sábado, janeiro 23, 2010

Distância

 
O suplemento "Weekend" do "Económico", de hoje, traz uma longa entrevista comigo, concedida há mais de um mês - sobre a diplomacia e sobre muitas outras coisas da vida corrente. Vejo no "site" a minha foto lado-a-lado com o popular pugilista leonino Sá Pinto, escolha editorial, no mínimo, curiosa.

Não conseguindo "abrir" o jornal à distância, resta-me aguardar, daqui a dias, a chegada do texto em papel. É uma sensação um pouco estranha: ser responsável por declarações que outros podem ler e de que eu já quase me não lembro...

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Condecorações


Ontem, ao final da tarde, procedi à entrega das insígnias da Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique ao Dr. José António Ribeiro Monteiro, uma personalidade portuguesa, residente em Paris, que se destacou na área académica e empresarial e cujo perfil profissional e pessoal foi considerado pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, como merecedor de destaque e de distinção pelo Estado. Um condecoração merecida e justa, que ressoa o lema histórico do Infante: "talent de bien faire".

Cada vez acho mais importante que este tipo de reconhecimento do Estado português seja feito com grande rigor e com fortes critérios seletivos, a fim de ficar garantido, na memória comum, que o gesto tem significado e não constitui um mero sinal de natureza protocolar. As condecoração são, de certo modo, a forma contemporânea de nobilitação. Devem, por essa razão, corresponder a uma leitura muito ponderada das qualidades daqueles a quem são atribuídas e, muito em especial, da contribuição por eles dada ao prestígio da comunidade que os distingue.

Identidade nacional

O debate sobre a identidade nacional, que o governo francês estimulou nos últimos tempos, tem aqui sido objecto de tomadas de posição muito contrastantes.

Para alguns sectores, tal discussão comporta o risco de derivas no sentido do isolamento de comunidades de origem estrangeira cujas expressões culturais públicas se afastam daquilo que a França tradicional tem por "norma". Nessa perspectiva, as comunidades muçulmanas aparecem como as primeiras visadas e a tentação do apelo a políticas mais restritivas à imigração acabará por ser a resultante final do exercício.

O governo assume uma outra perspectiva. Na sua ideia, é importante tentar identificar aquilo que entretanto mudou na sociedade francesa, permeada por imigrações de várias origens, hoje marcada por expressões sócio-culturais muito diversas oriundas de núcleos de cidadãos nascidos já em França. Essa identificação é feita em paralelo com o sublinhar dos elementos que se entendam relevantes para a fixação de uma matriz identitária, histórico-cultural, colada à especificidade de "ser francês".

Como pano de fundo para esta discussão está a tomada de consciência, para muitos franceses, de que o país onde nasceram era muito diferente daquele em que hoje vivem e que essa mudança foi também produto da presença de estrangeiros e, agora, de novas gerações, já  nascidas francesas, deles originários. O modo como a sociedade francesa olha para este facto varia imenso.

Porque este debate assenta muito na questão da introdução da "diferença", sem o qual não teria razão de ser, acaba naturalmente por ser potencialmente mais agressivo para comunidades com origens sócio-culturais que se afastam do padrão europeu tradicional. Quero com isto dizer que ele não afecta diretamente, por exemplo, a comunidade de origem portuguesa.

Estamos longe do fim desta polémica, mas talvez ela acabe por ter de consagrar uma ideia simples que alguém, há dias, apresentou num debate televisivo: gostem ou não alguns cidadãos franceses desta realidade, as regras da cidadania democrática vão acabar por obrigá-los a aceitar essa coisa comezinha de que é francês quem tenha um bilhete de identidade francês.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Futebóis

Há dias, o "Blogue" de Marcelo Rebelo de Sousa publicado pelo "Sol" (semanário que, aqui a Paris, "llega quando llega"), recordou uma historieta clássica da relação luso-brasileira, que não resisto a registar, com a devida vénia.

