lisboa e, aproveitando uma passagem pelo Rio de Janeiro do então primeiro-ministro, engº José Sócrates, foi decidido organizar a cerimónia da entrega da distinção na grande sala do Real Gabinete Português de Leitura. Creio que mais de duas centenas de pessoas enchiam aquele magnífico espaço, testemunhando o elevado apreço que a professora Cleonice Berardinelli - que entretanto foi eleita para a Academia Brasileira de Letras - a tantos merece.

O programa de trabalho do chefe do governo português no Rio de Janeiro, nesse dia 11 de agosto de 2006, estava já bastante atrasado. O trânsito no Rio é muito complicado, a fixação dos tempos para os vários pontos da agenda fora feita de forma um tanto otimista, pelo que a chegada da comitiva ao Real Gabinete se processou quase uma hora depois do previsto, com outros eventos já à espera. Essa é a sina de muitas deslocações oficiais, especialmente quando se pretende atender a diversas solicitações: as conversas prolongam-se, surgem factos inesperados, as visitas demoram mais do que o previsto. Nada que seja muito grave, mas que sempre induz algumas tensões.

À chegada do primeiro-ministro, conduzi-o, de imediato, para uma sala onde estavam a professora Berardinelli e outros convidados importantes. Nesse preciso momento fui alertado para uma questão "trágica": por uma qualquer confusão, as insígnias da condecoração tinham ficado no hotel, bem longe, na Avenida Atlântica. Um estafeta fora entretanto buscá-las mas, uma vez mais atentas as dificuldades do trânsito, era difícil prever os minutos que demoraria a sua chegada.

Esgotados, com alguma rapidez, as amabilidades e os cumprimentos protocolares entre os presentes na sala, ciente do calendário apertado em que se movimentava, que se cumulava ao atraso anterior, o primeiro-ministro deu, a certo passo, instruções para que a cerimónia se iniciasse, sem demora. Eu era a única pessoa que sabia que, se bem que as formalidades e os discursos pudessem arrancar, elas não se poderiam concluir sem a chegada das insígnias. Mas, confesso, em face dos constrangimentos de horários que se viviam, decidi correr o grande risco de deixar iniciar o ato solene. 

Sobre o momento, surgiu-me então, uma única solução: embora só estivessem previstos três discursos - o do presidente do Real Gabinete, Dr. Gomes da Costa, o do primeiro-ministro português e o de agradecimento, da professora Cleonice Berardinelli - eu iria improvisar uma intervenção, imediatamente após a do Dr. Gomes da Costa... que duraria todo o tempo que fosse necessário, até à chegada física das insígnias.

Instalados na tribuna, segredei ao Dr. Gomes da Costa que deveria procurar ser tão longo quanto possível. Ele, porém, disse-me que o seu texto estava escrito e que só dava para cerca de dez minutos. Notei que o primeiro-ministro ficou surpreendido quando lhe passei uma mensagem dizendo que eu também falaria na cerimónia: protocolarmente, estando prevista uma intervenção do chefe do governo, não tinha qualquer sentido o embaixador falar. Ainda perguntei ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, e ao presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, que tinha a meu lado na mesa, se não queriam dizer "umas palavras". Com naturalidade, nenhum deles se mostrou disponível.

Estava traçado o meu destino para os próximos minutos. Senti-me como aqueles deputados a quem, segundo a história, são pedidas longas intervenções para dar tempo à chegada de "reforços" para constituir uma qualquer maioria de voto. Com rapidez, alinhei num papel meia-dúzia de "tirets" que iriam servir de esqueleto ao meu discurso: desde notas pessoais sobre a professora Berardinelli, algumas referências aos estudos de literatura portuguesa no Brasil, umas palavras sobre a cooperação entre as universidades e sei lá mais o quê, tudo o que na altura me veio à cabeça como "buchas" possíveis. Naquele espaço sem ar condicionado, o meu crescente suor dava-me a impressão que a temperatura estava a subir em flecha. 

Com esperança de ganhar tempo, ouvia em fundo o Dr. Gomes da Costa que, no microfone, prosseguia, de forma que me parecia incomodamente rápida, no seu discurso. Até que, a certo ponto, o ouço dizer: "... e, para terminar, permitam-me que...". Pronto! Era a minha "deixa". E comecei a ajeitar a cadeira para sair da tribuna, para iniciar a arenga que o destino me obrigava a fazer. Logo se veria como saía...

