sexta-feira, abril 06, 2018

A tia Zé e a Senhora da Agonia


A tia Zé era a irmã mais velha do meu pai. Vivia com a minha avó, em Viana do Castelo, e, após a morte desta, passou os seus últimos anos na casa de irmãos. Era uma pessoa frágil, com uma evidente debilidade psicológica, o que fazia com que, desde sempre, tivesse sido confinada às tarefas domésticas mais simples: a “gestão” do pão e os cafés eram os seus dois indiscutíveis “pelouros”.

Era uma mulher pequena, que o tempo enfeiara, o que era agravado por um persistente buço que ninguém tinha a coragem de lhe pedir para tirar. Tinha um feitio muito irritadiço e, não raramente, vocalizava estados de alma com grande e expressiva facilidade. A deselegância de um “raisteparta!”, que às vezes lhe saía e direção a um sobrinho mais atrevido (e eu fui-o, várias vezes), era nela perdoada pelo estatuto que o seu infortúnio lhe criara.

A tia Zé nunca terá tido um namorado, não tinha amigos ou amigas que não fossem os visitantes da casa da minha avó e, depois, dos meus tios. E, desde os tempos de Ponte de Lima, de onde a família saiu em 1912 e se dizia que convivia com uma filha dos donos da vizinha pensão Clara Penha, nunca saía de casa. 

Havia, contudo, uma exceção. Uma vez por ano, nas vésperas dos dias de Festas da Senhora da Agonia, a tia Zé tirava-se dos seus cuidados e saía da velha casa do largo Vasco da Gama, subia pela rua de Altamira, atravessava o jardim dom Fernando e ia depositar uma esmola à capela da Senhora. A “operação” não demorava muito tempo, mas todos nós sabíamos fazer parte de uma rotina piedosa anual. 

No seu regresso, o meu pai e os irmãos não deixavam de inquirir, curiosos, as impressões da “Maria Zé”, como era tratada, sobre como correra a “expedição” à capela. E queriam saber pormenores, se ela vira a nova montra da loja do Julião, o que achara do arranjo do largo de São Domingos e coisas assim, como que a testarem a atenção que ela prestava a um quotidiano urbano de que era rara visitante. Mas a tia Zé pouco adiantava, recordo-me.

Numa dessas vezes, a Tia Zé contou ter tido dificuldade, dentro da igreja, em encontrar a caixa das esmolas. Tímida e metida em si como era, não inquiriu por algum tempo do paradeiro do recetáculo dos óbulos. Mas a sua hesitação não passou despercebida. Um cavalheiro, “de respeito e muito bem parecido” (palavras dela), aproximou-se e perguntou-lhe se necessitava de alguma ajuda. A tia Zé, à época já bastante idosa, explicou o seu embaraço para poder fazer a oferta anual à santa. O interlocutor revelou-lhe então que o pároco da Senhora da Agonia o tinha “encarregado” de estar por ali a recolher as oferendas. E, “simpático e prestável” (sic), prontificou-se a receber o montante que a tia Zé tinha naquele ano destinado para esse fim, dizendo-lhe que podia “ir descansada”...

E a tia Zé lá regressou a casa, “descansada” e desembolsada, com a certeza absoluta de que o cavalheiro seria um fiel depositário da sua esmola. 

Qualquer que tenha sido o destino do dinheiro, um juízo de razoabilidade, mesmo para quem não é “dessa freguesia”, levará facilmente a concluir que a Senhora da Agonia terá, com toda a certeza, registado o óbulo a desconto dos poucos pecados que a tia Zé devia ter a débito na sua conta-corrente de deveres celestiais. 

Uma coisa ficou claro: a tia Zé nunca colocou em causa a honorabilidade do cavalheiro “de respeito e muito bem parecido”, que tão tocantemente a auxiliara. E ficou famosa a fúria com que recebeu as graçolas dos irmãos, que cruelmente a gozaram pela sua ingenuidade.

(Mal a tia Zé sabia que, muitos anos mais tarde, este seu ímpio sobrinho iria ter o orgulho vianense - em Viana, diz-se “chieira” - de ser presidente da Comissão de Honra das Festas da Senhora de que era tão devota. Como eu gostaria que ela soubesse!)