Estávamos em Março de 1975, tempo "quente" e revolucionário da política portuguesa, com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro de Portugal. No Brasil, a ditadura estava em pleno, com Ernesto Geisel na presidência. Enfim, época forte para os militares de ambos os países, embora de sinal bem contrário. Por isso, um ambiente de alguma tensão nas relações bilaterais, em que cabia ao embaixador português, Futscher Pereira, usar toda a sua conhecida genialidade diplomática para acalmar as hostes locais.

A seleção portuguesa fora convidada para disputar contra o Brasil o jogo inaugural de um estádio, numa cidade não muito distante de Brasília. Embora formalmente "amistoso",  o jogo acabou, a certa altura, por gerar um incidente: um jogador português lesionou-se e foi substituído. Minutos depois, aparentemente por confusão, o mesmo jogador reentrou no jogo. Portugal jogava, assim, com 12... O árbitro apercebeu-se e encetou um longo e ácido "bate-boca" com Pedroto, então treinador português. A nossa equipa começou a ser apupada por todo o estádio e o anedotário lusófobo deve ter sido escasso para alimentar a expressão do desagrado do público local. Pedroto pretendia que a sua equipa abandonasse o terreno de jogo. Marcelo Rebelo de Sousa (à época, membro da direcção da Federação Portuguesa de Futebol, para quem não saiba) e o seleccionador Abílio Rodrigues conseguem evitar o que seria um escândalo. Mas não conseguem evitar que os brasileiros, na ressaca da irritação, cancelem a receção em honra dos representantes da "mãe pátria".

A vida não ia então fácil para as relações luso-brasileiras. Para a história, Portugal perdeu o jogo, o que terá acabado por atenuar o desfecho do incidente.

33 anos depois, também na inauguração de outro estádio, também perto de Brasília, também num jogo amigável, Portugal voltou também a perder - desta vez por uns esmagadores 6-2! O embaixador português era outro, não ameaçámos abandonar o terreno de jogo, não houve incidentes diplomático-protocolares, mas, podem crer!, a noite também não foi fácil para quem então representava Portugal no Brasil. E se, em 1975, jogámos com um dúzia, fiquei com a sensação de que, dessa vez, jogámos apenas com meia-dúzia... É que houve jogadores que não cheguei a "ver" em campo. Valha-nos o facto de, agora, as relações bilaterais serem excelentes.

Hipócrates?


O senhor bastonário da Ordem dos Médicos portuguesa afirmou hoje ser contra a decisão de abertura de mais vagas nos cursos de Medicina e que, se essa tendência se prolongar nos próximos anos, teremos "pessoas a acotovelarem-se nos hospitais".

Não disse qual era a solução alternativa, mas, presumivelmente, ela passaria sempre por um modelo que preservasse a manutenção da capacidade reivindicativa que a actual escassez de médicos dá aos respetivos sindicatos.

O senhor bastonário poderia talvez ouvir as pessoas que penam horas nos serviços de urgência com médicos sobrecarregados de trabalho, as que passam meses à espera de uma consulta especializada ou de uma operação, as que têm de se deslocar muitos quilómetros pela ausência de clínicos nas zonas rurais e periféricas, as que perdem dias nas salas de espera dos consultórios, aguardando que alguns médicos saltitem entre empregos. E poderia perguntar-lhes se essas pessoas acham que há médicos a mais, em Portugal. Mas esses são problemas pelos quais, estou seguro, o senhor bastonário não passa, pois não?

OSCE


O Casaquistão assume, durante 2010, a presidência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

Convirá dar uma ideia do que é a OSCE. Trata-se de uma organização que decorre do processo de "détente" entre o Leste e o Oeste, consagrado, em 1975, pelo Acto Final de Helsínquia. A OSCE teve um papel relevante na estruturação do diálogo que envolveu a então URSS e o mundo ocidental, muito em especial no enquadramento dos processos de regulação dos armamentos convencionais de ambos os lados dessa "trincheira" política. Com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, a organização passou a juntar todos os Estados que dela emergiram, a generalidade dos países europeus, bem como os Estados Unidos e o Canadá. Tem hoje 56 países, dos 192 que a ONU comporta.

