quinta-feira, setembro 10, 2009

11 de Setembro de 2001 - Nova Iorque


“Pela cor do fumo, deve tratar-se de um incêndio”, comento para o meu motorista, ao ver uma pequena nuvem negra, estranhamente alta, ao sul de Manhattan, caminhando de Oeste para Leste. Circulamos no FDR drive, a via rápida que acompanha a margem ocidental da ilha que é o coração de Nova Iorque. Devem faltar três ou quatro minutos para as nove horas, início da reunião dos embaixadores da União Europeia, que tem lugar todas as terças-feiras num prédio em frente da ONU. À entrada, o meu colega francês, Jean-David Levitte, fala-me de um incêndio no World Trade Center. O inglês, Jeremy Greenstock, que vem atrás, está melhor informado: um avião colidiu com uma das torres. Sem excluir nada, o acidente é a hipótese implicitamente assumida por todos como mais plausível.

Já no 6º andar do edifício, a caminho da reunião, vemos imagens na televisão: chamas e fumo. Minutos depois, um colaborador meu, que permanece junto ao televisor, vem chamar-me: um outro avião embateu na segunda torre. Regresso à sala, onde os trabalhos já começaram, e informo os colegas ao meu lado. Trata-se, sem dúvida, de atentados, mas não temos a menor ideia sobre o tipo de aviões utilizados. Porém, não nos passa pela cabeça que os incêndios não possam ser debelados, embora assumamos que deva haver um número importante de vítimas. O colapso das torres não é sequer, naquele momento, hipótese imaginável.

(Vi as torres do World Trade Center, pela primeira vez, em finais de 1972, na minha primeira visita a Nova Iorque. Fui ao topo de uma delas três vezes, a última das quais em Junho de 2001, com o meu pai. Na noite de 10 de Setembro de 2001, o José Manuel dos Santos ia jantar no “Windows of the World”, o restaurante no alto de uma das torres, e telefonou-nos, durante a tarde, a anunciar o evento. Ainda nessa mesma noite, ao regressar do lançamento oficial do jornal “24 Horas”, em Newark, o meu motorista convenceu-me a ir pelo Lincoln Tunnel, dado que estava uma visão excelente, o que permitia uma vista gloriosa das torres iluminadas – fico a dever ao Ismael essa derradeira perspectiva do skyline de Manhattan.)

Numa olímpica inconsciência, a reunião dos embaixadores comunitários prossegue, tendo a “Cimeira da Criança” na agenda de prioridades. Cerca das nove e meia, um papel circula: um terceiro avião ter-se-á despenhado no Pentágono. Surpreendentemente, a presidência da União Europeia não toma a iniciativa de suspender a reunião e nenhum de nós o sugere.

A reunião acaba às 10 horas. Estava previsto que o “sino da paz”, oferecido em tempos pelo Japão à ONU, tocasse no seu jardim, como é da tradição, para anunciar a data de início da nova Assembleia Geral anual, a ter lugar precisamente nesse dia. Saio da sala com a colega dinamarquesa e com Levitte, a caminho da cerimónia. Comentamos, com generalidades, a gravidade já pressentida dos acontecimentos. Chegados à rua, damo-nos conta que o mundo tinha, entretanto, mudado, muito mais do que nós supúnhamos. Havíamos estado numa patética redoma durante a última hora. À distância, tenho que confessar que não fico nada orgulhoso por ter participado nesse exercício de cegueira colectiva. Verificamos que o edifício das Nações Unidas está já praticamente evacuado. A circulação na 1ª Avenida foi suspensa. As pessoas param e sentam-se nos passeios, com caras de espanto e de inquietação.

Dirijo-me à Missão de Portugal, na 2ª Avenida, a 200 metros de distância. A maioria dos funcionários está na sala de reuniões, onde há um aparelho de televisão. A situação agrava-se a olhos vistos, os incêndios não parecem controláveis e a expectativa de haver muitas vítimas é cada vez mais clara. A consternação e a emoção são gerais, os comentários interrogativos sobre o futuro são crescentes e há lágrimas em muitos olhos. Que mais pode acontecer? Que outros riscos existem? Soube-se, entretanto, do quarto avião, despenhado na Pensilvânia.

Fecho-me só no gabinete, para pensar um pouco no que fazer, com a CNN em fundo. A pausa dura apenas escassos minutos. No meio do ambiente de tensão que se vivia, é-me anunciada a chegada do Embaixador da Islândia. Volto a protagonista de uma cena quase surrealista. Como havíamos combinado dias antes, vem pontualmente às 10 e meia ... para discutir a questão da rotação de candidaturas na Comissão dos Direitos do Homem! Delicada mas penosamente, deixo-o iniciar a conversa, com a cabeça já algures. À terceira ou quarta interrupção por telefonemas, ambos assumimos, finalmente, que o ambiente não está para business as usual e concordamos em adiar o encontro.

Entretanto, a primeira torre cai. A dimensão da tragédia adensa-se rapidamente. A perspectiva de cidadãos portugueses estarem entre as vítimas (que eu, um tanto inconscientemente, mas com infeliz precisão, já digo para uma televisão portuguesa que podem ser milhares) mobiliza, como é natural, os inúmeros contactos feitos pela comunicação social nacional. Na realidade, nada se sabe por ora. Em Lisboa ou Nova Iorque, todos somos simples membros da “geração CNN”. Nas minhas intervenções, com voz nas rádios e nas televisões nacionais que me procuram, tento adoptar um tom de procurada serenidade, assumindo sempre que, em qualquer caso, nunca haverá muitos nacionais portugueses envolvidos (recordo ter verificado que as visitas de turistas não se tinham ainda iniciado, à hora dos atentados). Remeto as precisões para o Consulado-Geral e para a Embaixada em Washington, mais por uma questão formal do que pela convicção de que possam saber algo mais do que eu.

Os telefonemas de Portugal sucedem-se: os nossos familiares e a comunicação social. E também o Presidente da República, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e o Secretário-geral do MNE – os representantes oficiais portugueses que nos contactam a manifestar a sua simpática preocupação pelo nosso bem-estar. Por uma avaria da empresa dos telefones, com a central junto às Torres, que demoraria muitos dias a ser rectificada, vamos ficando sem linhas de acesso ao exterior, o que nos obriga a aproveitar as chamadas recebidas para pedir que sejam transmitidas mensagens de acalmia aos nossos familiares.

Sou informado que as escolas em Nova Iorque estão a encerrar e digo aos funcionários com filhos para irem para casa. Pouco depois, corre a notícia que a ilha de Manhattan vai ser isolada; os restantes funcionários que vivem fora da ilha – a grande maioria do pessoal administrativo - são autorizados a regressar rapidamente às suas casas, onde acabarão por ficar vários dias, dada a permanência das restrições.

As ruas, antes com imensas pessoas em conversas que se adivinham de catarse colectiva, começam agora a ficar vazias e silenciosas, se excluirmos as sirenes de ambulâncias e dos carros de bombeiros, mas essas já parte do cenário acústico nova-iorquino normal. Cada vez se vêem menos viaturas particulares. As restrições de circulação anunciam-se progressivamente rigorosas.

Com o pessoal administrativo e os funcionários com família já fora, a Missão está quase deserta. Os poucos que ficamos, estamos de piquete aos telefones que ainda funcionam - do embaixador ao Conselheiro Militar, num ambiente que se vai prolongar por vários dias. Às 7 da tarde (meia-noite de Lisboa), dou ordem para encerrar a Missão. Só então noto que não comi nada desde manhã.

Regresso a casa, onde a minha mulher passou o dia, como todos nós, em frente do televisor, o que vai ser a nossa sina nos dias que se seguirão. Acabará por ser ela a descobrir, através da informação de uma cadeia de televisão, que ambos, precisamente na 6ª feira e o sábado anteriores, havíamos pernoitado no hotel de Boston que foi utilizado pelos responsáveis de um dos atentados - o “Westin Hotel”. Confesso que não pude evitar uma viagem retrospectiva, embora sem sucesso, pela memória das caras que encontrámos nos corredores.