Lembrei-me há pouco da tia Zé, ao ler no JN que as caixas de esmolas da capela da Senhora da Agonia, lá por Viana, foram assaltadas na noite de ontem. Terá sido obra de parentes do cavalheiro que ajudou a tia Zé? No fundo, bem parecidos ou não, os gatunos são feitos da mesma massa...

(Dedico este texto ao meu primo António, a quem a tia Zé devotava o maior amor dentre os sobrinhos, neste que, por razões que não vêm à conta, não foi para ele um dia fácil.)

Diplomacia democrática


Há dois dias, adquiri no aeroporto de Madrid um livro de memórias de Jorge Dezcallar, um credenciado diplomata espanhol. Ao lê-lo, pude recordar como é diferente a cultura política que se instalou no nosso país, no tocante à gestão da carreira diplomática. No nosso vizinho peninsular, as mudanças drásticas de governo têm muitas vezes consequências dramáticas nas escolhas de chefias internas e na titularidade das representações diplomáticas, num registo que induz fortes tensões e a perspetiva de repetição simétrica no futuro.

Graças a Mário Soares, no pós-25 de abril, a estrutura essencial da nossa máquina diplomática foi preservada, com o novo poder político a ter rápida consciência de que teria ao seu dispor, em geral, um corpo qualificado de funcionários, devotado a servir lealmente o Estado e os interesses nele projetados por quem, a partir daí com total legitimidade, o passava a dirigir. Houve exceções, claro, mas essas baixezas morais acabaram-se por se autoqualificar, na memória deontológica das Necessidades.

Portugal vive hoje tempos de uma diplomacia democrática: os governos mudam, os embaixadores não mudam necessariamente com eles. A rotação destes processa-se, em regra, nos ritmos normais, sem sujeição necessária aos ciclos políticos. 

Mas, para sermos francos, há que dizer que os riscos não desapareceram, por completo. Uma cultura democrática demora muito tempo a impor-se. Vemos que ainda ressurge, a espaços, a tentação, nos fins de ciclo, de colocar à pressa alguns peões, por parte dos executivos que estão de saída. Este, aliás, não é um pecadilho com particular coloração ideológica, persistindo em todos os partidos que passam pelo poder.

Suscito este tema, motivado pelas tais memórias, que têm por título “O antiquário de Teerão”, porque me parece importante que esta questão, tal como recentemente o foi a defesa do exercício exclusivo de cargos de chefia diplomática pelos profissionais que fizeram uma carreira especializada para tal, venha a ser assumida como axial na ação das estruturas sindicais que representam o pessoal diplomático. 

Por isso, porque a independência política da diplomacia é um bem a garantir no nosso serviço público, é imperioso preservar a carreira diplomática profissional da instrumentalização política. Um diplomata não é um eunuco político, pode e deve ter uma ideologia. Mas deve interiorizar que o seu único dever de obediência é perante o interesse do Estado, de que o governo de turno é apenas um ocupante episódico. Convém que se lembre sempre disso e que o recorde aos governos com os quais se cruzar.

quinta-feira, abril 05, 2018

Lula e o Sporting


Eu tinha chegado ao Brasil há poucos dias, nesse mês de janeiro de 2005. A apresentação das minhas cartas credenciais ao presidente Lula estava muito atrasada, devendo aguardar ainda meses. Havia muitos embaixadores na “fila”...

Um dia, para minha surpresa, o "Cerimonial" (o nome brasileiro para Protocolo) convidou-me a estar presente no almoço oficial que o presidente Lula oferecia ao presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero. Era um gesto de inusitada simpatia para com o representante diplomático português, porque um embaixador não "existe" oficialmente, perante um chefe de Estado, antes de apresentar as suas "cartas credenciais". Mas as relações luso-brasileiras têm destas simpáticas sublitezas.

No final do almoço, o chefe do Cerimonial, Ruy Casaes, quis ter a acrescida amabilidade de me apresentar ao presidente e ao seu convidado. 

Lula da Silva deu-me as boas-vindas, de forma bastante calorosa e logo inquiriu:

- “Baixadô”! Qual é seu "time", em Portugal?

- Sou de um clube essencialmente católico, presidente. 

Deixei passar uns segundos e, perante a perplexidade dos presentes, expliquei que era do Sporting, "um clube que só ganha quando Deus quiser".

Lula deu uma gargalhada e disse que conhecia melhor o Benfica e o Porto. Eu acrescentei: “O meu Sporting é como o seu Corinthians, presidente!”. Outra gargalhada de Lula.