Com sede em Viena, a OSCE funciona hoje como um barómetro de certas tensões internacionais, quer de ordem militar e de segurança, quer de natureza puramente política - como questões de democracia, Direitos Humanos, protecção de minorias, etc. É uma organização com uma dinâmica muito dependente dos equilíbrios do diálogo russo-americano. O facto de decidir por consenso torna-a refém fácil de quaisquer situações polémicas que ocorram no seu vasto espaço.

Dentro da OSCE foram-se desenhando, ao longo do tempo, dois mundos diversos: o dos Estados "a oeste de Viena" - o ocidente - e o mundo dos países "a leste de Viena". Este último, grosso modo composto pelos Estados resultantes da implosão soviética, e não obstante algumas diferenças mantidas dentro de si, tem uma leitura muitas vezes desconfortável da atitude do primeiro, que interpretam como algo "patronizing" e promotora de "lições" de Democracia e regras básicas do Estado de direito. Acresce que os chamados "frozen conflicts" (Nagorno-Karabach, Transnístria e a situação na Geórgia - com a questão da Ossétia do Sul e da Abcásia) contribuem para alguma crispação do diálogo em Viena.

Até hoje, só Estados do ocidente tinham presidido à organização. A presença do Casaquistão, o mais importante Estado da Ásia Central, à frente da OSCE constituirá, assim, uma "première" e, ao mesmo tempo, um forte desafio à organização, tanto mais que ela tem uma estrutura central relativamente débil, muito dependente da capacidade de liderança das presidências. Soma-se a isso o facto do Casaquistão se propor organizar uma Cimeira dos chefes de Estado e de Governo da OSCE, durante o corrente ano, a qual, a ter lugar, pode assumir um papel decisivo numa reorientação futura da organização.

Portugal presidiu à OSCE em 2002, depois de ter realizado uma sua Cimeira em 1996. Coube-me presidir ao Conselho Permanente da OSCE na fase decisiva da nossa presidência, concluída na reunião ministerial do Porto, em Dezembro desse ano.  Porque vivíamos o tempo posterior ao 11 de Setembro, tentámos colocar o tema do combate ao terrorismo no centro da nossa agenda, por nos parecer que era uma área com condições de federar uma leitura comum ao "oeste" e ao "leste" de Viena. Essa perspetiva prevaleceu e a presidência portuguesa ficou, na história da OSCE, como a última que conseguiu fazer aprovar as suas conclusões por unanimidade.

Em 2004, fui convidado pelas autoridades casaques para, na sua capital, Astana, fazer uma exposição sobre a nossa experiência enquanto presidência, estando já então o Casaquistão a alimentar a sua vontade de vir a assumir tais funções. À época, foi para mim muito interessante detetar o que poderia vir a ser uma agenda de preocupações e intenções dessa futura presidência, que se afastava, em alguns pontos de uma perspectiva mais "ocidental". Veremos, agora, como ela se objetiva.

Portugal é visto, no seio da OSCE, em particular pelos países situados "a leste" de Viena, como um parceiro muito construtivo, dialogante e sempre preparado para ajudar a "construir pontes". Sem nos afastarmos um milímetro dos compromissos assumidos noutros contextos, nunca interpretamos a organização como uma espécie de terreno para a batalha ideológica, mas sim como um espaço privilegiado para o diálogo. É talvez essa a nossa diferença e é com ela que procuraremos ajudar a presidência casaque a ter sucesso.

terça-feira, janeiro 19, 2010

Línguas

O homem era simpático, bem-falante e parecia conhecedor daquilo que o trazia a Nova Iorque. Era um tema muito técnico e o nosso perito parecia, de facto, ser a pessoa adequada para o abordar. A sua intervenção estava prevista para a tarde do dia seguinte e, por essa razão, o embaixador perguntou-lhe se já trazia a sua intervenção preparada. O nosso homem sacou de três folhas da pasta, que entregou ao embaixador. O texto vinha em português. O embaixador inquiriu: "Prefere que façamos a tradução para inglês ou para francês?", línguas em que estava previsto que a leitura fosse feita. A resposta deixou o embaixador sossegado: "Tanto me faz!". Até que, um segundo depois, o nosso perito acrescentou: "Não falo nenhuma das duas..."

