quarta-feira, janeiro 13, 2010

Hedi Annabi


Uma noite de 2002, em Nova Iorque, depois de um jantar que ofereci na residência do embaixador de Portugal na ONU, lugar que eu então exercia, Hedi Annabi, um dos convidados, disse-me que tinha de sair, ainda antes da hora do café. E explicou-me: "Moro longe, em "upstate" e, logo de manhã, tenho de estar no meu gabinete. Tenho de apanhar o comboio. É por isso que raramente consigo aceitar os teus convites para jantar".

Sendo em geral simpáticos, os salários que a ONU pagava aos seus funcionários, mesmo de nível superior, como era o caso, não davam para poder ter um bom apartamento em Manhattan, pelo que alguns preferiam ir viver na parte norte do estado de Nova Iorque, isto é, "upstate", como ali se diz.

Heddi Annabi era "Assistant Secretary General" no departamento de operações de paz, nessa altura com o tema de Timor-Leste sobre a mesa. Era voz corrente ser muito escutado por Kofi Annan. O meu "número dois", o ministro-conselheiro Nuno Brito, assinalara-me Annabi como uma das pessoas que era importante cultivar, desde o primeiro momento, na gigantesca máquina da ONU. E tinha razão. Foi talvez das primeiras pessoas que fui visitar, depois da minha chegada a Nova Iorque.

Era uma figura discreta, serena, sorridente, que logo notei muito organizada e meticulosa. Tinha humor, sabia ter ironia sem ser cínico, o que era uma prova de caráter. E era homem de uma só palavra, o que nem sempre é comum na vida multilateral - e noutras também, convenhamos. Criámos uma excelente relação pessoal, com consequências funcionais que se tornaram evidentes.

Quando saí de Nova Iorque, deixei de saber de Annabi. Aconteceu-me o mesmo com outros amigos diplomatas que fui deixando espalhados pelo passado, nacionais de países onde trabalhei ou outros estrangeiros que entretanto rodaram pelo mundo. Alguns, poucos, voltei a cruzar em outros postos, com outros fui trocando mensagens, mas, com a esmagadora maioria, fui perdendo contacto. Foi o caso de Annabi.

Até um dia de 2005. Tinham passado três anos desde que eu tinha saído de Nova Iorque. Acabara de chegar ao Brasil, como novo embaixador. Um dia, o meu colega Rui Macieira, então ministro-conselheiro na nossa missão na ONU, telefonou-me de Nova Iorque. Annabi contactara-o, pedindo que me transmitisse um convite de Koffi Annan para poder apresentar o meu nome como Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para a Costa do Marfim. A resposta tinha de ser rápida.

O conceito de "zona de conforto" veio-me logo à cabeça. Sempre embirrei com o regular elogio que é costume fazer-se a quem sai "fora da sua zona de conforto". Ora a "zona de conforto", se a conquistamos, deve ser preservada. Olhei à minha volta e pensei: o Brasil era o penúltimo posto da minha carreira, antes de ter obrigatoriamente de abandonar o serviço externo. Tinha para mim que a vida me ia correr bem por ali. Por que diabo iria sair de Brasília? Ir viver em Abidjan, num país politicamente convulso, deixando a minha carreira, para ganhar uma linha curricular e, possivelmente, algum dinheiro mais? Nem ousei suscitar a hipótese à minha mulher! Fiquei muito grato a Annan e a Annabi, disse isso mesmo ao Rui Macieira e não pensei mais no assunto. (Soube, entretanto, que o lugar veio a ser ocupado pelo antigo representante permanente da Suécia na ONU, Pierre Schori, com quem eu coincidira em Nova Iorque e que já era um amigo antigo, de outras "guerras").

Desde então, passaram cinco anos e não tinha tido mais notícias de Hedi Annabi. Até hoje, quando soube que morreu no terramoto que assolou o Haiti, onde chefiava a missão da ONU naquele país.

7 comentários:

Julia Macias-Valet disse...

Acabo de ver imagens desoladoras em :

http://www.lexpress.fr/diaporama/diapo-photo/actualite/monde/scenes-de-desolation-a-haiti_841659.html?p=2

Porque serao sempre as populaçoes mais pobres as mais martirizadas ?

Anónimo disse...

Hoje nas instituições é obrigatório a existência de planos de emergência e catástrofe e a operacionalização dos exigíveis simulacros sob pena de ser constatada uma lacuna passível de ser qualificada como um handycap da orgânica da instituição quando em auto e heteroavaliação.

"A experiência prova que os acontecimentos são, quase sempre, a única alavanca eficaz."

