sábado, julho 25, 2009

Isabel Meyrelles

Chama-se Isabel Meyrelles, nasceu em Matosinhos, em 1929. Tinha ouvido falar dela, em Portugal, a alguém com quem ela convivera no Grupo Surrealista de Lisboa - o meu primo Carlos Eurico da Costa.

Começou a dedicar-se à escultura no Porto, com 16 anos. Pertenceu ao famoso grupo intelectual do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa. Veio para Paris em 1950. Estudou escultura, na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts, e literatura, na Sorbonne. Foi tradutora para francês, entre outros, de Jorge Amado e organizou e publicou, na Gallimard, uma interessante Antologia da Poesia Portuguesa do século XII ao século XX. Tem editadas em Portugal as suas "Poesias", nas Edições Quasi (2004). Considera-se mais uma escultora que uma poeta.

Devo dizer que, à excepção de alguns textos numa antologia, e de fotografias de algumas das suas esculturas, desconhecia, quase por completo, a sua obra. E, pessoalmente, talvez apenas nos tenhamos encontrado em algumas noites do "Botequim", em Lisboa, o bar que dirigiu com Natália Correia, ente 1971 e 1977. Fomos apresentados em Paris, há dois meses, numa exposição de pintura, e, posteriormente, deu-me o prazer de aceitar o convite para vir à Embaixada, na data da nossa festa nacional.

Nesse mesmo dia, o Estado português decidiu conceder-lhe uma condecoração - Comendadora da Ordem de Sant'Iago da Espada - que consagra a sua figura de intelectual e o conjunto da sua obra, distinção cujas insígnias lhe entregarei pessoalmente, aqui em Paris, daqui a algum tempo. Saiba mais sobre Isabel Meyrelles aqui.

quinta-feira, julho 23, 2009

Cristina Branco

Foi há cerca de nove anos que ouvi, pela primeira vez, Cristina Branco. Por um mero acaso, foi em Paris, num memorável espectáculo na Unesco, com Argentina Santos e Marisa.

Era um modo diferente de interpretar o fado, que combinava a forma clássica com algo de novo, que era indefinível para um mero leigo, como eu era e sou nestas áreas. Julgo não ter falhado nenhum dos seus discos (tenho mesmo uma edição holandesa) e, se bem que tenha frequentemente enveredado por outros caminhos musicais, a sua voz continua a ser excepcional.

Saiu há poucos meses em França o seu novo trabalho, Kronos, que apresentou numa bem sucedida "tournée" em França. Ouça-a aqui em "Se a alma te reprova".

Patten

Ao ver, há dias, a chegada maciça dos novos parlamentares europeus ao hemiciclo de Estrasburgo, veio-me à memória uma cena passada no último dia em que, em nome da presidência portuguesa da União Europeia, em Dezembro de 2000, aí estive presente.

Como era de regra, um membro do governo do país que detinha a presidência respondia, na bancada do Conselho, às perguntas dos deputados. Um dia falarei de aspectos desse ritual, que tem muito de teatral, a somar-se a algo de criativo.

Para o que aqui hoje interessa, importa recordar que, na bancada em frente, estava o Comissário Europeu encarregado das Relações Externas, Chris Patten. Patten é uma figura simpática, serena, um homem de bem que se portou com grande dignidade quando teve de gerir a difícil transição de Hong Kong, das mãos britânicas para a China. Antigo ministro da senhora Thatcher, é um europeísta convicto, embora "à inglesa". Escreveu, sobre a sua experiência europeia, um livro que recomendo, intitulado significativamente "Not Quite the Diplomat". É, além disso, um homem que olha para a vida com humor, que sabe dar uma boa gargalhada e que atribuiu aos seus cães dois nomes significativos: "Whisky" e "Soda".

A presidência portuguesa havia sempre podido contar com Chris Patten como um aliado fiel dentro da Comissão. Jaime Gama e eu próprio havíamos conseguido, não sem alguns "truques", equilibrar os papéis relativos, com inegáveis "zonas cinzentas" e potencialmente conflituais, de Patten e de Javier Solana. A contento médio dos dois, julgo eu.