Pessoa(s)


No sábado passado, na Casa de Portugal, na Cité Universitaire de Paris, teve lugar uma sessão de divulgação sobre Fernando Pessoa, uma excelente iniciativa que se fica a dever ao entusiasmo de Manuel Rei Vilar, diretor da Casa. Música, cinema, leitura de poemas e, muito em particular, um excelente debate sobre a projeção de Pessoa em França ocuparam algumas belas horas, sem perda de ritmo e com grande interesse do público presente.

Numa das suas intervenções, a especialista pessoana Teresa Rita Lopes, que coordenou o debate, contou uma divertida história, que aqui reproduzo.

A propósito do (des)conhecimento que Pessoa sofria, em tempos, aqui por França, Teresa Rita Lopes referiu que José Augusto Seabra (uma figura intelectual e política de quem, em breve, falaremos com mais detalhe) pretendeu um dia obter de Roland Barthes uma carta de apoio para um pedido de subsídio que queria apresentar à Fundação Gulbenkian, com vista a preparar uma tese sobre Fernando Pessoa. Uma recomendação de uma figura como Barthes seria, seguramente, um elemento muito importante para a consideração do seu projeto.

Seabra "mexeu os cordelinhos" e lá conseguiu obter a almejada carta de Roland Barthes, com que contava abrir as portas à obtenção da bolsa. Dias mais tarde, os seus amigos perguntaram-lhe se já tinha enviado a recomendação à Gulbenkian. Embaraçado, Seabra revelou que não, que decidira não juntar a carta ao processo de candidatura. É que Barthes, no seu texto, ao querer sublinhar a importância do trabalho do investigador,  referiu que ele  pretendia fazer um estudo sobre a obra de "quatro poetas portugueses": Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis...

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Exposição


Há dias, encontrei à venda na internet esta reprodução da entrada do pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1878.

De facto, impressionante!

domingo, janeiro 17, 2010

A leste


Em 2002, um "think tank" que apoia as Nações Unidas, a "International Peace Academy", dirigido então por esse magnífico diplomata canadiano que dá pelo nome de David Malone, organizou um "retiro" de dois dias, num hotel a umas horas de Nova Iorque, juntando quinze embaixadores.

O objetivo, se bem me lembro, era discutir a ideia "impossível" de articular melhor a actividade do Conselho de Segurança com a do Conselho Económico e Social (ECOSOC), de que eu era então um dos quatro vice-presidentes. Era uma ideia antiga, que surgia de tempos a tempos, ressuscitada por um qualquer pretexto de conjuntura. O exercício estava, uma vez mais, condenado ao fracasso porque, por razões curiosamente opostas, quer Cuba quer os Estados Unidos discordavam do aprofundamento dessa cooperação.

Por um motivo que não importa agora para aqui, eu havia-me empenhado em organizar uma sessão especial do ECOSOC dedicada à matéria, para a qual consegui "arrastar", não sem algum esforço, o meu colega britânico, Jeremy Greenstock, que nesse mês presidia ao Conselho de Segurança. O resultado foi o que foi, mas excitou o interesse da "International Peace Academy", que sabia que o tema agradava ao SG da ONU, Kofi Annan.  Dada a minha actividade nesse contexto, fui "upgraded" para o grupo, onde predominavam os embaixadores dos chamados P-5 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança) e de outros "key" ou "major players" internacionais.

Mais para equilibrar geograficamente o debate do que por qualquer outro motivo, foi convidado um embaixador de um grande país "do sul", um antigo político, pouco vocacionado para reflexões especiosas sobre matéria técnicas de relações internacionais. Desde o início, verifiquei pelo seu "body language" (ou melhor, pela sua visível sonolência) que estava muito pouco interessado no tema, que não intervinha e que revelava um enfado com as discussões - que, aliás, foram bem interessantes.

Logo ao final do primeiro dia, cruzei-me num corredor com o nosso homem, de malas aviadas  de regresso a Nova Iorque. Disse-me, na sua língua, que "estava farto" e que a discussão lhe parecia "estéril" - no que podia ter alguma razão, num plano imediatamente prático, se se  esquecessem algumas dimensões políticas mais subliminares. E acrescentou, ao despedir-se: "Só me faltava vir para aqui discutir a Alemanha de Leste!"