As imagens das torres em chamas continuam a ser repetidas à exaustão em todos os canais, os comentários dos especialistas esgotam o universo das hipóteses, os súbitos “peritos” na actualidade iniciam os seus meses de glória, muitas vezes num mero débito de platitudes e de lugares-comuns. A onda de análises que as televisões nos traz não deixa margem para dúvidas sobre o que aí vem. O desespero, a raiva e a vontade de vingança sobrepõem-se, sem apelo, a qualquer juízo de racionalidade. Não estou surpreendido. Falar simplesmente de justiça, ligar circunstâncias ou tentar enveredar pela explicação de algumas coisas passou, de repente, a ser incorrecto, porque não joga com o discurso maniqueu em que se apoia o jingoísmo já dominante. Dias mais tarde, vou descobrir que, na comunicação social portuguesa, o tom dos “especialistas” domésticos vai também, quase sempre, no mesmo sentido. A imprensa trar-nos-á, durante as semanas seguintes, alguns exemplares de ferozes exegetas críticos da heterodoxia. As Nações Unidas também não vão ficar imunes, por algum tempo, a esta vaga.

Depois de muitas horas passadas a reagir e a lançar hipóteses “a quente”, procuro parar um pouco para pensar. Alinho os factos, tento deduzir as consequências imediatas nas várias dimensões do problema e perspectivar linhas para participar na reacção colectiva que terá que ter lugar no âmbito das Nações Unidas. Estou praticamente sem comunicações com Lisboa, mas é óbvio que não necessito de quaisquer instruções para assumir posições nesta matéria em nome de Portugal.

Deito-me já de madrugada, depois de algumas horas de zapping televisivo. Foi um dia longo e pesado, um dia bem triste. Um dia que fez perder ao mundo bastantes anos.

(Este texto reproduz grande parte de um outro que inseri no meu livro “Uma Segunda Opinião”)

11 de Setembro de 1973 - Chile

quarta-feira, setembro 09, 2009

Títulos

Ao ver o cartaz de um novo filme, que se intitula "L'Armée du Crime", lembrei-me que as brincadeiras com as palavras, nos títulos, podem ser uma coisa muito divertida. Eu, confesso, sou fascinado por esses trocadilhos e só tenho pena de não ser organizado ao ponto de tomar nota deles.

Há uns anos, dizia-se que o jornal "Independente" criava títulos com alguma graça e, depois, imaginava conteúdo para os respectivos artigos. Confesso que, em absoluto, não acho mal. Um bom título é meio caminho andado para uma boa história e, em tese, até pode ficar à espera dela...

Tive sempre a ideia de que se, um dia, publicasse um livro de poemas - coisa que será um tanto difícil, porque nunca escrevi nenhum... - ele poderia vir a chamar-se "A Fixação Proibida". Porquê? Porque acho graça à "desmontagem" da expressão clássica das placas de parede, que agora rareiam, talvez por cansaço de inutilidade. Há dias, porém, o Ricardo Araújo Pereira, um dos poucos génios que Portugal tem produzido em tempos recentes, "roubou-mo" para um artigo na "Visão". Este já foi...

E acho excelente o título de um livro de poemas que, há um bom par de anos, no auge do PREC, vi numa livraria de Lisboa: "As Forças Amadas". Folheei-o mas nunca o li, até porque, com certeza, a poesia não estava à altura do título. A prova é que nunca mais se ouviu falar de tal livro.

Viva Queirós !


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Santa Casa

A imprensa europeia não fala de outra coisa: a decisão do Tribunal Europeu que deu vencimento à queixa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contra a empresa de apostas informáticas Bwin, que impede esta de actuar no espaço português, tendo como associado luso a Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Uma medida tomada com o objectivo de "lutar contra a fraude e a criminalidade" - para que se pondere. Está a ser um vendaval de notícias...

Parabéns, provedor Rui Cunha! E se a Santa Casa, para comemorar, devolvesse por teu intermédio aos automobilistas lisboetas o espaço que lhes retirou no Largo da Misericórdia? Seria bem bonito!

Notas

Não há ninguém que perceba melhor do que eu o fascínio que os famosos cadernos da Moleskine provocam nas pessoas. Tenho um grande amigo brasileiro que diz sentir-se "nu", se se esquece do Moleskine! Desde há muito que sou um infatigável coleccionador daquilo que os britânicos apelidam de "stationery", categoria comercial onde se incluem pequenos livros, de capa dura ou mole, de folhas brancas, quadriculadas ou de linhas, destinados a apontamentos diversos.

(Uma nota curiosa, de cultura "de almanaque": chama-se "stationery" a estes produtos porque se vendem em sítios fixos e não em vendedores ambulantes: "si non è vero, è bene trovato"...)

Compro-os incessantemente pelo mundo, para angústia de espaço de quem vive comigo, pela certeza que temos que, nem com outra vida, chegaria a ter tempo para os escrevinhar a todos. E tenho-os de várias espécies e tamanhos: desde uma "raça" muito bruxelense, usada na União Europeia, com capa dura coberta a pano acinzentado, até uma vienense de tom verde escuro brilhante, passando por alguns azuis fortes, com belíssimo aspecto e que quase dá pena de encetar. Nas reuniões internacionais, se vislumbro do outro lado da mesa alguém com um modelo que me interessa, não deixo logo de inquirir onde o adquiriu - e lá vou eu... Tenho agora encomendados, num encadernador de Vila Real, exemplares de um novo modelo que vi nas mãos de um amigo, coberto a carneira, que vai passar a estrela (episódica) do armário onde jazem dezenas desses livros e cadernos, separados, "às paletes". E, claro, também tenho um Moleskine, mas apenas um.

Dito isto, convém que ninguém se iluda. O mundo pode produzir toda a espécie destes caderninhos anti-Alzheimer (chamo-lhes assim porque neles tomo nota incessante de tudo o que posso esquecer), mas os melhores de todos - e os mais baratos de todos - encontram-se no Porto, na Papelaria Heróica, no número 110 de uma das mais bonitas artérias da Invicta, a Rua das Flores, paralela à Mouzinho da Silveira, para quem desce da estação de S. Bento para a Ribeira. Há décadas que lá me abasteço desses livrinhos, de capa preta, convencendo-me eu que os passaram a produzir também em papel quadriculado (eram só brancos e de linhas) depois de anos de operosas conversas que tive com os antigos proprietários. Eles fizeram-me a vontade, mas os actuais donos "estragaram-me" a gramagem da capa, o que torna agora os cadernos um pouco mais duros e menos maleáveis. Mesmo assim, valem muito a pena. Experimentem!

Já agora, se forem à rua das Flores, aproveitem para nela ver uma das mais belas igrejas do Porto e, quase em frente, um dos melhores alfarrabistas do país, para coisas contemporâneas, o "Chaminé da Mota". E, por hoje, basta de publicidade!

segunda-feira, setembro 07, 2009

Fardas

JustifierUm dia, na segunda década dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de Abril, membro do Conselho da Revolução, homem muito estimável, que deixou uma rara imagem de educação, elegância e bom-senso na sociedade política de então.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar ornada de pinturas, daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixa cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". Os tempos políticos, à época, não eram já muito propícios a poder garantir, de mão beijada, sinecuras a quem não possuía experiência e qualificações profissionais adequadas à função. Mas nunca fiando...

E, por essa razão, e perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente, homem do mundo, cuja inteligência e arte voltariam, no futuro, a colocar Londres no seu destino, não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, é precisamente o contrário: sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa.

domingo, setembro 06, 2009

Derrotas

Há dias, um canal da televisão francesa apresentou um programa onde um grupo de académicos, vocacionados para a leitura da coisa pública (sociólogos, semiólogos, psicólogos e politólogos), apreciou, com profundidade e grande qualidade científica, os chamados "discursos da derrota" dos políticos.