Nessa tarde, a última em que eu tinha de dirigir-me ao plenário em nome da presidência, recordo o meu grande cansaço, que se terá revelado na impaciência e eventual rispidez de algumas das minhas respostas, nas mais de duas horas desse interminável e muitas vezes inglório exercício. Patten tê-lo-á notado e, num determinado momento, pelas mãos de uns dos fâmulos vestidos de pinguim, que contrastam vivamente com a modernidade do areópago, chegou-me um bilhete, que guardei: "Coragem, Francisco. Falta pouco! Daqui a semanas, andarás pela 5ª avenida a respirar o ar do Novo Mundo. Entretanto, este teu amigo terá de ficar por aqui mais uns anos. Lembra-te dele! Amigavelmente, Chris".

Patten referia-se à minha saída do governo e ida para embaixador junto das Nações Unidas, em Nova Iorque. Nenhum de nós sabia que eu acabaria por ficar por lá, como embaixador, ainda menos tempo do que o que a ele lhe restava como Comissário Europeu. Como alguém dizia, é a vida!

quarta-feira, julho 22, 2009

Mercedes

Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.

Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.

Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.

O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!

segunda-feira, julho 20, 2009

Televisão

O papel da televisão portuguesa na comunidade emigrada é um tema fascinante que Manuel Antunes da Cunha trata no seu recente livro "Les Portugais de France face à leur télévision" (ed. Presses Universitaires de Rennes, 2009).

Estou ainda no início do livro deste doutorado em Ciências de Informação e Comunicação, mas o que já pude ler revela-me um trabalho extremamente interessante e profundo, feito com grande rigor científico.

Este livro permite tornar mais transparente a mensagem cultural que a televisão pública veicula, mesmo quando isso não resulta de uma opção estratégica claramente assumida. E, naturalmente, auxilia também a "ler" o modo como as diversas gerações de origem portuguesa se posicionam face a essa mesma mensagem e como interagem com ela.

domingo, julho 19, 2009

Paris 88

Eugénia de Melo e Castro é uma caso original na música portuguesa contemporânea. Viajante do Atlântico, fez carreira em Portugal e no Brasil e, por mais de uma vez, ao longo das últimas décadas, contribuiu fortemente para o reforço do mútuo conhecimento desses dois mundos tão distantemente próximos.

Cantou com os melhores do Brasil, usando sempre, sem complexos, o seu "português de Portugal".

Será impressão minha ou o mundo musical português não a aprecia como deveria apreciar? E porque será?

Como aperitivo aos seus já muitos e belos discos, deixo, nesta noite de verão, e nem de propósito, o seu Paris 88.

sábado, julho 18, 2009

Bela frase


"Quem me dera não ter nascido em Portugal para poder ter a incrível experiência de visitar um país como este".

Frederick Fannon, na revista "Up!" da TAP

Maspero

Entre 1956 e 1975, uma livraria fazia parte do circuito de um certo Portugal político em Paris. A "Joie de Lire", na rue St. Severin, junto à place St. Michel, propriedade do editor François Maspero, era um ponto de encontro de muitos, que por aqui viviam, com outros que, como eu, por aqui passavam, a partir da segunda metade dos anos 60. Para aquela espécie de turistas políticos que alguns de nós então éramos, a Maspero (ninguém dizia a "Joie de Lire") era uma "meca" da livralhada inacessível em Portugal, à qual se juntavam panfletos e publicações dos partidos portugueses na clandestinidade, que despertavam a nossa imensa curiosidade.