Não percebi o que quis dizer e não tive tempo para me esclarecer, porque desapareceu, apressado. Mas fiquei com a frase na cabeça. C'os diabos!, que eu me lembrasse, ninguém tinha falado da Alemanha de Leste, nem tal vinha a propósito, tantos anos depois da queda do muro de Berlim, ainda por cima na presença do embaixador alemão.

Dias depois, encontrando-o na ONU, não resisti e perguntei-lhe: "A que propósito, há dias, no "retreat", referiste a Alemanha de Leste? Esse tema nunca foi discutido...". O homem abespinhou-se: "Em bem vi na agenda da reunião que vocês, no dia seguinte, iam falar disso! Era o único tema para metade dessa manhã. Estava lá bem escrito: DDR! Ora, para o meu país, isso agora já não interessa nada!"

Não sei se ele me perdoou alguma vez a sonora gargalhada que dei no Delegates Lounge. Na linguagem "onusina" e não só, DDR significa "demobilization, disarmement and reintegration"...  

Frase

"Já não há ricos. Já não há pobres no Haiti. Agora, são todos iguais" - Gilberto Nunes António, português que vivia no Haiti há 27 anos, à sua chegada à Europa.

sábado, janeiro 16, 2010

Tintin na China


As aventuras de Tintin vão passar a ser publicadas na China, depois de largas décadas de proibição. Com a óbvia excepção do "Tintin no país dos sovietes", porque há demónios que não convém, por ora, chamar à vida. E estou curioso com a edição do "Tintin no Tibete".

No que nos toca, os chineses terão agora oportunidade de apreciar as astúcias mercantis de Oliveira da Figueira, a sabedoria académica do professor coimbrão Pedro João dos Santos e as movimentações africanas do jornalista sem nome do "Diário de Lisboa" - as três únicas personagens portuguesas criadas por Hergé, com o primeiro apenas com alguma relevância.

Pergunto-me também de que forma as imprecações do capitão Haddock vão ser vistas pela China e nem posso a imaginar o que pensarão do já clássico insulto "bachi-bouzouk". Contudo, com o seu volume demográfico, talvez os impressionem menos os "mille milliards de mille sabords de tonnerre de Brest"..

Quanto a eventuais censuras nos álbuns, a ocorrerem, elas estariam longe de ser as primeiras: até por cá já tivemos intervenções "à Estaline", no tempo do saudoso "Cavaleiro Andante" e da nada saudosa ditadura, como em tempos lembrei aqui.

Eleições

Uma nova pré-campanha eleitoral vai ter início em Portugal. Ainda parece que foi ontem que terminou o annus electoralis de 2009 (europeias, legislativas, municipais) e lá vamos nós para mais um ritual de sufrágio, que vai voltar encher os jornais e as televisões, desta vez de uma forma ainda mais fulanizada. Regressam as sondagens, as suas contradições e as dúvidas quanto à sua fiabilidade. Com os nomes do costume e alguns "realinhamentos" para provocar surpresa, listas de personalidades alinharão por detrás dos candidatos. Regressarão os "blogues da política" aos seus dias gloriosos, uns mais independentes, outros farouchement sectários, uns com linguagem marcada por uma saudável urbanidade, outros roçando a boçalidade insultuosa. Enfim, um déjà vu.

Este é o preço da nossa democracia, que tem a superior vantagem de colocar nas mãos dos cidadãos as múltiplas escolhas possíveis, nos variados níveis institucionais em que elas se podem objectivar. Um preço que, não obstante poder ser considerado pesado, por virtude das dispersão de atenções em temáticas muitas vezes mais adjectivas do que substantivas, deveria ter como contrapartida a geração de uma maior consciência pública e o lançamento de um debate mais aprofundado sobre as grandes opções que estão por detrás das escolhas de natureza política que são propostas.