O objecto do estudo foram peças televisivas, algumas com mais de meio século, nas quais figuras proeminentes da vida política francesa reagiram a quente, em frente às câmaras, face a derrotas que tinham acabado de sofrer. Foram dissecados, para além do conteúdo do que foi então dito, a imagem, o estilo e a forma dessas prestações - os ares seráficos, a raiva contida, os esgares forçados, a expressão dos olhares e os tom de voz, a presença ou ausência de força anímica residual nas personagens, em alguns casos veladas ironias.

Houve de tudo um pouco, desde a humildade sincera à arrogância e à acidez, do anúncio da saída definitiva de cena até à subliminar promessa da não desistência no futuro, de votos de felicidades aos contendores até a prenúncios trágicos do "après moi, le déluge". E, claro, queixas do efeito das sondagens, campanhas distorcidas, teorias conspiratórias e traições, incredulidade e desencanto perante a ingratidão ou a incompreensão dos votantes. Uma hora magnífica e instrutiva de televisão.

Em Portugal, todos temos na memória alguns momentos semelhantes, esses escassos minutos em que, sempre com ar grave e, às vezes, genuinamente emocionado, dirigentes políticos caseiros tiraram conclusões, instantes depois de terem concluído que os eleitores lhes haviam tirado o tapete...

Agora já é tarde, mas teria tido imensa graça, e dessacralizaria por antecipação as nossas noites televisivas de 27 de Setembro e 11 de Outubro, se algum canal da televisão portuguesa tivesse tido a coragem de nos lembrar esses momentos breves do nosso passado político dos últimos 35 anos.

Isso poderia ensinar os nossos futuros derrotados a conviverem melhor com o que o destino lhes trará. É que a democracia não é apenas o sistema em que se vive, é também a maneira de o saber viver e aceitar.

Pausa

Enquanto alguns voltam penosamente ao trabalho e outros se entretêm em estimáveis lides próprias da "saison", este blogue aproveita para ir discretamente de férias, mantendo apenas os "serviços mínimos" diários a que a lei da lealdade para com os seus leitores o obriga, com gosto.

sábado, setembro 05, 2009

João Vieira (1934-2009)

Através do blogue do Alexandre Abrantes, acabo de saber da morte de João Vieira, um nome grande da pintura portuguesa contemporânea. Os críticos e os biógrafos encarregar-se-ão de lhe traçar um último retrato. Como homenagem pessoal, limito-me apenas a olhar, com admiração, para uma parede da minha casa, onde uma obra dele, adquirida já há alguns anos, me transmite a viva alegria das suas cores e dos seus traços fortes.

Paris foi uma cidade a que João Vieira esteve sempre ligado, desde que aqui chegou em 1957, como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Trabalhou com Arpad Szenes e aqui criou, com outros artistas, a revista KWY. Paris seria, aliás, uma cidade que nunca saiu dentro de si e onde regressou sempre.

Há menos de um ano, João Vieira teve a amabilidade de me convidar para comissário internacional da iniciativa SINAIs DOURO, um projecto que há muito acalentava, destinado a dar projecção a algumas belíssimas ermidas da zona duriense, associando-lhes trabalhos de artistas estrangeiros. Por razão das ocupações da minha vida errante, devo confessar que não pude, porventura, estar à altura das suas expectativas sobre a minha contribuição para aquela que era uma obra generosa e de grande interesse. Iniciativa que, agora, sem ele, duvido que possa ir adiante. Às vezes, as pessoas são mesmo insubstituíveis.

Em tempo: são de João Vieira os magníficos vitrais colocados na Sé Catedral da minha cidade natal, Vila Real.

Carta a Liedson

Caro Liedson

Neste dia em que você pode vir a vestir pela primeira vez a camisola das quinas (e, já agora, como novo cidadão português, conviria que soubesse a razão pela qual essas quinas existem e porque figuram na nossa bandeira) quero enviar-lhe um muito sincero abraço de saudação por ter decido juntar-se a nós - embora você, como brasileiro, nunca tivesse estado muito distante.

Agora que as artes administrativas do Dr. Madaíl conseguiram apressar, pelo interesse de recrutamento urgente de pé-de-obra especializado, a emissão do seu novo bilhete de identidade, digo-lhe que vejo com muito agrado uma pessoa com a sua correcção, simpatia e profissionalismo passar a ser oficialmente um de nós. Há vários anos que você é um modelo de integração brasileira na sociedade portuguesa, para orgulho dos seus compatriotas de origem e para prazer de quem aprecia a sua bela arte futebolística, como é o meu caso.

Porém, agora já com a honestidade de compatriota, gostava de fazer-lhe uma séria advertência: você vai, muito rapidamente, ter de escolher uma de entre duas atitudes.

A primeira será você transportar, para a sua nova qualidade de português, muito daquele maravilhoso optimismo que faz parte da matriz do seu país, esse orgulho, essa crença e saudável maneira de ver a vida e um futuro que sempre "vai dar certo". De algum modo, isso retribuiria o "cheirinho a alecrim" que o Chico Buarque nos pediu e que, agora, bem precisávamos de volta - se puder, ouça bem a canção do Chico, porque ela explica muito do que houve e há entre nós.

Outra opção - o seu verdadeiro atestado de "ser português hoje" - será você, com a ampla legitimidade que o seu estatuto de lusitano "de carteirinha" agora lhe dá, entrar na onda dominante. Para isso, apenas tem de assumir o fado da desgraça, afivelando o carão do descontentamento, esse "mal-estar" (ia escrever "mal de vivre", mas receio que você não seja muito dado ao francês) que é hoje uma nossa marca de identidade quase obrigatória.

Não se arrisque, por isso, caro Liedson, a continuar a saudar alguém com o seu carioca "tudo bem?", porque pode ouvir, logo de volta, "das boas", como cá dizemos, talvez mesmo um arrogante "olha-me para este!?". Se quer passar a ser português contemporâneo de parte inteira, estando com os ares do tempo, logo na próxima segunda feira, ao entrar na porta 10A de Alvalade, ponha uma cara grave e angustiada, tipo Paulo Bento depois das derrotas, e queixe-se, queixe-se muito, de tudo e de todos, comece a dizer que isto é um país miserável, que está tudo mal, do clima ao trânsito, do que não posso dizer ao que você sabe que todos dizem. Não vou ao ponto de aconselhá-lo a chamar já "choldra" ao país (como fazia um saudado personagem de Eça de Queirós, um autor que você ganharia em ler, no intervalo dos treinos) ou a qualificar Portugal de "piolheira", como fazia um rei a quem o destino retribuiu com uma bala na cabeça.

Pode mesmo contar a anedota de que este ano está a ser tão mau, tão mau, que já parece o ano que vem. Vai ver que cai bem entre os seus amigos portugueses, que intimamente pensarão: "Este Liedson está muito bem integrado!".

A escolha é sua. E não resisto a oferecer-lhe uma música, que é um retrato curioso deste seu novo país, também à beira-mar espraiado.

Boa sorte, Liedson, e seja muito bem vindo ao seu Portugal!


Post Scriptum (por extenso latino, que o tempo não está para brincadeiras) - Publico este texto antes da sua provável estreia na selecção. Espero que a possa ajudar a sair do buraco onde a gestão pós-Scolari a meteu e onde agora se conta com a sua "macumba" para nos safarmos. Mas não se angustie. Se a não conseguir ajudar, porque você não pode fazer tudo, continue a marcar belos golos no clube a que tanto se tem dedicado e que muito continuará a necessitar de si. Como brasileiro ou como português.
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Post Scriptum 2 - Mal eu sabia, caro Liedson, que seria você o "culpado" pelo prolongamento da esperança lusitana de ainda poder estar no Mundial da África do Sul. Dizendo as coisas de outro modo: adiou (espero bem estar errado) por uns dias a saída de cena do senhor professor Queirós. Ele fica-lhe a dever isso. A nós (mas gostava de estar enganado, repito) ficar-nos-á a dever muito mais.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Obama

O que se está a passar nos Estados Unidos, com a emergência de uma forte resistência às propostas do presidente Obama para garantir uma cobertura em matéria de saúde para alguns milhões de deserdados da fortuna, é um forte sintoma político. A ideologia americana enraizou um culto extremo do individualismo, que continua a ser incompatível com políticas de solidariedade colectiva assumidas pelo Estado. Nada, aliás, que seja de espantar: uma modesta proposta no mesmo sentido havia já constituído a primeira derrota da administração Clinton.