Nesse ponto da conversa, Zapatero - que não me pareceu muito conhecedor de futebol - puxou o assunto para Pélé, afirmando a grande admiração que tinha pelo jogador, que tinha visto jogar em seleções brasileiras.

Lula comentou então:

- O presidente Zapatero sabe que Pélé não fazia parte daquele que é, ainda hoje, considerado como o melhor "time" que o Brasil alguma vez teve?

Aí, não dando espaço ao incarismático líder espanhol, eu intervim:

- Está a referir-se ao "time" do Chile, em 1962, presidente?

Lula fez uma cara de espanto, de quem estranhava bastante que eu soubesse esse preciosismo e retorquiu:

- O embaixador lembra-se do "time" do Chile?!

- Muito bem, presidente. E, por acaso, o presidente recorda-se dos jogadores que compunham esse "time"'?

Lula deve ter achado algo impertinente a minha observação, mas lá adiantou:

- Tinha o Zózimo, o Amarildo, o Garrinha...

Agarrei a oportunidade e "arrasei":

- Presidente, talvez valha a pena começar pelo princípio: Gilmar; Djalma Santos, Mauro e Nilton Santos; Zito e Zózimo; Garrincha, Didi, Vává, Amarildo e Zagalo.

Zapatero estava sem perceber nada. Lula exibia um sorriso espantado e, por um instante, deve ter pensado que Portugal teria decidido mandar para o Brasil um técnico de futebol, em lugar de um embaixador.

- Mas como sabe isso, embaixador? Por que conhece todo esse "time" brasileiro?

Expliquei então a Lula uma coisa que ele provavelmente desconhecia, mas que, estou seguro, não esqueceu mais:

- Sabe, presidente, para a minha geração, em Portugal, quando a seleção nacional portuguesa não estava numa "copa" do Mundo, o Brasil era a "nossa" seleção. E, por isso, eu conhecia muito bem todo o vosso "time", porque o "time" do Brasil era o meu "time".

(Não disse a Lula que esse "time" do Chile era, por mero acaso, o único que eu sabia totalmente de cor...).

A partir daí, e nos quatro anos seguintes, foram muitas as vezes que conversei com o presidente Lula sobre futebol, a maioria delas sobre a errática sorte do seu Corinthians. Mas, infelizmente, nunca encontrei uma boa razão para lhe voltar a falar no meu Sporting...

Hoje, podia falar-lhe da triste jornada madrilena do meu clube. Mas Lula, nas embrulhadas em que se envolveu e que outros cuidaram em potenciar, nesse mundo perigoso de emoções que agora atravessa o Brasil, tem outros “futebóis” com que se preocupar.

Débil

Na passada segunda-feira, em Madrid, do aeroporto para o hotel, ouvi no rádio do carro um divertidíssimo debate entre três comentadores desportivos que antecipavam a jornada europeia das equipas espanholas destes dias. (Nem eles adivinhavam a surpresa que o pontapé de bicicleta de Ronaldo iria provocar no mundo...)

Nessa conversa, comecei a estranhar a ausência de referências ao Atlético de Madrid. Mas ela apareceria, no final, por sugestão do moderador, dando origem a um simples comentário: “Os colchoneros não têm desculpa, o adversário português é muito débil”.

Recostei-me de desconforto no banco do carro e pensei que, no fundo, o homem tinha razão. O (meu) Sporting era uma equipa débil.

Não sou um “expert” de futebol, que, no entanto, é a modalidade desportiva que mais prazer me dá assistir. Sou sportinguista, adorava que o Sporting ganhasse mais vezes, mas não perco um segundo de sono quando, como muitas vezes acontece, o meu clube perde. 

O futebol para mim é apenas um jogo, o meu clube não é uma religião, é apenas uma opção afetiva irracional que me acompanha desde criança, por influência do meu pai, mas confesso que nunca consegui sentir (devo dizer que nem nas vitórias!), um arrebatamento emocional absoluto pelo trabalho de onze artistas de pé-de-obra, contratados a peso de ouro (alguns deles tanto podem estar no Sporting como noutro clube qualquer, dependendo do que se lhes pague), em que raros são os que sentem algo de especial no emblema que trazem ao peito. 