Interrogo-me, contudo, se será possível detectar, como resultante desta cumulação de debates eleitorais, a decantação de uma opinião pública cada vez melhor informada para fazer face às propostas com que se vai confrontar no momento do sufrágio, a quem as campanhas eleitorais tenham proporcionado instrumentos de formação de vontade, assentes em verdadeiras alternativas objectivas de natureza programática. Nunca poderemos ter certezas sobre isto, mas sinto, de forma um tanto impressionista, que o debate político português mantém um superávite de "espuma dos dias" e um défice de racionalidade.

Esta constatação, a ser verdadeira, pode justificar algum desencanto com a "coisa pública" que se pressente em sectores mais jovens do eleitorado e, num contexto completamente diferente, o alheamento que se verifica em áreas das Comunidades portuguesas no exterior, que acabam por reflectir na abstenção a distância que sentem face à realidade política que observam.

Mas, enfim, sejamos optimistas. Pode ser que a próxima campanha eleitoral contribua para um muito melhor esclarecimento. Portugal e os portugueses merecem isso.

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Afeganistão


Às vezes, tenho sensação de estar a viver uma segunda vida, como profissional de relações internacionais, de tão diferentes e surpreendentes que algumas coisas se apresentam.

O artigo há dias publicado no "International Herald Tribune" por dois altos responsáveis russos, intitulado "Conselhos russos no Afeganistão", tinha-me escapado, e só o "Le Monde" de hoje mo fez recuperar. Os autores são o embaixador russo junto da NATO e o antigo comandante militar russo no Afeganistão.

Todo o texto é interessantíssimo. Essencialmente, procura convencer os aliados da NATO a não desinvestirem na guerra do Afeganistão, porque isso iria ter consequências desastrosas para toda a região, nomeadamente para os Estados da Ásia Central, que faziam parte da antiga URSS e que, vale a pena lembrar, são hoje, cada um à sua maneira, vistos por Moscovo como uma "almofada" potencial de segurança contra o islamismo radical. Em especial, foi-me patente o flagrante contraste do texto com a clara orientação subjacente à posição do comandante de uma unidade russa destacada no Tajiquistão, na fronteira com o Afeganistão, numa visita que aí fiz com três colegas da OSCE, em inícios de 2004.

Mas é o estilo do que se diz no artigo que prova o que o mundo terá mudado. Quem, há uns tempos, veria dois altos responsáveis russos exprimirem-se da seguinte forma?:

- "Se a Aliança não cumprir a sua tarefa, o comprometimento mútuo dos seus 28 Estados-membros ficaria afetado e a Aliança perderia o seu fundamento moral e razão de ser".

-  "Uma saída (do Afeganistão) sem uma vitória poderia causar um colapso político das estruturas de segurança ocidental".

- "Fomos os primeiros a defender a civilização ocidental contra os ataques dos fanáticos muçulmanos. E ninguém nos agradeceu por isso".

- "O mínimo que requeremos da NATO é consolidar um regime político estável no país e evitar a talibanização de toda a região".

- "Estamos muito insatisfeitos com o ambiente de capitulação no Quartel-General da NATO, quer ele se exprima por um "pacifismo humanista" ou por pragmatismo".

E mais não transcrevo, porque os leitores deste blogue só ganharão em ler a peça toda aqui.

Já tenho observado muitas reviravoltas no panorama internacional, mas ver Moscovo a falar  no registo de um general do Pentágono e a apelar, da forma que o faz, para o reforço de compromissos da NATO out of area constitui uma experiência verdadeiramente única. Até porque tem toda a razão...

quinta-feira, janeiro 14, 2010

José Gil


José Gil é um pensador da "coisa portuguesa", espécie intelectual bastante rara. Quanto mais não seja, só por isso, merece toda a nossa atenção.

Mas o que dele aqui trago hoje é uma imagem, porventura polémica, da sua visão sobre as "categorias" entre os imigrados políticos portugueses em França, no tempo do Estado Novo, que há dias li numa sua entrevista ao "Público":

"Uma delas eram grupos que não se abriam à sociedade francesa e europeia: fechados sobre si, só falavam do que estava a acontecer em Portugal, da avenida da Liberdade, das notícias que chegavam de Portugal. Outros abriam-se malgré eux - sem que eles o quisessem; e como não estavam preparados para isso, perdiam-se. Entravam em loucura, em alcoolismo, as promessas de juventude de que seriam grandes poetas iam por água abaixo, suicidavam-se. Uma terceira categoria: rapazes e raparigas que se abriam à sociedade francesa, e que o queriam. E aí começava um tumulto de outro tipo: não ser integrado pela sociedade francesa e perder todos os benefícios secundários que se tinham em Portugal. Em Portugal, quando havia problemas emocionais, desregulamentos, havia sempre uma família."