Não deixa de ser chocante ver hoje alguns chamar a Obama "nazi" ou "socialista", por querer titular uma reforma social moderada. Trata-se, contudo, de uma reacção que tem, atrás de si, algo mais. É um sinal claro de que, afinal, a sua eleição, essa fantástica ruptura que o mundo saudou como símbolo de que outra América era possível, havia provocado um quase inédito mal-estar em muitos sectores do seu país, que calaram por algum tempo o preconceito, mas cuja raiva silenciosa durou pouco. A crise e o desemprego terão feito o resto e transformado, em poucos meses, uma onda de esperança num mar de dúvidas.

Resta o campo internacional. Obama e a sua equipa tiveram a coragem de colocar em causa a política seguida, num passado recente, em várias frentes, algumas das quais tradicionalmente delicadas. Com o Afeganistão a revelar-se um atoleiro complexo, sem saída à vista, com a "bomba-relógio" do Paquistão escondida momentaneamente sob o tapete, com o Iraque a mostrar-se um falso sucesso, com o não surgimento imediato de êxitos claros como resultado da notável moderação com que os EUA estão a lidar com a Rússia, o Irão, a Coreia do Norte ou Cuba, o grande teste, uma vez mais, acabará por ser Israel. É por aí que vai ser medido o grau de coragem final desta nova administração em termos externos, porque essa é também uma questão interna americana.

O rápido desencanto de uma certa América face ao seu presidente, que já o vê como fragilizante da imagem que tem de si própria e do seu destino como potência à escala global, poderá, rapidamente, acelerar-se se, por um infeliz acaso, uma qualquer nova ameaça à segurança dos EUA vier a ter lugar. Nesse caso, Obama correria o risco de ser colado à imagem de um Jimmy Carter e esse, como se sabe, foi em Washington o início de mais um insuportável ciclo de arrogância.

Compete à Europa aliar-se a Obama. A Europa, que não existe ainda como entidade política, atravessada como está por uma indefinição do seu projecto colectivo e com a crise económica a potenciar a emergência de soluções nacionais ou de potencial "directório", bem como a fragilização das suas instituições colectivas, deveria mostrar, à sua medida, que consegue ser capaz de ajudar a nova administração americana a ter sucesso nalguns dossiês internacionais importantes.

É que, como já se percebeu, um eventual êxito de Obama iria muito para além das fronteiras americanas: significaria um tempo novo para o multilateralismo e para a possibilidade de prevalência de certos valores que também estão na matriz constitutiva do projecto europeu. E esse projecto, gostem alguns europeus ou não, só tem condições de se implantar com projecção na ordem externa, com sustentabilidade, credibilidade e capacidade de influência, se e quando conseguir garantir um sólido e são diálogo com o seu parceiro do outro lado do Atlântico.

Uma versão sintetizada deste texto foi publicada no "Semanário Económico", de hoje, podendo ser lida aqui.

Madrugadas

Magistral foi este comentário de Alcipe, num post anterior:

"Somos filhos da madrugada, mas cada vez temos sono mais cedo..."

quinta-feira, setembro 03, 2009

Pedras ainda Salgadas

A senhora directora de Pessoas e Comunicação da Unicer teve a amabilidade de deixar um comentário no meu anterior post, sobre a questão do Parque Termal das Pedras Salgadas. Fico grato por essa gentileza e estimulo sinceramente os leitores deste blogue a que leiam tal texto, até porque ele é auto-explicativo.

Sobre esta questão, que espero deixará de mobilizar este blogue, mas que cuidarei que não abandone, no próximo futuro, outras áreas da comunicação social e da mobilização cívica em Portugal, gostava de deixar ainda alguns pontos.

O primeiro, e óbvio, é que nada me move, em particular, contra a empresa Unicer, de que sou regular cliente, tal como muito portugueses. Tenho pela Unicer o respeito que me merece qualquer outro investidor, em especial os que se disponham a criar riqueza de que possa usufruir a minha terra natal - Trás-os-Montes. E não deixo de ficar satisfeito pelas notícias que a comunicação da Unicer me trouxe sobre Vidago. Mas a minha questão não tem a ver com Vidago, tem a ver com as Pedras Salgadas. Percebo que, para a lógica da Unicer, essas possam ser duas realidade numa só. Mas as pessoas que vivem nas Pedras Salgadas... não vivem em Vidago!

O segundo ponto, para que não subsista a mínima dúvida, é que recuso ver esta questão instrumentalizada politicamente e que me são alheios quaisquer litígios paroquiais de natureza partidária, nomeadamente os que possam resultar de comentários desse teor colocados neste blogue. A política não é chamada para aqui!

O terceiro é para afirmar que me preocupa, essencialmente, o futuro, económico e social, da vila das Pedras Salgadas, terra onde a minha família tem raízes há já alguns séculos, como quem de lá é bem sabe.

Num quarto ponto, quero dizer que, embora lamentando muito, a comunicação da Unicer não me convence em nada e só confirma as minhas anteriores perplexidades. E quero constatar o que me parece evidente: fazer sobreviver o Parque, com duas ou três fontes, alguns pavões e uns equipamentos esparsos é um "tapar de olhos" e não é sinónimo de devolver às Pedras Salgadas o que a Unicer lhe retirou.

A sustentabilidade do Parque como espaço de usufruto não é independente da existência nele, ou não, de uma unidade hoteleira que garanta a regular movimentação anual de pessoas por aquela terra. Quem quiser fazer uma cura de semanas de águas termais, frequentar durante dias o tal futuro spa e usufruir por um período razoável do Parque - onde dorme? Acampa? Quando a Unicer tomou conta do empreendimento, o Parque tinha um hotel, o Hotel Avelames, (de que mostro uma imagem bem antiga) onde, num passado não muito longínquo, eu próprio fiquei alojado, por mais de uma vez. Não era de alta qualidade? Pelo menos, as gestões Sousa Cintra e Jerónimo Martins mantiveram um hotel razoável. A gestão Unicer acabou com qualquer hotel.

A quinta e nota final é a constatação da realidade insofismável que é o facto da Unicer continuar a recusar-se a responder à simples pergunta: vai ou não construir-se o "Hotel Siza Vieira" nas Pedras Salgadas, como se comprometeu e como a sua direcção anunciou publicamente? Se sim, quando começam as obras e quando se prevê que essa unidade hoteleira esteja em funcionamento? Essa é a única questão que, ao que julgo saber, os habitantes e os comerciantes das Pedras Salgadas gostariam de ver respondida. E eu também.

Ora a Unicer parece continuar a "assobiar para o lado" e a carta da senhora directora enreda-se (e procura enredar-nos) num linguarejar de matiz economicista, com toques de "responsabilidade social" que podem ir com o ar empresarial "modernaço" dos tempos, mas que não vão com a cara que a Unicer tem hoje perante as Pedras Salgadas.

E, já agora, é quase de gargalhada e ofensiva a ideia de irem "reabrir" o parque em Outubro. Em Outubro? No fim da época termal? Só se alugarem clientes... Depois, claro, quando se constatar o deserto de visitantes, mais fácil será argumentar que não há sustentabilidade para a existência de um hotel. Perguntem aos pobres proprietários dos restaurantes das Pedras Salgadas a sua opinião sobre esta "oportuna" abertura!

Quanto ao convite pessoal que a Unicer simpaticamente me faz para visitar os Parques, agradeço-o, mas não o aceito. O que eu pretenderia, como muita e muita gente que conheço, era que me fosse dado um endereço de e-mail ou um telefone que me permitisse marcar as minhas férias no "Hotel Siza Vieira", que a Unicer anunciou, com todas as parangonas, que ia construir no Parque Termal das Pedras Salgadas. Posso tê-los? Quando puder, eu acredito na boa-fé da Unicer.