François Maspero tinha como orientação não entregar à polícia - à "polícia da burguesia" - quem fosse apanhado a roubar livros, o que criou, em muita gente, uma espécie de impunidade que, ao que se dizia, terá acabado por levar a livraria à ruína económica. Fui testemunha presencial de uma frutuosa e furtuosa "romagem" à Maspero de um amigo português, ao tempo estudante em Paris, convenientemente dotado de um avantajado capote alentejano, que dava espaço para um eficaz "arquivar" de volumes. Ainda o estou a ouvir: "Ora cá está ele! Faltava-me o volume 8 das obras do Bataille!". E lá desapareceu o avantajado volume da Gallimard no bojo do capote...

quinta-feira, julho 16, 2009

Quino

Confessados ou não, todos temos os nossos heróis. Eu tinha um, cuja foto não conhecia nem sabia por onde andava. Nem, ao certo, se ainda era vivo.

Assim, nem queiram imaginar qual não foi o meu espanto quando, há dias, num evento público em Paris, em que nada fazia supor que ele estivesse, vi ser chamado ao palco Quino, o inventor dessa magnífica Mafalda da banda desenhada. Devo ter sido das primeiras pessoas que, na sala, se levantaram, de imediato, a dar-lhe merecidas palmas. Não por aquilo por que era premiado, mas como agradecimento a quem tanto prazer me proporcionou.

Para mim, se há por aí alguns génios, Quino é um deles.

Gritos

Por detrás de belas casas do centro de Londres, construídas nos séculos XVIII ou XIX, situam-se os "mews", espaços de antigas cavalariças ou de guarda de carros de cavalos, hoje muitas vezes transformados em luxuosos apartamentos, com um discreto acesso por ruas laterais.

A caminho do pátio das traseiras da residência da Embaixada de Portugal em Londres, em Belgrave Square, existem requintados "mews", habitações de gente abastada, a avaliar pela qualidade dos automóveis que por lá se acolhem e pelos preços que se sabe serem praticados na área.

Um dia, o cozinheiro do embaixador deu-me nota de "uma coisa desagradável" que se passava num dos "mews" adjacente ao nosso prédio: em algumas manhãs, uma senhora dava berros terríveis, que, bem cedo, lhe acordavam a criança e lhe infernizavam o início do dia. Os factos tinham lugar aperiodicamente; havia semanas com gritaria, intervaladas com tempos silenciosos. Até já tinha pensado chamar a polícia, mas preferiu dar-me conta pessoal do sucedido. Como não me voluntariei para testemunhar matinalmente os factos, nem o próprio embaixador se queixara, procurei saber junto de outros ocupantes da residência se os confirmavam. Todos anuíram, embora, por estarem mais distantes, as suas queixas fossem bastante mais limitadas.

Fiquei intrigado e, confesso, cheguei a suspeitar de vícios ocultos de alguma vizinha, embora numa qualquer pouco comum e errática prática matinal. Até que alguém, já não sei bem como, me resolveu o mistério: a vizinha dos gritos era, nem mais nem menos, a fabulosa soprano Jessye Norman, que ensaiva a sua voz aos alvores dos dias em que passava por Londres, no curso das suas tournées.

Imaginem que tínhamos chamado a polícia ou eu tinha pedido para que ela se calasse...

terça-feira, julho 14, 2009

Le Droit à la Paresse

A partir de hoje e até inícios de Agosto, um indeclinável direito a uma "vilegiatura estival" (era assim que o desaparecido 'O Vilarealense' anunciava a partida, para banhos, dos seus assinantes) faz com que este blogue entre em serviços mínimos e até erráticos.

No fundo, trata-se apenas do exercício do "direito à preguiça", a que se refere o livro de Paul Lafargue, de que aqui deixo uma imagem, uma figura franco-cubana do século XIX, sobre quem um dia valerá a pena voltar a falar-se neste blogue, tanto mais que se passeou pelo Portugal desses tempos, embora, ao que conste, não tenha levado o seu famoso sogro consigo.

Palma Inácio (1922-2009)

Há menos de uma semana, aqui em Paris, falei longamente sobre Palma Inácio com Mário Soares. Comentámos que a sua vida daria um belo filme. Acabo de saber que morreu hoje, na data mais revolucionária da França. O dia da Tomada da Bastilha é um dia bonito para Palma Inácio morrer.