Seria assim?

Google


Há muito que havia quem previsse que, cedo ou tarde, a globalização (ou mundialização, como dizem os franceses) da internet poderia ser fortemente ameaçada. Vários países condicionam já o acesso dos seus internautas ao espaço global, intervindo nos respectivos servidores. Um "corte de relações" total não ocorreu ainda, mas a actual crise entre a Google e China já não surpreende ninguém.

A "net" é um meio complexo, passível de distorções e fonte de muitos equívocos. Mas, por cima de tudo isso, ela criou um espaço ímpar de comunicação, de intercâmbio e de divulgação do conhecimento. Julgo que isso é incontestável. Sem a menor dúvida, há dois tempos históricos na comunicação universal: antes e depois da internet.

A diplomacia tem as suas regras e a "realpolitik" também. Por isso, apenas digo que, para mim, o direito ao usufruto da internet é hoje uma das liberdades fundamentais que nos compete proteger.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Diplomacia e liberdade

Acaba de ser publicado um livro com uma longa entrevista com o antigo primeiro-ministro Lionel Jospin. Dele falaremos em breve.

Para já, gostava de transcrever a razão dada por Jospin para abandonar o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, onde ingressou por cinco anos, no início da sua vida profissional: "O trabalho interessava-me, os constrangimentos da vida de embaixada menos. E, depois, tudo passava pela renúncia a valores, a referências, a esperanças que eram muito importantes para mim". Para acrescentar: "Quis reencontrar a minha liberdade de pensamento, de acção, de empenhamento, pelo que senti a exigência de uma ruptura", porque "aumentava o fosso entre os desejos e as esperanças do estudante de esquerda que eu tinha sido e o destino que se desenhava para o jovem alto funcionário em que eu me tinha tornado".

Aqui está a prova provada de como, num país como a França, podem germinar experiências bem diferentes daquelas que são concedidas em Portugal aos profissionais do mesmo ofício. Para honra do Ministério dos Negócios Estrangeiros português.

Hedi Annabi


Uma noite de 2002, em Nova Iorque, depois de um jantar que ofereci na residência do embaixador de Portugal na ONU, lugar que eu então exercia, Hedi Annabi, um dos convidados, disse-me que tinha de sair, ainda antes da hora do café. E explicou-me: "Moro longe, em "upstate" e, logo de manhã, tenho de estar no meu gabinete. Tenho de apanhar o comboio. É por isso que raramente consigo aceitar os teus convites para jantar".

Sendo em geral simpáticos, os salários que a ONU pagava aos seus funcionários, mesmo de nível superior, como era o caso, não davam para poder ter um bom apartamento em Manhattan, pelo que alguns preferiam ir viver na parte norte do estado de Nova Iorque, isto é, "upstate", como ali se diz.

Heddi Annabi era "Assistant Secretary General" no departamento de operações de paz, nessa altura com o tema de Timor-Leste sobre a mesa. Era voz corrente ser muito escutado por Kofi Annan. O meu "número dois", o ministro-conselheiro Nuno Brito, assinalara-me Annabi como uma das pessoas que era importante cultivar, desde o primeiro momento, na gigantesca máquina da ONU. E tinha razão. Foi talvez das primeiras pessoas que fui visitar, depois da minha chegada a Nova Iorque.

Era uma figura discreta, serena, sorridente, que logo notei muito organizada e meticulosa. Tinha humor, sabia ter ironia sem ser cínico, o que era uma prova de caráter. E era homem de uma só palavra, o que nem sempre é comum na vida multilateral - e noutras também, convenhamos. Criámos uma excelente relação pessoal, com consequências funcionais que se tornaram evidentes.