Até lá, fico também à espera, com imensa curiosidade, das explicações da AICEP e da CCDRN relativas aos fundos de natureza pública de que a Unicer possa ter beneficiado para o projecto do Parque Termal das Pedras Salgadas e do modo como essas entidades apreciam o atraso na conclusão do que com elas terá sido acordado. Só assim terminará o "desconhecimento da situação" de que a Unicer me acusa mas que, pelos vistos, é partilhado por muito mais gente.

Adeus, Pedras

Raras vezes na vida me tem acontecido acabar por ter mais razão do que aquela que julgava ter.

Quando suscitei a questão do atraso dos projectos da Unicer para o Parque Termal das Pedras Salgadas (ver o texto aqui), parti de informação esparsa, que havia recolhido localmente. Daí a minha "extrema ignorância", como bem referem as declarações da Unicer, a qual, aliás, é comum à da generalidade da população das Pedras Salgadas, como então pude constatar. Coisa que se teria resolvido se a Unicer tivesse explicado publicamente, e de forma muito clara, o estado das coisas. Mas, pelo que agora disse, fica melhor a perceber-se o seu anterior embaraçado silêncio.

Os esclarecimentos que o jornal "i" agora trazem por parte da Unicer - finalmente! - falam por si e dão bem a medida do que, afinal, as Pedras Salgadas (não) podem esperar da Unicer.

Nas declarações prestadas ao jornal pela Unicer há uma sequencial e reveladora evolução nos termos utilizados quanto ao agora já apenas hipotético "hotel" nas Pedras Salgadas. Senão, vejamos.

Inicia-se com um imperativo "o hotel vai ser construído". Excelente, ficamos assegurados!

Segue-se, porém, um mais dubitativo: "É necessário rentabilizar a operação de Vidago para saber que projecto será viável para Pedras Salgadas". Mau! E quanto tempo vai isso demorar? Anos, com certeza!

Um pouco a seguir, o jornal adianta que a Unicer resolveu "suspender" a construção da unidade hoteleira, que está a ser "redesenhada". Prazos para isso? Nem vê-los!

A pedrada final nas Pedras vem a seguir, nas próprias palavras da Unicer: "Trata-se de um investimento de rentabilidade muito limitada. Diria mesmo que questionável".

E, finalmente, linhas adiante, fica a saber-se, pela boca da Unicer, que o hotel das Pedras Salgadas "está em reavaliação".

O leitores julgarão a extrema coerência evolutiva (a expressão "economia com a verdade" seria talvez um melhor eufemismo) que ressalta destas declarações, que são bem o espelho do que as Pedras Salgadas podem (não) esperar por parte da Unicer.

Restará agora ouvir vozes autorizadas da AICEP e da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, para que possamos ver definitivamente mais claro neste assunto e saber se estes atrasos (confessados!) pela Unicer têm ou não cobertura oficial. E, mais do que isso, se são conformes aos seus compromissos, à luz dos quais receberam ajudas financeiras para estes projectos.

Os "projectos tartaruga" da Unicer para os parques termais, como bem os qualifica o "i", seguem, assim, o seu pachorrento ritmo. Mas no que toca à exploração dos lucros das águas, a Unicer sabe poder contar com Pedras Salgadas... em ponto!

quarta-feira, setembro 02, 2009

Europa

Há dias, numa busca nocturna nas estantes mais recônditas dessa mina bibliográfica que é a "Shakespeare and Company", o alfarrabista de livros ingleses com melhor vista para a catedral da Notre Dame, dei com o livro "The Memoirs of an Ambassador", de Freiherr Von Schoen. Nunca tinha ouvido falar da personagem: foi membro do governo alemão, embaixador de Berlim em Paris de 1910 a 1914 e a pessoa que entregou o ultimatum alemão aos franceses, nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. O livro havia sido editado em Londres em 1922, quatro anos depois da guerra, e a minha curiosidade maior era, naturalmente "et pour cause", o capítulo "Ambassador in Paris". E decidi matá-la, por uns meros 4 euros.

Retiro do livro esta passagem, cujo teor deve ser contextualizado à época precisa em que foi escrito: "Se ela (França) tivesse querido a paz, teria sido natural procurá-la mantendo-se em "tolerably" (deixo a expressão inglesa) bons termos connosco, enquanto vizinhos; nós queríamos isso, mas a França não se decidia a isso de forma incondicional. Estava, e continuou a manter-se, irreconciliável. Não obstante vários actos de cortesia e amizade da nossa parte, não obstante muitos, e nem sempre sem sucesso, esforços nossos para se chegar a um entendimento em aspectos pontuais, em trabalhar com a França em algumas questões internacionais de ocasião, que pudessem conduzir a um "rapprochement" (em francês no texto) em termos globais, e mesmo a despeito de intervalos de acalmia, a grande distância entre nós manteve-se aberta".

Deixo-lhes esta longa citação, a meu ver significativa do modo como um responsável de uma Alemanha derrotada viu, já em 1922, momento ainda traumático da relação do seu país com a França, como ínvia introdução a uma outra história, bem mais recente, mas que envolve também ambos os países.

Nas últimas semanas, estabeleceu-se aqui por França, nas colunas do "L'Express", entre Jacques Attali e o embaixador alemão em Paris, Reinhard Schafers, uma polémica a propósito da importância da queda do muro de Berlim e do papel relativo dos alemães nesse contexto. O primeiro desvalorizou o papel de Bona num artigo e o segundo contrariou-o, numa carta à revista, dizendo-se "chocado ao constatar que o medo do 'demónio alemão' esteja assim tão presente em alguns dos nossos amigos franceses", depois de "décadas de reconciliação, partenariado e vasta cooperação" entre os dois países.

Mas é a tréplica, que o prolífico escritor e antigo conselheiro especial de François Mitterrand Attali faz no último número da revista, que aqui me importa destacar. O que diz ele? No essencial, três coisas.

A primeira é que a queda do muro, em Novembro de 1989, "não é um acontecimento histórico importante", porque desde Agosto desse ano que milhares de alemães de Leste estavam já a sair para o Ocidente através da Hungria.

A segundo é que "os alemães não tiveram nenhum papel naquela queda" e que tudo ficou a dever-se apenas à vontade de Gorbachev. E afirma isto: "Sem ele, nada se teria produzido: se as tropas soviéticas tivessem atirado sobre os manifestantes na Polónia, na Hungria ou na Alemanha de Leste, como em 1956, 1968 e 1981, tudo teria entrado na ordem, a NATO não teria naturalmente levantado o mais pequeno dedo, o muro estaria lá e a URSS sem dúvida existiria ainda".

A terceira coisa que Attali relembra - e ele considera-se a si próprio "mais do que uma testemunha (como o embaixador o havia qualificado na sua carta), um actor desta história" - são as três condições que terão sido colocadas por Mitterrand para a unificação alemã: o reconhecimento da fronteira Oder-Neisse (entre a Alemanha e Polónia), a concretização do euro e a renúncia prévia da futura Alemanha à arma nuclear.

E Attali termina "choqué, pour dire le moins", por ver um embaixador alemão recusar-se a reconhecer a existência de um "demónio alemão", afirmando que "todos nós temos os nossos demónios e não é negando-os que os exorcizamos".

Este é um debate que, até na forma, não deixa de ser muito sintomático. Por ter lugar, por ainda mobilizar desta forma pessoas como Attali e, enfim, por provar que a Europa é também, e pergunto-me se para sempre, precisamente isto mesmo.

Profundidade de campo

Como esperado, o novo filme de Manoel de Oliveira, "Singularidades de uma Rapariga Loira", está a merecer em França um acolhimento muito positivo, nas áreas da cultura que, desde há muito, mantêm um fascínio e veneração pelo realizador português. Um texto de página, no "Libération" de hoje, é disso prova clara.

Num dos pontos desse texto, o crítico refere que o filme tem a cena de uma jovem vista de longe: "La jeune fille a toujours l'air absent et comme filmée de loin, à la fois idéale et détachée, ou alors de si près qu'elle perd tout le sortilège de son charme".