E foi então, nesse instante, que vi surgir ao fundo, caminhando em passo apressado desde a porta de entrada do Real Gabinete em direção a nós, a figura diligente do Luís Ferreira dos Santos, o imprescindível colaborador do nosso serviço do protocolo, trazendo nas mãos a caixa vermelho "bordeaux" com a grã-cruz de Santiago de Espada. Estava consumado o milagre, logo a mim, que nunca tinha ansiado por uma benfazeja aparição de um santo... E estava salva a honra do convento!

Aqui fica a historieta do mais longo discurso que nunca pronunciei.

domingo, outubro 16, 2011

Os adoradores do sol

Há muitos anos, quando vivi na Noruega, li um livro de Fernando Namora com o nome de "Os adoradores do sol". Falava desse fascínio que os nórdicos sentem pelos dias luminosos, que aproveitam à saciedade, quando os deuses decidem, não tão raramente quanto se possa pensar, retirar-lhes de cima o "céu cinzento sob o astro mudo", como reza uma canção que deveria, particularmente nos dias que correm, ser de aprendizagem obrigatória nas nossas escolas.

Nesta sedução pelo sol, os parisienses são uma espécie de nórdicos: espojam-se pela esplanadas, à frente de uma bica ou de uma água. Ontem, dia em que Paris foi bafejado pelo verão de S. Martinho, foi um fartote. E (vá lá!) uma chatice: não havia lugar para pôr a cara ao sol (sem conotações franquistas...). 

Deixo-os com esta magnífica e clássica fotografia das cabeleireiras parisienses de Doisneau.

Negar a mentira

Há muitos anos que leio, publicadas em jornais, "cartas ao diretor", destinadas a retificar escritos. Tanto quanto me lembro, só por duas vezes me senti motivado a utilizar essa figura: uma primeira vez em 2002 e outra hoje. O que não deixa de ser curioso. Em ambos os casos, para denunciar coisas flagrantemente falsas, sem o menor apoio em factos. Nada de particularmente grave ou preocupante, atenta a notória falta de credibilidade daquilo que foi publicado. Mas apenas porque achei importante "to set the record straight". Para desmentir. Etimologicamente: para negar a mentira.

Dar música

Nestes tempos de crise, a Embaixada persiste em "dar música", no quadro da série de concertos "Entre Pautas / Entre Partitions". Desta vez, será um concerto de piano e flauta.

Utilizando os belos salões da rue de Noisiel, em Paris, podem ouvir-se, no próximo dia 28 de outubro, pelas 18.30 horas, obras de Fernando Lopes Graça e de Luis Costa, em "diálogo" com alguns autores românticos europeus. Ao piano estará Bruno Belthoise e, na flauta, Yves Charpentier.

Como assistir? Veja aqui

As 24 horas de Vila Real

No aeroporto: relato a um amigo espanhol as palavras certeiras do presidente Cavaco Silva, num discurso em Florença, onde denunciou as derivas institucionais da União Europeia e a "mainmise" intergovernamental. Resposta dele: "Pena é que o teu compatriota Barroso, em lugar de fazer um comício tardio no Parlamento europeu, a tentar absolver-se da clandestinidade da Comissão, não tivesse dito isso mesmo há muito mais tempo". Por mais que tente, não me recordo da expressão exata, em castelhano, com que ele acabou a frase. Mas soou a "É o dizes!".

No jornal: o doentio catastrofismo nacional de António Barreto é objeto de um comentário irónico de Vasco Pulido Valente, a quem, como é sabido, nunca ninguém apanhou uma palavra de dúvida sobre o futuro de Portugal.

Nas ruas: nascem como cogumelos os locais de compra de ouro. E que grande época aguarda as lojas chinesas!

Na universidade: ou foi impressão minha ou o efeito da crise soltou-nos o discurso a todos. Falo por mim. Nunca dirigi um reunião de forma tão caótica. Mas pode ter valido a pena. Toda a gente começa a perceber que já não há tempo para perder tempo.

No quiosque: "Leva quatro jornais e duas revistas?! Caramba! Muito obrigado!"

No restaurante: "O senhor vem lá dos frios de Paris e acha que está calor?! Olhe que por cá tudo sobe: a temperatura, os preços, os impostos... Ah! e também a raiva..."