Hoje, uma vez mais, o Sporting foi débil. Como, aliás, o tem sido no campeonato português. Nunca deu a impressão de poder vencer este jogo, que começou a perder demasiado cedo, com erros de palmatória. Teve ocasiões para marcar? Teve, mas não as aproveitou e dos “quase” estou farto. E muitos sportinguistas comigo.

quarta-feira, abril 04, 2018

As Pedras


O prazer que a minha mãe teria ao ver servir, na cafetaria de um museu madrileno, uma garrafa de água das suas Pedras! 

As Pedras Salgadas, as recordações da sua infância, as tias por lá, o chá no terraço, os hóspedes do Colonial, os picnics de família com retrato a preto-e-branco, a vinha pequena que o meu avô lhe ofereceu pelos anos, o pontapé inaugural do primeiro campo de futebol, o parque, os jantares no Avelames, as tardes na Casa de Chá, os bailes no Chalet e no Casino, os cavalos nas Romanas, as horas do acontecimento que era a chegada do comboio da linha do Corgo, a fumegar as janelas e a trazer os parentes e os amigos, o deslumbre do Verão, com a loja de rendas do Flores, as “artes” da exposição sazonal no Botelho, lá na Pensão do Parque, os nomes de toda a gente que conhecia pelas ruas, casa a casa, como se dali não tivesse já saído há muitas décadas, as compras no Frutuoso, o café no Rogério, o Franco dos Correios (tinha uma bela filha, lembro-me bem!). 

E, claro, o conforto do caminho eterno para Bornes! E, também, a igreja de São Martinho, o padre Domingos, os casamentos, os batizados e, ao lado, o cemitério, com muitos já por lá, as tristezas sem as quais as alegrias da vida, se calhar, não se apreciavam.

E, sempre, as águas, as fontes, a ”Companhia”, que empregava meia aldeia, as garrafas que dela se recebiam, em caixas grandes de madeira, testemunho do gosto imenso de fazer parte daquela terra única, daquele mundo simples e magnífico.

E, aqui em Madrid, aqui estão elas, as águas das Pedras, agora já sem o orgulho, no rótulo, de serem “radioativas”...

As Pedras, sempre!

And now...


Lavar os olhos


Há muito que não estou com o meu amigo André Gonçalves Pereira. Lembrei-me dele, aqui em Madrid, ao passar junto ao Hotel Ritz (que agora está em obras), local onde ambos nos hospedámos, em 1994, numa viagem de trabalho, para uma conversa com o então secretário de Estado dos Assuntos Europeus espanhol, Carlos Westendorp.

André Gonçalves Pereira, um grande advogado e reputado professor de Direito Internacional, que havia sido ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha sido nomeado pelo governo de Cavaco Silva como representante português no “Grupo de Reflexão”, chefiado por Westendorp, que a União Europeia criara para rever o Tratado de Maastricht. E convidara-me para ser “representante alternante”. 

Eu era, à época, subdiretor-geral dos Assuntos Comunitários. Ao informar o governo do substituto que escolhera, recebeu de volta a informação de que o meu nome não colhia a simpatia do governo. Porque era, e é, um homem independente e de caráter, Gonçalves Pereira informou então o seu interlocutor governamental de que ou era eu “ou não era ninguém”, porque, nesse caso, ele próprio “bateria com a porta” e recusaria o convite que lhe tinha sido feito, aliás já público em toda a imprensa. Perante isto, a objeção a meu respeito teve de “cair”...

Logo no dia da nossa chegada, no hall do hotel, André Gonçalves Pereira perguntou-me - e nunca mais esqueci: “Quer vir lavar os olhos, Francisco?”. Não percebi o que ele queria dizer com aquilo. Era simples. Quando que vinha a Madrid, Gonçalves Pereira hospedava-se sempre no Ritz (claro!). atravessava a rua e entrava no Museu do Prado, para, durante uns minutos, apreciar “As Meninas”, de Velasquez. Era a sua maneira de “lavar os olhos”, apreciar essa obra-prima do século XVII.