Confesso que sempre tive uma grande admiração por Hermínio da Palma Inácio, como uma das grandes figuras da resistência ao salazarismo. Tive o feliz ensejo de lho dizer, há já bastantes anos, dele recebendo um agradecimento de grande modéstia. Desde jovem, lutou intensamente pela liberdade, tendo estado envolvido em imensas tentativas de sublevação. Foi preso e violentamente torturado pela PIDE, com um comportamento de grande dignidade na cadeia. A foto que ilustra este post recorda a sua saída de Caxias - a saída dos presos políticos, a seguir ao 25 de Abril, que foi atrasada precisamente porque o general Spínola não queria Palma Inácio em liberdade. E porque os outros presos não queriam sair sem ele.

Mário Soares contou, nessa bela noite de memórias em casa de amigos comuns, algumas histórias curiosíssimas sobre as suas relações com Palma Inácio. Entre as quais, o dia em que teve de escondê-lo em casa de José Fernandes Fafe, na linha do Estoril, depois de uma das suas épicas e legendárias fugas da prisão.

Durante muito tempo, o facto de Palma Inácio ter sido o chefe do grupo que assaltou a filial do Banco de Portugal, na Figueira da Foz, fez convergir na sua pessoa uma ignominiosa imagem de alguém que se havia apropriado, para finalidades pessoais, do dinheiro então obtido. Esse era o objectivo insultuoso que o regime ditatorial dele quis dar à opinião pública. Porém, quem conhece a história da oposição ao Estado Novo sabe bem que Palma Inácio foi um homem sério, que nunca utilizou essas verbas em seu proveito e que viveu sempre com grandes dificuldades, devotado às causas políticas em que acreditou. Mas terá sido essa miserável "fama" a razão que atrasou a atribuição de uma merecida Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, com que o presidente Jorge Sampaio o agraciou em 2000.

Leia mais sobre Palma Inácio aqui e aqui.

segunda-feira, julho 13, 2009

14 juillet

Há já uns bons anos, sem que me tivesse apercebido da data, cheguei a Paris, ido de comboio de Bruxelas, na noite do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia sido difícil reservar um hotel próximo do "Périphérique", porque era importante conseguir sair bem cedo para o aeroporto, no dia seguinte, para partir para outro continente.

O motorista que me aguardava na Gare du Nord foi-me dizendo que não ia ser pêra doce chegarmos ao hotel, que ficava perto da Étoile. Tinha razão. O trânsito estava impossível e, chegados ao Arco do Triunfo, foi preciso parlamentar com uns polícias para atravessar a praça. Mas lá conseguimos arribar ao destino.

Entretanto, o motorista tinha-me chamado a atenção para o interesse em não perder o fogo de artifício dessa noite, o maior e mais imponente nos céus de Paris, durante todo o ano. Desde sempre, desde as festas da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, passando pelo "4 de Julho" em Manhattan, sempre fui um fã das sessões de fogo de artifício, essa maravilhosa arte efémera que alegra as noites de verão.

Com a sugestão do motorista ainda no ouvido, mas consciente de que a hora do espectáculo se aproximava, perguntei na recepção do Hotel Raphael, onde me iria hospedar, se me aconselhavam algum local, de onde ainda pudesse ver o espectáculo. A reacção do empregado foi de uma snobeira tipicamente parisiense. Depois de me dar a chave do quarto, olhou para o relógio e adiantou, num tom displicente: "As pessoas acham que o terraço do nosso hotel é, muito provavelmente, o melhor local de Paris para ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Aliás, o fogo desta noite começa daqui a 15 minutos e vamos servir champanhe no terraço dentro de... 3 minutos".

Foi quase uma noite memorável, com técnicas de pirotecnia que não imaginava possíveis. Presumo que, de lá para cá, tudo esteja ainda mais requintado no fogo da festa parisiense, tanto mais que, este ano, a Torre Eiffel, que comemora os seus 120 anos, será ainda mais o centro principal do evento.

Ainda não sei onde vou, logo à noite, ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Mas não excluo, em absoluto, tentar-me fazer convidado para o terraço do Raphael...