Ao ler esta frase, lembrei-me de uma história que me foi contada pela minha colega embaixadora Margarida Figueiredo, que se terá passado, um dia, com um membro de um Governo português que presidia a um qualquer Conselho de Ministros, numa reunião da União Europeia, em Bruxelas.

Ao que ela me relatou - sem revelar, "bien entendu", o nome do político -, esse governante terá, a certa altura, ficado como que deslumbrado com a entrada na sala de uma nova ministra, oriunda de um qualquer país onde o loiro costuma abundar. Porque essa senhora chegara atrasada à reunião, o nosso homem, logo que teve a oportunidade de retomar a palavra, ter-se-á desvanecido numa manifestação de expressivas boas-vindas à recém-chegada, num exagero que por pouco não roçava o assédio verbal - a acreditar, como sempre acredito, na versão daquela minha colega. Alguns dos presentes terão mesmo ficado um tanto perplexos com tão calorosa manifestação por parte da presidência portuguesa. Mas, verdade seja, a União Europeia começa hoje a ser uma entidade no seio da qual já ninguém se surpreende com nada. Note-se ainda, porque não é irrelevante, que a tal ministra loira estaria sentada precisamente do outro lado da sala, naquelas mesas imensas, num lugar muito distante da nossa delegação.

No termo do almoço de trabalho, onde apenas tomam assento os ministros e o contacto é mais chegado entre eles, a embaixadora Margarida Figueiredo, cuja confiança de alguns anos com o governante já lhe permitia alguma ousadia, inquiriu-o ironicamente sobre como achara, no contacto pessoal, a nova colega, que visivelmente tanto o impressionara na sessão. A resposta foi cortante: "Afinal é uma velha! Parecia muito gira, mas está toda encarquilhada! Vou ter de mudar de óculos para ver à distância", concluiu, agastado. A galanteria portuguesa já não é o que era...

Angola

Não posso deixar de recomendar, no "Expresso" do passado sábado, que só hoje me chegou (Paris é longe...), o emocionante texto que Francisca Van Dunen dedica ao seu irmão e à sua cunhada, José Van Dunen e Sita Valles, mortos nessa maré de tragédia que foram os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, em Angola.

Cheguei a Luanda em Maio de 1982, precisamente 5 anos depois desse tempo terrível e ouvi às vezes, sempre num sussurro de prudência, relatos esparsos desses dias em que, para sempre, se quebrou o encanto em torno de um certo sonho colectivo. Durante todos os anos seguintes que passei em Angola, raramente encontrei alguém disposto a abrir-se comigo sobre esses momentos, qualquer que houvesse sido o lado da barricada em que se tivesse então situado. Na altura, eu havia ficado com a sensação de que os angolanos faziam um esforço deliberado para provocar o esquecimento sobre esse período, como se as feridas acabassem por sarar melhor se se não olhasse para elas. Não era verdade. Muito do que, entretanto, se publicou sobre o 27 de Maio provou que nada substitui o trabalho em torno da verdade, qualquer que seja o preço que isso possa ainda ter e por muito que essa mesma verdade possa doer a alguns.

No seu texto, a Francisca, pessoa por quem tenho uma grande admiração e que é hoje um expoente de dignidade na turbulenta Justiça portuguesa, confronta a sua trágica memória por via da ternura e fá-lo com uma serenidade por onde perpassa bem todo o seu amor a uma certa Angola. Leiam o texto com atenção. Todos temos muito a aprender com ele.

terça-feira, setembro 01, 2009

Pedras Salgadas

Acaba de ser anunciado que a Unicer decidiu fazer entrega do Hotel Palace de Vidago ("do" Vidago, como dizem as gentes de lá) a um grupo hoteleiro de luxo francês, depois da intervenção feita por Siza Vieira naquele belo edifício - e cujo resultado arquitectónico ainda não tive o gosto de conhecer.

Mas o que eu já conheço - e bem! - é o impressionante atraso em que a Unicer está a arrastar as obras a que se comprometeu no Parque Termal das Pedras Salgadas, onde concentra todo o seu sistema industrial de engarrafamento de águas minerais, essa mina de ouro líquido que se esvai daquela terra, sem que para ela redunde um mínimo de contrapartidas. O já considerável atraso de tais obras está a criar uma situação angustiante para o comércio local, cujos últimos anos foram altamente penosos, precisamente devido ao encerramento do Parque e à perca progressiva da habituação da frequência do complexo termal.

Que fique claro: esta não é uma questão de natureza política, como alguns, de ambos os lados do espectro partidário, no calor das eleições que aí vêm, querem fazer crer e pretendem instrumentalizar, cada um à sua maneira. Trata-se apenas de um simples teste de honorabilidade da palavra de uma empresa que, perante as instituições oficiais do país, se comprometeu, para além de um conjunto de outras medidas, a abrir o Parque Termal das Pedras Salgadas e a construir, num prazo contratualmente bem determinado, um novo hotel - e não a estimular o surgimento de quaisquer sucedâneos, como já consta como pode vir a ser a alternativa.

A realidade é muito clara: o parque esteve e permanece fechado, as obras do hotel ainda não se iniciaram. Ora tudo isto contraria, em absoluto, aquilo a que a Unicer se comprometeu. Já corre que, como um também atrasado paliativo, a Unicer terá feito saber que o parque poderá abrir em 2010. Logo veremos, mas a grande questão, para a população local, aquilo que seria essencial a que a Unicer respondesse com clareza e precisão, seria dar a conhecer a data exacta do início e termo das obras do hotel - a única estrutura que tem verdadeiras condições para poder alavancar o renascimento das Pedras Salgadas como destino termal. Ou será que, afinal, já não haverá nenhum hotel, como muitos suspeitam? O grande teste para a boa fé da Unicer, em toda esta questão, seria ela responder - sim ou não - a esta simples pergunta. Terá frontalidade para isso?

Se a Unicer quer continuar a ser vista no país como uma entidade económica de bem, prolongando a relação de confiança que havia construído inicialmente com as Pedras Salgadas, e também para justificar os fundos públicos que entretanto já recebeu, tem de devolver todo o conjunto termal das Pedras Salgadas... em ponto!

Se o fizer, exactamente nos termos que subscreveu, sem recuos nem revisões de projecto, efectuados com o acordo ou não de complacentes entidades públicas sensíveis aos seus argumentos dilatórios, serei o primeiro a reconhecer que estive enganado e pedirei desculpas à Unicer por esta minha tomada de posição.

Se não o fizer, estarei entre os primeiros a ajudar a denunciar publicamente, por todos os meios que forem possíveis e necessários, que a empresa está a enganar as Pedras Salgadas e, em geral, a enganar o país, cujos fundos públicos lhe serviram para subsidiar esta sua operação de exploração económica, efectuada sob a condição de contrapartidas em matéria de melhoramentos turísticos, que até agora continuam a ser apenas uma miragem. A escolha é da Unicer, claro.

Este post foge um pouco do tom normal deste blogue, mas até um embaixador tem o direito à indignação. E eu estou sinceramente indignado com esta situação, que diz bastante a uma terra a que estou muito ligado.

Fitas

Manoel de Oliveira é uma unanimidade adquirida nos meios culturais franceses. Amanhã, será estreada em Paris a sua adaptação de "Singularidades de uma Rapariga Loura", um conto de Eça de Queirós que estava bastante esquecido. O "Le Figaro", de hoje, traz uma entrevista com o realizador. O sucesso do filme parece garantido.

O mesmo se não poderá dizer do filme "La Religieuse Portugaise", de Eugene Green, com Leonor Baldaque como protagonista e que é passado em Lisboa, que Marc-André Lussier, também hoje, "desfaz" no Cyberpresse, considerando inexplicável o respectivo êxito no recente Festival de Locarno.

O excessivo tempo dos planos e sequências, o tom monocórdico de alguns actores e das respectivas réplicas - tido isso é criticado neste último filme. Com o tempo, tenho esperança de ainda um dia vir a conseguir perceber a dualidade de critérios de alguma crítica cinematográfica.

segunda-feira, agosto 31, 2009

Cultura Europeia?