Esta 4ª feira, vou passar por aqui o dia a “lavar os olhos”, do Prado à Tyssen, com livrarias pelo meio e um prometedor almoço no Hortensio. É (também) o que se leva desta vida...

terça-feira, abril 03, 2018

Russos e soviéticos

Hoje, no seu artigo regular no “Público”, o deputado europeu Paulo Rangel, atropela com alguma ligeireza a História para uma chicana política. A propósito da atitude do governo de não seguir alguns parceiros na expulsão de diplomatas russos, por virtude do atentado no Reino Unido contra um espião, Paulo Rangel traz à baila a decisão tomada pelo primeiro-ministro Sá Carneiro de expulsar diplomatas soviéticos, acusados de atos de espionagem no nosso país. E vai mais longe: diz também que foi Cavaco Silva quem não reconheceu a invasão soviética dos Estados bálticos, uns meses depois. 

Quanto a este último caso, se Paulo Rangel quer dar o crédito exato a alguém (eu poderia ser maldoso e acrescentar “da sua área política”, mas não o farei) por essa decisão terá de o fazer ao dr. António de Oliveira Salazar, que décadas antes havia decidido esse não reconhecimento. Cavaco, alertado pelo MNE para este facto, terá apenas impedido uma delegação de deputados portugueses de se deslocar a um país báltico, o que provocou um sururu político no nosso âmbito pátrio. (O “culpado” por esse alerta foi um leitor habitual deste espaço, que poderá, se assim o entender, esclarecer melhor a história).

Mas a confusão propositada - é que, se o não fosse, seria bem pior ainda - entre a União Soviética desses tempos e a Rússia de hoje é apenas um truque fácil - como se o facto da capital de ambos os países ser Moscovo legitimasse a similitude dos atos. 

Recordo que a URSS, quando implodiu, deu origem a 15 países, um dos quais é hohe a Federação Russa. Trazer à colação uma decisão unilateral, tomada no tempo da Guerra Fria, por virtude de uma atitude culposa com impactos bilaterais, como fez Sá Carneiro, durante o período de menos de um ano em que chefiou o governo da AD, é um entorse grave à História. Custa-me ver Paulo Rangel colocar-se ao nível de uma esperteza qualificável como “dos arredores de Lisboa”.

Paraguas

Em espanhol, ”paraguas” significa guarda-chuva. 

“El Paraguas” é também o nome de um magnífico restaurante madrileno onde ontem jantei - e que vivamente recomendo, mas só a quem estiver disposto a deixar por ali umas boas “notas”.

Durante a refeição, não pude deixar de lembrar-me da deliciosa história de um político português, muito “versado” em línguas, que um dia foi ao México, país onde não deixou os seus créditos por mãos alheias em matéria de “abundante” conhecimento do castelhano.

O nosso homem, à saída de um hotel, deu-se conta de que chovia copiosamente e que ninguém havia providenciado um guarda-chuva para o trajeto até ao carro. 

Irritado com a falta de assistência, deu um berro para um porteiro: “Necessitamos de un guarda-lluvias”... 

O homem percebeu e lá veio o “paráguas”, até porque a “lluvia” teimava em não abrandar

segunda-feira, abril 02, 2018

Madrid


Vou contar uma história dos anos 90. Um dia, no governo, desloquei-me à capital espanhola, para um encontro bilateral sobre assuntos da União Europeia. Era então meu contraparte Ramón de Miguel, também secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

Ao longo da minha carreira, nas conversas informais com os meus amigos e interlocutores espanhóis, habituei-me a usar sempre o meu “portuñol”, porque entendo sempre muito bem o castelhano deles.

A reunião de Madrid, que tinha um caráter formal, começou com uma proposta de Ramón de que eu, tal como os colaboradores que me acompanhavam, falássemos em português, com os espanhóis a usarem sua própria língua. O meu interlocutor percebia muito bem o português, porque fora diplomata em Lisboa. Mostrava-se convencido de que tudo correria bem, dessa forma. Eu, confesso, não estava, mas aceitei o desafio.

A conversa até começou bem. Porém, a certo passo, comecei a dar-me conta de que os integrantes da delegação espanhola, com exceção de Ramón de Miguel, davam claras mostras de não estarem a conseguir seguir aquilo que eu dizia, muito embora eu me esforçasse para falar lentamente e com frases simples (o que, aliás, me dava um trabalho acrescido). E, embora em menor escala, verifiquei que, do nosso lado, a compreensão da língua de Cervantes e dos nossos interlocutores estava também longe de ser total. A situação ameaçava, assim, tornar-se embaraçosa.