Boavista

Há uma imensa injustiça quando um emblema a quem imensos milhares dedicaram as suas emoções e afectos, ao longo de um historial de largas décadas, se perde por virtude de gestões ruinosas e de decisões assentes na irresponsabilidade.

Há uns anos, foi o Salgueiros, há pouco tempo esteve para ser o Leixões, agora foi a vez do Boavista. A macrocefalia do Futebol Clube do Porto não justifica tudo.

A desqualificação do Boavista é um momento triste para a cidade do Porto e para o futebol português em geral. Mas o que é ainda mais triste, porque sintomático do estado em que vive o futebol português, é não ver pessoalmente responsabilizados e punidos com severidade criminal, até ao limite máximo das consequências da lei, os responsáveis directos por este tipo de descalabros que afectam os nossos clubes, que os endividam e arruínam para satisfação das suas vaidades e glórias pessoais, arrastando consigo o desemprego, para os jogadores e os restantes empregados dos clubes. Responsáveis que têm nomes, alguns bem sonantes, como todos sabem. E que por aí vão continuar a andar à solta, bem na vida e de costas direitas.

Deixo um abraço de simpatia aos meus amigos boavisteiros, em cujo admirável Campo do Bessa me "estreei", numa tarde de 1966, como um dos menos bem sucedidos "laterais-direitos" dos anais da equipa de futebol da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto...

domingo, julho 12, 2009

Armstrong

A Volta a França já não desperta por aqui o entusiasmo de outros tempos, embora uma parte do país mantenha ainda uma nostálgica imagem dos tempos de Anquetil, Merckx, Hinaut, Induráin e de outras grandes figuras que, a partir da França, ajudaram a fazer a história do ciclismo mundial. Os sucessivos escândalos do doping, com a noção de que algumas das melhores corridas podem ter sido falseadas, bem como a concorrência mediática de outros eventos, acabaram mesmo por diluir o fantástico feito de Lance Armstrong, vencedor sucessivo de sete "Tours" (1999-2005), e que, este ano, decidiu regressar à competição.

Armstrong, em toda a sua glória-tragédia, desde o "record" de vitórias em "Tours de France" à ainda mais admirável vitória pessoal sobre o cancro, converteu-se, definitivamente, numa figura altamente polémica, que suscita emoções de dimensão irracional, potenciadas por um estilo pessoal com alguma arrogância. Por isso, a somarem-se às obras de cariz hagiográfico, que o louvam quase à escala dos deuses, aparecem, em paralelo, libelos impressos pelos seus detractores radicais, ambos quase no limiar do ridículo.

O "óscar" da paranóia anti-Armstrong deve ir, contudo, para "Lance Armstrong, l'abus!", um requisitório assinado por Jean-Emmanuel Decoin, chefe de redacção do "L'Humanité", órgão do velho Partido Comunista Francês, que considera que o "Tour de France" foi "desnaturado" pelo "imperialismo do post-Reagan". Segundo uma recensão do livro feita pelo "Le Monde" (confesso não ter tempo para a leitura destes exageros editoriais), o livro, epicamente dedicado "ao ciclista desconhecido", avança mesmo com um imperativo "Armstrong, go home!".

O anti-americanismo é uma arte que certa França cultiva com um requinte tal que, por vezes, chega a ser interessante de observar, pelo que releva de idiossincrático e quase identitário. Mas há limites!

sábado, julho 11, 2009

Duas rodas

Eu consigo perceber, sem dificuldade, que se tente privilegiar quem viaja de bicicleta, dando-lhes faixas de circulação próprias, protegendo-os e estimulando o seu uso, mesmo se, por vezes, o comportamento dos respectivos condutores fica algo à margem das regras comuns de trânsito. Porém, trata-se de um meio de transporte que, além de saudável, é não poluente e cuja utilização com velocidades razoáveis tem, sem contestação, um impacto global positivo sobre as sociedades.