A questão da existência ou não de uma cultura europeia comum é um tema que atravessa a peça de teatro "L'Européenne", que vai ser apresentada no Théâtre de Ville, dirigido por Emmanuel Demarcy-Mota, e de aqui se falará mais tarde. A este propósito, deixo um texto retirado ontem do Télérama, da autoria de Alexis Tain.

E permito-me a imodéstia de juntar um artigo meu, sobre o mesmo tema, que proximamente será publicado numa obra colectiva a editar pela Fondation André Malraux. E que, se alguém tiver paciência, pode ler aqui.

Futebóis

Há dias, na televisão por cabo, a Comunidade portuguesa em França teve o privilégio de poder ver o Académica-Sporting, através da RTP Internacional, e... o Académica-Sporting, pela SIC Internacional. Simultaneamente, claro.

Hoje, tivemos o Benfica-Vitória de Setúbal, precisamente no mesmo modelo de programação.

Grande diversidade, esta que nos está a ser oferecida por duas grandes estações portuguesas de televisão! Obrigado!

Memória de Agostos (IV) - 1975

Em 1975, a vida estava a mudar. Simultaneamente, para o país e para mim.

O Verão desse ano ficou conhecido, na História política portuguesa, como o "Verão quente", por virtude de nele se terem agudizado os conflitos que vinham a opor os sectores mais moderados do Movimento das Forças Armadas com as correntes radicais, em especial com a chamada "esquerda militar", onde a influência do Partido Comunista se fazia sentir como determinante.

Foi em Agosto desse ano que assumiu funções o efémero V Governo Provisório, tributário de um vanguardismo que veio a revelar-se suicida e que era, ele próprio, sintoma do crescente isolamento em que o general Vasco Gonçalves e os que o acompanhavam se iam acantonando.

É também nesse mês que surge o chamado "Documento dos Nove", uma espécie de manifesto de militares moderados, da autoria de Melo Antunes (e muito com o dedo de escrita do actual embaixador Luís Castro Mendes, diga-se), à sombra do qual logo se colocaram todas as forças moderadas e conservadoras, que temiam a deriva radical que pressentiam que o país estava a seguir.

(Já agora, vale a pena dizer aqui, de forma bem clara, que a classe política cujo poder veio a emergir, no seio da vida democrática que a coragem dos "Nove" ajudou a proporcionar ao país, acabou por ser fortemente ingrata para com muitos desses homens. Mas isso são outras histórias...).

Agosto de 1975 foi também o mês da minha entrada no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Tempos antes, num impulso que teve muito mais de lúdico do que de reflectido, eu decidira candidatar-me à carreira diplomática, um passo estimulado pelo diplomata e meu colega de tropa, António Franco, e que eu via também como um desafio interessante para mim mesmo. Estava no serviço militar desde 1973, andava fortemente envolvido nas ondas da Revolução, e achei graça testar a minha capacidade numa área que sempre me interessara, mas por onde nunca sonhara passar - por ser, diga-se em abono da verdade, um terreno profissional cuja imagem pública me não seduzia minimamente e de cuja caricatura tudo me afastava.

As múltiplas provas de acesso, espalhadas ao longo do primeiro semestre de 1975, foram já como que um prenúncio da vida civil a que, em qualquer circunstância, eu regressaria em breve. Desde 1971 que era funcionário da Caixa Geral de Depósitos e, acabado o serviço militar, para aí voltaria, com um salário bem melhor do que aquele que o MNE então oferecia.

Com alguma surpresa minha, face às expectativas que tinha, acabei por ser admitido na carreira diplomática! E agora?! Que fazer? para utilizar o título de um autor que, à época, estava a ter dias de glória nas estantes portuguesas. Acabei por "arriscar"...

E foi assim que, na cálida manhã de 13 de Agosto de 1975, de cabelo bastante comprido e com um bigode façanhudo, coloquei uma relutante gravata e tomei posse como diplomata, num grupo de "adidos de embaixada", o primeiro, aliás, em que às mulheres foi autorizada a admissão na profissão - uma abertura que, registe-se, se havia ficado a dever ao anterior MNE, Mário Soares.

Graças ao 25 de Abril, não tive então de ler o juramento a que o Estado Novo obrigava os funcionários públicos (e que cito, de cor, sem a total certeza de estar a a ser 100% fiel ao texto): "Declaro, por minha honra, que estou integrado na ordem política e social instituída pela Constituição da República portuguesa de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas".

A partir de então, podia pensar o que quisesse. Pelo menos, eu julgava isso.

domingo, agosto 30, 2009

Deolinda

Viver fora do país tem este preço: só há pouco tempo, por indicação de amigos, comprei o disco "Canção ao Lado", dos Deolinda.

Tenho de revelar que há muito que um primeiro disco de um grupo português não me impressionava tanto. Trata-se de um conjunto variado de temas, com grande força e consistência, que traduzem umas expressiva maturidade musical, produto, ao que parece, das origens dos membros do grupo. A sonoridade é muito moderna, ao mesmo tempo que bastante popular, sem cair no "popularucho". Aqui e ali, tem mesmi um toque de certa sofisticação, patente nas letras e nalguma sua ironia. A combinação de intrumentos tradicionais com uma voz magnífica da vocalista é algo de muito diferente do que estamos habituados a ouvir. Já escutou fado sem guitarra portuguesa? Pois, com os "Deolinda", tem isso. E que fados!

Não sei se este blogue pode fazer propaganda (ou publicidade, como uma leitora preciosista me aconselha a escrever), mas eu arrisco: comprem o disco dos "Deolinda" e não se arrependerão. E fiquem, desde já, com este som ou visitem o seu excelente site.

Retrato de um amigo

Nestes que são os últimos dias de férias para a maioria das pessoas, lembrei-me de quem tem a sorte de estar quase permanentemente nelas. Desde há muitos anos que tenho um amigo, com uma actividade cuja matriz é em tudo alheia à da minha profissão, cuja capacidade para conseguir escapar à rotina do trabalho se tornou já lendária. Procura, em primeiro lugar, não ter nada para fazer e, se isso se torna em absoluto impossível, tenta fazer apenas o que lhe apetece e, mesmo assim, no tempo que lhe apraz. Como é inteligente, tem já um insuperável "know-how" na matéria, uma soma de truques que confundem os não iniciados, pouco aptos a detectar essa imparável deriva lúdica em que consegue transformar o seu quotidiano.

Mas não julguem que se trata de tarefa fácil: ele tem imenso "trabalho" em lutar por funções que o isentem de trabalhos, em que os horários possam ser detalhes despiciendos, onde sejam viáveis exercícios criativos de ubiquidade administrativa, mas também onde sempre possa, a olhos desprevenidos, fazer passar um sopro de actividade virtual, dando permanentemente a ideia de ter alguma coisa em curso de execução. Ah! e queixa-se das episódicas tarefas que lhe cabem, como é natural. Enfim, trata-se de um génio na gestão do seu tempo, que deveria mesmo escrever um manual sobre o tema, se isso não desse trabalho...

Como (algum) mundo é o que é, como ele sabe "mexer-se" e não é mau rapaz, lá vai (não) fazendo pela vida, nesse seu anti-stakhanovismo endémico, o qual, a meu ver, deve fatigar imenso. Sempre achei que, quando um dia ele vier a ter um epitáfio - e não será "morto de cansaço"... -, deveria ser uma corruptela do lema do infante dom Henrique: "Talent de rien faire".

Absorto

Um dos mais interessantes e empenhados espaços da blogosfera portuguesa, o Absorto, acaba de designar este blogue como um dos seus destinos de consulta "viciante".

Ao seu autor, Eduardo Graça, homem entusiasmado com a vida e com a descoberta incessante do modo como nos compete melhorá-la para usufruto de todos, deixo aqui um forte e grato abraço. É um abraço que vem já de muito longe - das longas noites das RIA's, das conversas de esperança na parada da EPAM, do Abril comum e das madrugadas que se cantaram pelas agitadas salas da dom Carlos, nessa aventura sem par que foi o MES. E de várias cumplicidades posteriores.