Não sei se foi Ramón de Miguel se fui eu quem, num determinado momento, interrompeu a reunião, propondo mudarmos ambos de língua, para que toda a gente entendesse tudo bem. Julgo que teremos passado para o francês. De um momento para o outro, o ambiente mudou, para melhor, com a angústia de alguns visivelmente a atenuar-se, de ambos os lados da mesa. 

Para quem, como todos nós naquela sala, andava pelos corredores comunitários de Bruxelas, onde então o francês e o inglês se equiparavam no uso, e até se misturavam algumas vezes (o chamado “franglais”), foi de grande comodidade recuperar o léxico do “europês”, que fazia parte do nosso dia-a-dia. Mas não deixava de ser estranho que delegações de dois países com línguas muito similares se vissem forçadas a usar um terceiro idioma para se fazerem compreender plenamente.

Hoje, daqui a umas horas, vou estar em Madrid, para reuniões de trabalho. Como acontece, muitas vezes, em todas as empresas multinacionais com as quais trabalho, essas reuniões vão passar-se exclusivamente em inglês, única língua veicular comum a todas as pessoas que vão estar presentes na sala (ou intervenientes por video ou audioconferência). 

Mas há que reconhecer que esta “ditadura” do inglês é terrível! Nos últimos anos, no âmbito de reuniões dessas empresas, já tem sucedido ficarmos, por algum tempo, apenas portugueses na sala de uma reunião. E é bizarro verificar que, em regra, mesmo nessa circunstância, continuamos a falar inglês, porque toda a documentação em que nos apoiamos está exclusivamente escrita nessa língua, pelo que é muito mais fácil continuar a operar com base em conceitos cuja tradução portuguesa seria difícil - e, pior do que isso, completamente desnecessária para a finalidade do nosso trabalho.

Os britânicos estão prestes a sair da União Europeia. Mas, na língua, já nos “colonizaram” para sempre.

domingo, abril 01, 2018

Augusto Maria de Saa

               

Como o tempo passa!

Naquele primeiro dia de abril de 2005, na embaixada de Portugal em Brasília, anunciaram-me uma chamada telefónica de Lisboa, do jornalista Jorge Rodrigues, que dirigia e estava em direto no programa cultural "Ritornello", da Antena 2, nesse dia transmitido simultaneamente pela Rádio Cultura brasileira, uma iniciativa com a amável colaboração do então secretário da Cultura, Pedro Bório.

A questão que me era colocada, enquanto embaixador, tinha alguma delicadeza política.

Segundo Jorge Rodrigues me informava, a editora francesa Gallimard havia decidido publicar, na sua prestigiada coleção "La Pléiade", as obras completas dessa imensa figura que foi Augusto Maria de Saa.

A questão que me era colocada era saber se havia algum conflito, de natureza político-cultural, entre Portugal e o Brasil, que pudesse justificar que, até àquela data, o importante espólio de escrita de Saa não tivesse merecido, em qualquer dos dois países, um tratamento editorial à altura da magnitude da contribuição daquele escritor para a cultura luso-brasileira.

A minha resposta foi perentória: que eu soubesse, não havia a menor conflitualidade, mas também eu desconhecia a estranha razão pela qual uma recolha, exaustiva e organizada, da extensa obra de Saa não havia sido feita, até agora, num dos dois países de língua portuguesa a que ele havia estado fortemente ligado.

Como era comummente sabido, Saa nascera em Portugal em 1854, filho de uma aia de dona Carlota Joaquina e de um padre miguelista. Anos mais tarde, partira para o Brasil em busca de uma melhor vida, mas, curiosamente, viria a perdê-la tragicamente, num regresso a Lisboa, em 1908, no quadro de uma visita fortuita ao seu país natal.

É que Augusto Maria de Saa, para quem não saiba, embora a História teime em iludi-lo, acabou por ser dos cadáveres que ficou no chão da rua do Arsenal, no cenário do regicídio: na realidade, havia sido a rainha dona Amélia, ao afastar com o ramo de flores, que levava na mão, o braço armado do Buiça ou do Costa, quem, inadvertidamente, acabou por apontar a arma fatal à cabeça de Saa, que ali ficou.