O que eu não entendo, por mais que me esforce, é por que diabo temos de sofrer, cada vez mais, uma espécie de assédio de tráfego por parte dos veículos motores de duas rodas, que enxameiam as nossas ruas e estradas. Que eles por aí andem, muito bem: têm um direito como qualquer outro. Mas é inexplicável a impunidade com que não cumprem as regras mais elementares de trânsito, como ultrapassam por ambos os lados das nossas viaturas, como não respeitam os traços contínuos, como se enfurecem e se tornam violentos se nos limitamos a exercer esse direito básico que é podermos ocupar a totalidade das nossas faixas de rodagem.

Em cidades como S. Paulo, no Brasil, os chamados "motoboys" são hoje uma raça humana verdadeiramente terrorista, que obriga a um aturado esforço de concentração dos condutores automóveis para deixarem o espaço necessário a "suas excelências" circularem como lhes aprouver, pela esquerda ou pela direita, zigzagueando em frente às viaturas, sem o menor respeito pelos limites de velocidade, buzinando a todo o momento e assumindo comportamentos de elevada agressividade se acaso consideram, com razão ou sem ela, que os seus "direitos" adquiridos (e eles estão, de facto adquiridos, porque o grupo faz hoje forte chantagem política) estão a ser limitados. Para além de, com frequência, pontapearem os carros e quebrarem deliberadamente espelhos retrovisores.

Porém, um fim-de-semana por estradas de França provou-me que o problema tem por aqui uma dimensão já muito similar, obrigando a um esforço particular de atenção por forma a permitir que os "senhores das motos" se possam passear à vontade entre os automóveis, num comportamento sem rei nem roque, desde os distribuidores de pizzas aos cultores canastrões que vão "on the road" num estilo "Easy Ryder", na melhor das hipóteses ufanos nas suas Harley-Davidson. E como, em França, se não vê um polícia de estrada por centenas de quilómetros, a lei da selva está hoje por aqui instituída.

Resta dizer que, em Portugal, as coisas vão por caminho perfeitamente idêntico. Pior: em certas zonas, há mesmo uns selvagens, com ou sem capacete, que transportam crianças entre adultos, numa impunidade total, ficando-se com a sensação de que estão protegidos por uma espécie de benévola antropologia ruralista.

Um ortopedista dizia-me, há anos, com algum sadismo, que a anarquia da circulação das motos em Itália tornava o país num "paraíso" para os médicos da sua especialidade. Eu, confesso, não lhes desejo mal, mas começo a ficar farto. E que dirá o meu amigo e "motard" Manuel Serra a tudo isto?

quinta-feira, julho 09, 2009

Robert McNamara (1916-2009)

Julgo que foi a primeira das várias vezes em que, por dever de ofício, tive de passar longas horas num já célebre barracão de conferências que existe em Maastricht, cidade holandesa encravada na Alemanha, que dá pela sigla de MECC. E nunca pela melhor razão: a excelente feira de antiguidades que lá tem lugar, no primeiro semestre de cada ano.

Estavámos em meados de 1990 e recordo-me que se tratava de uma qualquer conferência sobre questões de cooperação para o desenvolvimento, tema a que então especialmente me dedicava. Robert McNamara era um dos conferencistas e, devo confessar, a minha atenção ao que iria dizer havia sido mobilizada na razão directa da imagem, quase fotográfica e caricatural, que eu dele tinha - uma figura de cabelo oleadamente penteado para trás, qual ministro de Salazar. Lembrava-me, e lembro-o aqui, a mostrar um mapa do Vietnam, nos seus tempos de secretário da Defesa dos EUA, com um ponteiro que devia assinalar bombardeamentos e "santuários", no auge dessa carnificina sem sentido, para a qual a lógica cega da Guerra Fria tinha conduzido a América. E da qual o orgulho do país saiu com uma profunda ferida, que veio a conduzir à posterior eleição de Ronald Reagan.