Um familiar: fez ontem 99 anos! Fui dar-lhe um abraço. Disse-me: "acho que vou chegar aos 100!". Vai, claro! E Portugal está quase a chegar aos 900! Estamos aqui para durar!

Por todo o lado: é impressionante a unanimidade angustiada nas expetativas das pessoas com quem nos cruzamos. Quanto mais não seja por espírito de contradição, vou apostar em como isto ainda vai dar a volta. Não é impunemente que se faz uma vida como sportinguista. 

No avião de regresso: conversa longa e proveitosa, entre o Porto e Paris, com Artur Santos Silva. É bom escutar os que ganharam uma sabedoria serena e tolerante.

Um amigo, triste, a comentar, ao telefone, as manifestações: "Começo a estar menos preocupado com a taxa de desemprego e muito mais com a taxa de desespero".

sábado, outubro 15, 2011

Pedro Rosa Mendes

Pedro Rosa Mendes é um dos grandes escritores da nova geração da literatura portuguesa. Esta semana, foi-lhe atribuído o prémio narrativa do Pen Club, pelo seu livro "Peregrinação de Enmanuel Jhesus".

Pedro Rosa Mendes era também o correspondente da agência noticiosa Lusa em Paris. Porque acompanho, de há muito, a atividade dos jornalistas que a Lusa tem (cada vez menos) pelo mundo, posso testemunhar que, do trabalho de Pedro Rosa Mendes em França, resultaram algumas das melhores e mais equilibradas "peças" que alguma vez vi escritas em trabalho de agência.

A Lusa, com certeza, não quis ficar atrás do Pen Club e decidiu também "premiar" Pedro Rosa Mendes, cancelando o seu contrato. Não terá sido a "troika" a sugerir, mas já agora...

quinta-feira, outubro 13, 2011

A mão visível

Tem imensa graça ouvir o canto dos reconvertidos próceres do novo federalismo. Depois de nos terem bombardeado, por décadas, com o paraíso da “mão invisível”, de terem entoado loas embevecidas às maravilhas do mercado, ei-los que chegam, novos e já velhos, a uma cada vez mais alargada comunhão na ideia de que se torna imperativo um salto federal europeu para a sustentação do euro. 

Que grande ironia! Quem havia de dizer que seria a Europa financeira a "puxar" pela Europa política! Ora sejam muito bem-vindos ao Estado!

Três dias

Dia 1. É preciso aproveitar melhor as oportunidades na área da construção civil que se abrem às empresas portuguesas neste país. Por isso, a embaixada acolheu, no dia 11, as largas dezenas de convidados que a Câmara de Comércio Franco-Portuguesa juntou, para um exercício de várias horas, entre promotores imobiliários franceses do setor da habitação social e um conjunto muito importante de industriais nacionais da nossa construção civil.

Dia 2. As portas da embaixada voltaram a encher-se, do dia 12, com quase uma centena de pessoas para aplaudir as dezenas de alunos portugueses premiados com bolsas de estudo para a frequência do ensino superior francês no corrente ano letivo. Trata-se de uma iniciativa lançada pela embaixada de Portugal que merece o apoio do Banque BCP, do banco BES, da Caixa Geral de Depósitos, da companhia de seguros Fidelidade, da empresa INAPA e da secretaria de Estado das Comunidades portuguesas.

Dia 3. O conselheiro das Comunidades portuguesas, Carlos Reis, foi o responsável pelo simpático convite que me foi dirigido pela Faculté de Droit, Économie e Gestion, de Orléans, para aí proferir hoje uma conferência subordinada ao tema "Le Portugal en Europe - les nouveaux défis". Seguiu-se um animado e informado debate, dentre a centena e meia de presentes, onde se contavam muitos estudantes e alguns "maires" da região. Portugal continua a ser um tema que interessa muitos franceses. Agora que as coisas não estão fáceis para nós, acho que vale ainda mais a pena praticar uma ativa "diplomacia pública" para explicar, com clareza e com todas as "cartas sobre a mesa", como estamos a trabalhar para vir a sair da crise e, de caminho, o modo como olhamos as estruturas em discussão nesta Europa. Uma jornada que valeu bem a pena.

Gaudin

Um dia de 2010, quando era embaixador em França, fui alertado para o facto de uma empresa portuguesa de construção civil, sedeada em Braga e...