Depois da casa assaltada "Trancas á porta".

É ...também a experiência Me diz que os simulacros valem o que valem... E muito decerto... Mas são virtuais...

Já a Natureza...
É o maior teste... imprevisível, embora nos custe a admitir,implacável face à nossa impotência ...

Também me equaciono com a questão da Julia, encontro algumas teorias explicativas à luz da ciência ...Mas nenhuma me anima muito menos me sossega ou consola...
Torna mais nítida a percepção clara da minha mortalidade...

Essencialmente a lastima de Quem deixou Grandes projectos por concretizar com maior intensidade nos casos específicos onde não foram Semeados Seguidores...
Isabel Seixas

margarida disse...

...ando às voltas há horas sem saber o que lhe escrever, mas querendo mesmo escrever alguma coisa...
Apresentar condolências traduz o quê, de facto?
Quando conhecemos quem parte, parece que não há conforto algum, só resta a perplexidade.
A dor intransitiva.
Confio que como todos passámos por perdas antes, sabemos o não dito.
Sobre a tragédia de um país, de um paupérrimo país, que mais fazer além de orar (para quem crê) ou enviar recursos?
Perceber o gritante exemplo.
Tomar medidas.
Prevenir.
Honrar os que tão brutalmente partiram ou sobreviveram com traumas indizíveis.
Prestar tributo.
Recordar.

Unknown disse...

quero aqui deixar um adeus aos colegas da onu que morreram e em especial aos brasileiros meus conterraneos na pessoa de Luiz carlos da costa que se safou de tantas bestialidades humanas acabando por perecer num movimento brusco da natureza...

C.Falcão disse...

Justa homenagem.

HAITI, uma trajédia.
Tive a oportunidade de visitar este pobre país. 50% dos haitianos, vivem a baixo do seio de pobresa.

Um país duramente atingido: crises politicas, motins, más colheitas, deslizamentos de terra , currupção, violencia, e agora o terremoto. Um pesado tributo!

Nota:
« … não se deve legislar sob a pressão dos factos». Inteiramente d'acordo. Não só na politica interna ou internacional mas tambem, agora e aqui, na vida de todos os dias.

Cordialemente

P.S.: cruz vemelha.fr

José Barros disse...

Não posso dar muito mas não resisti sem chamar uma amiga haitiana que reside aqui na região parisiense e que sofre a angústia dos que estão longe de familiares e amigos na impossibilidade total de os contactar. Fiquei o tempo necessário com ela ao telefone para acalorá-la com algum reconforto. Estes pequenos gestos de solidariedade, que penso serem numerosos, são possíveis sem qualquer necessidade de organização ou coordenação. Já para a ajuda sanitária, médica e material indispensáveis àquela população onde tudo está destruído, a ausência ou ineficácia de uma coordenação torna muito mais difícil o socorro onde cada segundo conta... E se em situações de tão elevada emoção é relativamente fácil mobilizar os esforços de governos e populações de muitos países para uma ajuda reconfortante, as falhas de uma organização central têm sido frequentemente apontadas ao ponto de muitas vezes os organismos humanitários não saberem que destino dar a materiais que são obrigados a armazenar na impossibilidade de os encaminharem para o destino.
E não será por falta de exemplos que este problema não é resolvido. Catástrofes parecidas muito recentemente mostraram-nos o quanto é importante uma coordenação central sem falhas que não pode ser improvisada à última da hora. Se não à ONU, a quem poderia competir colmatar esta lacuna?

Nuno Sotto Mayor Ferrao disse...

Caríssimo Senhor Embaixador Francisco Seixas da Costa,

Uma tragédia é sempre algo que nos desperta um sentimento de compaixão e uma vontade de reforçar a solidariedade nacional ou internacional, como é o caso da situação caótica no Haiti. Como achei sentido o seu testemunho de homenagem a um Homem Bom, como foi, o diplomata tunisino, Hedi Annabi, e me pareceu bem pertinente a sua sugestão de reforço dos meios e mecanismos de coordenação para acções humanitárias desta dimensão inusitada publiquei este seu texto no blogue colectivo “Milhafre” do Movimento Internacional Lusófono, tendo destacado que é de sua autoria, que foi publicado neste seu blogue e apresentei também a data de edição.

Como reconheço a pertinência das suas análises e dos seus temas irei publicar, com a identificação clara da sua autoria e proveniência, um ou outro texto seu ligado a temas culturais no meu blogue que tem esse teor, caso não tenha nada a obstar: www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt

Com os meus melhores cumprimentos, Nuno Sotto Mayor Ferrão

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