Ao meu lado, lembro-me bem, estava sentado Abdul Magid Osman, então ministro das Finanças de Moçambique, velho amigo dos tempos em que ambos trabalhávamos na Caixa Geral de Depósitos, no início dos anos 70. E foi com Abdul que comentei aquilo que já sabíamos ser a surpreendente transfiguração de McNamara: do infatigável "warrior" anti-vietcong, tínhamos perante nós um homem sensível à situação do mundo em desenvolvimento, atento às suas necessidades, titulando a alteração da matriz dos estáticos "programas de ajustamento estrutural" do Banco Mundial, o organismo a que McNamara agora presidia. O jingoísta McNamara era agora um homem quase sereno, a caminho da reconciliação com o seu passado.

Seis anos mais tarde, Robert McNamara publicou "In Retrospect - The Tragedy and Lessons of Vietnam", um livro que aconselho vivamente a quem não tiver a fraqueza de se não querer enfrentar com a verdade. Um livro que honra um homem que não teve o receio de reconhecer os seus erros, por mais trágicos que hajam sido.

Em 2001, tive o privilégio de ouvir de novo McNamara no Council on Foreign Relations, em Nova Iorque, apontar, a tempo e horas, os perigos que detectava na equipa do recém-eleito George W. Bush. Recordo a sua lucidez, que não era minimamente incompatível com o seu patriotismo, que alguns neo-mccaristas, num certo momento, quiseram pôr em causa.

McNamara morreu agora, com 93 anos. Desconheço se chegou a ter a consciência da esperança que Obama representa para uma certa América. Porque Obama é hoje - e esperamos que possa continuar a sê-lo - a América que a contrição de McNamara também ajudou a construir.

quarta-feira, julho 08, 2009

Terrorista

A história foi-me contada ontem em Paris, no intervalo de uma função oficial.

Estava-se nos anos 60 ou 70. Três "terroristas" tinham sido presos, no Norte de Angola, e mantinham-se alinhados, na parada de uma unidade militar portuguesa. Eram homens que combatiam pela independência da sua terra, contra o "nosso ultramar". O exército tinha-os neutralizado e aguardavam transporte para Luanda.

Num determinado instante, um dos "turras" (era assim que os "terroristas" independentistas eram chamados nesses tempos) deu um salto em frente e voou para apanhar um papel que o vento havia feito deslocar na parada do quartel. A rapidez do seu movimento corporal apanhou de surpresa os militares à guarda de quem estavam, que puxaram logo de arma, numa reacção que, por pouco, não foi violenta. Mas o "turra" rapidamente regressou à formação alinhada com os seus camaradas, recolhendo logo o papel no bolso.

Os militares portugueses não "brincavam em serviço" e, de imediato, exigiram a entrega do papel. Quem sabe, podia tratar-se de um documento estratégico, a revelação de planos militares. Se o "turra" tinha corrido o risco de avançar para agarrar o papel, numa ousadia que podia ter-lhe custado a vida, alguma valia ele teria. O detido ainda hesitou mas, face ao óbvio imperativo, acabou por entregar o papel.

O resultado foi mais simples do que se esperava: tratava-se de uma página do jornal "A Bola", esse federador "avant la lettre" do grande e imparável mundo que é a lusofonia desportiva.

Lula

Foi uma "festa da lusofonia", como alguém qualificou a jornada que, na UNESCO, consagrou no dia 7 de Julho o presidente brasileiro, Luíz Inácio Lula da Silva, como o detentor, em 2009, do Prémio Houphouet-Boigny para a paz.

O chefe de Estado brasileiro, perante uma entusiástica assembleia de líderes políticos do mundo e uma multidão de admiradores, recebeu o preito de respeito da comunidade internacional, pela sua contribuição à causa da paz, do desenvolvimento e da redução das desigualdades.

Ando há muitos anos nesta vida internacional e, como é óbvio, tenho sido testemunha de diversas cerimónias de consagração de personalidades, sendo algumas mais elegias do que outras, quase sempre encadernadas na forma de exercícios de retórica elogiosa. Mas, devo confessar, raras vezes pude testemunhar um movimento de tão espontânea e genuína adesão ao sublinhar das qualidades de uma personalidade como o presidente Lula da Silva.