Pela razão que é óbvia, dedico-lhe, de Paris, este eterno Moustaki.

Dívida

A propósito do debate em torno do "grande empréstimo", que o Governo francês de apresta para lançar, julgo curioso referir um comentário que hoje surge no "Le Monde": "La dette existe depuis le début de l'Histoire et dans tous les pays! Elle est indispensable pour permettre aux états, entreprises et particuliers d'anticiper des recettes pour investir davantage! Un pays sans dette c'est le Portugal de Salazar, avec l'escudo en Or et que la population fuit en émigrant!"

sábado, agosto 29, 2009

Edward Kennedy

Não me seduzem as dinastias, embora tenha o maior respeito pelas famílias. Nunca olhei para Edward Kennedy como o putativo e frustrado sucessor do sonho interrompido dos seus irmãos, essa mitologia aristocrática de "Camelot", construída por sebastianismos de linhagem, que radica numa triste saga de tragédias familiares, explorada à exaustão pelos "media".

Edward Kennedy foi "his own Kennedy", um homem sério, íntegro e digno, que acreditava nos valores de uma América solidária e justa e que, em alguns momentos importantes, teve a coragem de os assumir e afirmar. Como o presidente Obama ontem bem recordou. É por isso, e só por isso, que ele merece o nosso respeito.

659 !

As editoras francesas anunciam, para a "rentrée" deste Outono, a publicação de 659 romances.

Uau!

sexta-feira, agosto 28, 2009

Geremek



O ministro dos Negócios Estrangeiros português, Luís Amado, fez ontem entrega ao presidente Nelson Mandela do prémio Geremek, que lhe foi atribuído pela Comunidade das Democracias, organização a que Portugal actualmente preside.

Bronislaw Geremek, que dá o nome ao prémio e que foi o criador da Comunidade das Democracia, era um polaco sábio e amável, que nos deixou há pouco mais de um ano e que, em cada tempo, acreditou naquilo que entendeu que era preciso acreditar – desde os “amanhãs que cantam” ao projecto da Europa unida, passando pela luta pela liberdade do seu povo, dessa magnífica Polónia que soube sofrer, com serena dignidade, as tragédias que a sorte lhe destinou.

Ouvir de Geremek a palavra suave, dita numa tonalidade tranquila de comovente convicção, sublinhada numa cadência silábica que soava a doutrinária, foi um privilégio que fui tendo, ao longo de vários anos. No seu magnífico francês, em que exprimia as duras lições de um tempo de traumáticas transições, sempre lhe descortinei, por detrás da barba professoral, o sorriso leve, um tanto entre o triste e o nostálgico, mas uns olhos brilhantes que não traíam a genuinidade do que afirmava.

Conheci-o pela primeira vez em Varsóvia, no seu gabinete de chefe da diplomacia polaca. Uma curta visita de cortesia que lhe solicitara, em que me falou pela primeira vez na sua proposta da Comunidade das Democracias, transformou-se, a partir de uma pergunta que lhe fiz sobre a evolução política recente em Moscovo, em cerca de hora e meia de conversa, dedicada ao peso histórico que essa vizinhança eterna determinava. Por detrás das palavras, como que se podia descortinar, assumida a ironia, o modo profundo como o medievalista que ele era se comprazia na desconstrução contemporânea da Rússia eterna.

Do modo claro como falou das novas lideranças de Moscovo, da preocupação com a Ucrânia e dos desafios comuns que seriam necessários para a superação de um passado traumático recente, julgo ter aprendido, nessa manhã, o que os livros nunca me haviam ensinado. E talvez tenha então percebido, definitivamente, que o alargamento da União Europeia ao centro e leste do continente, que então se perspectivava, era a resultante natural do processo de reconciliação que a Europa estava a dever a si própria, a vitória final sobre a hipocrisia que Ialta tinha imposto às gerações sacrificadas pelo cinismo da realpolitik - gerações que Geremek bem representava.

Recordo que os diplomatas Carlos Neves Ferreira e Ana Gomes, esta última que viria a ser sua colega no Parlamento Europeu, me acompanharam na escuta atenta dessa sua leitura, serena e convicta, muito diferente das que íamos ouvindo sobre o tema, por parte de outros dirigentes dessa “nova Europa” nascente.

Inquiriu então sobre o modo como Portugal vivia a unificação europeia, quis saber como os portugueses – um povo cuja História o apaixonava – haviam conseguido apagar, no seu imaginário colectivo, a longa mitologia ultramarina, que a ditadura explorara em proveito da sua própria sobrevivência, para embarcarem na nova aventura de um continente que, afinal, nunca tinham verdadeiramente abandonado.


A convite de Jaime Gama, por quem confessava amizade e grande admiração, Geremek passou uma vez por Lisboa, para falar aos diplomatas portugueses sobre o modo como a sua Europa nos olhava, ainda de fora. Do que disse, julgo que todos intuíamos já que a Europa de que ele nos falava não era, afinal, uma outra Europa, era a Europa que sempre existira dentro de quem, como ele, via no projecto colectivo a chave para a estabilidade e para a paz.

Um dia, a seu pedido, fui a Varsóvia falar a jovens polacos sobre o percurso português na União Europeia. Num pequeno jantar que ofereceu, num restaurante de que apenas recordo o ambiente de acolhedora decadência, colocou-me ao lado de Tadeusz Mazowiecki, seu velho companheiro do Solidariedade e então primeiro-ministro. Geremek desafiou-me: “Veja se convence o Tadeusz que Portugal é dos países que acreditam que, sem a Polónia, nunca haverá uma verdadeira Europa”. Não me recordo se tive êxito nessa minha tarefa, mas lembro-me bem da citação de Montesquieu que Geremek repetiu nesse jantar: “A Europa é a nação de bem das nações". Apetece-me repetir a certeza que tenho de que Bronislaw Geremek era um singular europeu de bem entre os europeus.

Duas luas

Anda por aí na internet uma história de duas luas. Os mais cépticos duvidam, os mais crédulos aceitam-na.

Ora bem: leiam Hugo Pratt e o seu "Tango", onde Corto Maltese explica tudo. E divirtam-se.

"Nègres"

Alguns políticos franceses, como aqui já se referiu um dia, publicam regularmente livros, seja de reflexões temáticas, seja de memórias, seja - o que é ainda mais frequente - de ambições. De quando em vez, parte dos actores da vida política no activo sente necessidade de fazer uma espécie de "prova de vida" escrita. Isso leva-os à televisão, aos jornais e aos espaços nas mesas e estantes que as livrarias acordam com as distribuidoras. Os livros com êxito têm críticas nos jornais ou revistas e, muitas vezes, acabam mesmo por ter edições "de poche" - suprema glória. Quando não caem no goto dos leitores, a cobertura fica-se por umas meras recensões. Nestes casos, semanas depois, tais livros desaparecem da vista. Ou melhor, aparecem já pelos "bouquinistes", então a preço convidativo.

Foi agora revelada uma estatística curiosa: cerca de 80% dos livros subscritos pelos políticos franceses são, na realidade, redigidos por colaboradores, aqui chamados de "nègres" ou, numa versão mais simpática, de "plumes". Porque é que isso acontece? Por falta de tempo ou, as mais das vezes, por falta de jeito. Mesmo figuras com reconhecida capacidade própria de escrita, como De Gaulle, Pompidou, Mitterrand ou, mais recentemente, Dominique de Villepin, não dispensaram a ajuda constante de colaboradores para a produção das suas obras.

Esta nota destinou-se a criar o cenário para uma brevíssima história que ontem o "Le Point" trouxe, ocorrida entre dois políticos proeminentes, que mantinham entre si uma relação de ácida cordialidade. Um deles, ter-se-á virado para o outro e disse: "Vi que publicaste um livro. Quem to escreveu?". O interlocutor não respondeu, mas inquiriu: "E quem foi que o leu por ti?".

Aqui em França, tal como em outros lugares, a vida política é um espaço insuperável para a expressão de carinhosas manifestações de simpatia.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...