Quando saí de Nova Iorque, deixei de saber de Annabi. Aconteceu-me o mesmo com outros amigos diplomatas que fui deixando espalhados pelo passado, nacionais de países onde trabalhei ou outros estrangeiros que entretanto rodaram pelo mundo. Alguns, poucos, voltei a cruzar em outros postos, com outros fui trocando mensagens, mas, com a esmagadora maioria, fui perdendo contacto. Foi o caso de Annabi.

Até um dia de 2005. Tinham passado três anos desde que eu tinha saído de Nova Iorque. Acabara de chegar ao Brasil, como novo embaixador. Um dia, o meu colega Rui Macieira, então ministro-conselheiro na nossa missão na ONU, telefonou-me de Nova Iorque. Annabi contactara-o, pedindo que me transmitisse um convite de Koffi Annan para poder apresentar o meu nome como Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para a Costa do Marfim. A resposta tinha de ser rápida.

O conceito de "zona de conforto" veio-me logo à cabeça. Sempre embirrei com o regular elogio que é costume fazer-se a quem sai "fora da sua zona de conforto". Ora a "zona de conforto", se a conquistamos, deve ser preservada. Olhei à minha volta e pensei: o Brasil era o penúltimo posto da minha carreira, antes de ter obrigatoriamente de abandonar o serviço externo. Tinha para mim que a vida me ia correr bem por ali. Por que diabo iria sair de Brasília? Ir viver em Abidjan, num país politicamente convulso, deixando a minha carreira, para ganhar uma linha curricular e, possivelmente, algum dinheiro mais? Nem ousei suscitar a hipótese à minha mulher! Fiquei muito grato a Annan e a Annabi, disse isso mesmo ao Rui Macieira e não pensei mais no assunto. (Soube, entretanto, que o lugar veio a ser ocupado pelo antigo representante permanente da Suécia na ONU, Pierre Schori, com quem eu coincidira em Nova Iorque e que já era um amigo antigo, de outras "guerras").

Desde então, passaram cinco anos e não tinha tido mais notícias de Hedi Annabi. Até hoje, quando soube que morreu no terramoto que assolou o Haiti, onde chefiava a missão da ONU naquele país.

terça-feira, janeiro 12, 2010

República(s)



Há dois dias, troquei impressões com um bom amigo português, de visita rápida a Paris, sobre a diferença de perspetiva em torno do conceito de República, existente em França e em Portugal. Concordamos em que, enquanto entre nós a República é muitas vezes vista apenas como um regime que se opõe à Monarquia, em França o ideário republicano é aceite como uma ética de cidadania, em que assenta a própria democracia.

A diabolização da I República, que o Estado Novo hiperbolizou pela sua rejeição dos partidos políticos e da Democracia, acabou por colar, para muitos, o conceito republicano à face trágica do regicídio, às perseguições religiosas e a algumas das "trapalhadas" do período 1910-1926. Deliberadamente, essa estratégia de propaganda, feita sem oposição doutrinária, tentou fazer esquecer que muita dessa instabilidade, originada no quadro de uma democracia jovem e em curso de implantação, foi ela própria fruto da ação destabilizadora dos seus inimigos - com alguns monárquicos sempre na primeira linha. Para além dos erros que os republicanos cometeram - e não foram poucos -, é importante deixar claro que foram os seus inimigos quem abriu as portas à ditadura, em 1926, e que construíram ou apoiaram o regime autoritário subsequente, que só o 25 de Abril derrotou, quase quatro décadas depois.

Lembrar alto e bom som esta realidade, revisitar e sublinhar todas virtualidades da República, constitui uma tarefa exigente que, durante este ano do seu primeiro centenário, todos os republicanos portugueses serão chamados a fazer, com vigor e sem concessões, denunciando, com frontalidade, os revisionismos da História.

A Embaixada de Portugal em Paris, para além de se associar a diversas comemorações e eventos alusivos aos 100 anos da República, irá organizar, durante 2010, iniciativas nesse quadro celebratório. 

Ficções e realidades

Hoje, almocei com um amigo que está a acabar um trabalho de ficção em prosa. De passagem cá por casa está um consagrado poeta. Eu fico-me em prosaicas realidades. E não desgosto.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...