Portugal teve, nesta cerimónia, dois momentos marcantes. O primeiro no depoimento do primeiro-ministro José Sócrates, num improviso emocionado, que sublinhou a contribuição do chefe de Estado brasileiro para as grandes causas da modernidade e do progresso. O segundo no testemunho de Mário Soares, presidente em exercício do prémio, que substanciou as razões da atribuição deste galardão ao chefe de Estado brasileiro.

E foi muito bom ouvir a língua portuguesa, em toda a cerimónia, reconhecida por uma plateia global. Este dia fez muito bem ao estatuto do Português à escala multilateral.

terça-feira, julho 07, 2009

Imbecilidade

Um jornalista do Público considera que a entronização do Cristiano Ronaldo no Real Madrid mais não é senão o "O Triunfo da Imbecilidade". Porém, não concordo que isso seja a "alarve disponibilidade das multidões para perderem minutos, horas, das suas vidas a seguir de perto qualquer banalidade quotidiana da vida de um ídolo".

Posso compreender o sentimento de alguma estupefacção perante um exercício mediático de sacralização de um habilidoso com um bola de couro, esta espécie de hagiografia prematura de um miúdo apenas fisicamente talentoso, investido de um enorme poder de sedução e esperança. Mas eu coloco-me no lugar dos adeptos do Real e imagino, desde já, a ânsia das vitórias que a figura de Ronaldo terá provocado nos mais de 80 mil "merengues" que estiveram no Santiago Bernabéu.

A felicidade faz-se hoje bastante desta adesão aos sucessos que outros protagonizam, de quem nos assumimos próximos, colectivamente juntos na vitória, sempre com a derrota de outros como aparente contraponto indispensável. Para quem, como eu, tem a anti-competição como sólida e permanente doutrina de vida, confesso-me um tanto perdido neste ambiente. Mas será isto a alienação de que falava um clássico fora de moda? Talvez seja, mas esta comemoração das vitórias mais não é, para muitos, do que o complemento natural de existências simples, que seriam ainda menos relevantes se não se juntassem nessa onda gloriosa colectiva. É triste reconhecer isto, mas é a realidade.

Só posso desejar que o nosso madeirense de sucesso, do alto dos seus 24 anos, consiga suportar a carga de esperança agora nele investida. E, com clara consciência desta minha debilidade afectiva, sem qualquer ligação particular ao Real, lá estarei, nos fins de semana, à espera dos seus golos e dos seus êxitos, exultando com os primeiros e ansiando pelos segundos. Como estive nos tempos do Manchester, sucedâneo do que deixou de fazer no Sporting. Da mesma maneira que estive com Figo, no Barcelona e, mais tarde, no mesmo Real Madrid. Por isso, com total serenidade, não consigo condenar os adeptos do Real, hoje em delírio, nem lhes chamo imbecis.

Quantos de nós não sofremos de taquicardias patetas pelo nossos clubes, pelas nossas selecções nacionais, pelas nossas bandeiras desportivas? No futebol como no hóquei (lembram-se das jornadas de Montreux?), no atletismo (recordo a Rosa Mota ou o Carlos Lopes), na natação (eu dei braçadas morais a acompanhar Baptista Pereira, nas travessias da Mancha) ou no ciclismo (quem não sofreu pelo Agostinho?), quantos não alinhámos nessa magnificação dos ídolos desportivos, transformando meros eventos em casos-de-vida-ou-de-morte?

O desporto pode ser e é, muitas vezes, um tempo de evidente irracionalidade. Mas, ao fim de não poucas décadas de experiência, concluí que a mobilização colectiva da afectividade faz parte da nossa vida e, bem-pensantes à parte, constitui parte do sal de todas as sociedades contemporâneas.

Boa sorte, Cristiano Ronaldo! Só espero que a conversa com esse mago "merengue" que se chama Alfredo Di Stefano lhe venha a ensinar algumas das regras do jogo, não do futebol, mas dessa outra coisa bem mais complexa que é ser-se um nome público em Espanha: amado, odiado ou uma coisa depois da outra, qualquer que seja a ordem dos factores.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...