Os republicanos tentaram explorar o acontecimento espalhando, imagine-se!, que “a rainha matou o Saa”, tentando transformar este num inesperado herói da sua causa. Ora Augusto Maria de Saa era um monárquico “de carteirinha” (como se diz no Brasil), como toda a investigação biográfica a seu respeito deixou patente. A interessante obra a seu respeito de José Malhão Fernandes “Augusto Maria Saa, a reencarnação de Crabtree e outros ensaios um pouco a propósito” (Edições Eróticas, Santa Maria, Rio Grande do Sul, 1918) confirma isso em pleno.

Toda a magna obra de Saa fora escrita em terras brasileiras e era aí, com naturalidade, que o essencial dos estudos saaianos se desenvolviam. A razão pela qual a "Aguilar", no Brasil, não tinha editado Saa em papel bíblia mantinha-se para mim como uma questão nebulosa. Do mesmo modo, era incapaz de perceber o motivo que levara a nossa "Lello" a nunca empreender, em Portugal, tarefa semelhante, a exemplo do que fizera para Eça, Pessoa ou Saramago. Acaso Saa lhes ficava atrás?

Agora, em prestigiada edição francesa, a obra de Saa passaria a estar disponível ao mundo.  E que obra!

Lembrámos, na conversa, os "Prolegómenos à teoria dinâmica do conflito", um trabalho de ciências políticas e antropológicas, publicado por Saa ao tempo em que dirigia a Gazeta Democrática de Paranoá. Hoje, que se saiba, há apenas uma edição coreana dessa obra.

Igualmente, seria acessível ao grande público francófono o "Olhai a Europa!", opúsculo-manifesto onde, pela primeira vez e premonitoriamente, se refere uma possível "carta constitucional" europeia. 

Também passava a ser consultável o opúsculo “As volteaduras da musicalidade recorrente", texto de teoria musical, tema central de um seminário interdiscipinar realizado pelo professor holandês Schopp Innkop, em Hobbart, na Tasmânia, organizado pelos "Círculos Musicais Heineken", com apoio da prestigiada "Fundação Foster". O pianista Adriano Jordão, profundo conhecedor da obra, teceu sobre ela comentários muito profundos.

Finalmente, "O equilíbrio da ruptura no voltâmetro de potência suspeitada", obra no domínio da física que tinha uma edição em servo-croata, infelizmente esgotada, passaria finalmente a ser de fácil acesso.

Nessa conversa com Jorge Rodrigues falou-se também dos trabalhos sobre a vida e obra de Saa, em curso no Departamento de Linguística do polo experimental de Taguatinga, dependente da Universidade Católica de Abadiânia Leste (UCAL).

Além disso, foi referida a conhecida dedicação do Professor Romário Ibirapuera, da Universidade Espírita de Rondónia, figura incontornável da investigação saaiana, em especial depois da iniciativa da reedição desse marco linguístico, há muito esgotado e há muito objecto de especulação nos alfarrabistas, que era a "Recolha crítica de interjeições tupi", que Saa publicou, em edição do autor, em 1887, com uma tocante dedicatória à sua irmã Efigénia, que em Lisboa padecia de sífilis.

Esse memorável programa da RDP 2 e da Rádio Cultura brasileira contou com outros intervenientes, durante mais de uma hora de recolha de depoimentos.

Um professor universitário brasileiro leu dois inspirados poemas do tempo tropical de Augusto Maria de Saa.

Uma sobrinha bisneta do autor residente na Rondónia deu conta de como a sua memória continua a ser acarinhada na família índia que criou na Amazónia.

Também revelações sobre correspondência entre Saa e Eça de Queiroz, existente nos arquivos de São Petersburgo, foram feitas por Carlos Fino, que as respigara ne investigações em tempos soviéticos.

Figuras conhecidas do meio académico brasileiro sublinharam a explosão crescente de estudos saaianos que então atravessava o Brasil, quiçá (melhor diria, "quissáa"...) premonitória da abertura próxima de um cátedra.

O programa e algumas das revelações nele feitas não deixaram de ter consequências. 

Um conhecido especialista de Eça de Queiroz telefonou de Marrocos a Jorge Rodrigues, alertado para a nova contribuição que seria necessário acolher em futuras recolhas epistolares 

Um outro autor, com obra sobre o Regicídio de 1908, em cujo cenário de tragédia a morte de Saa tem lugar, inquiriu de imediato sobre o tema, consciente da lacuna que, com os factos relatados no programa, se abria na temática. 

Eu próprio fui contactado, pouco tempo depois, por uma muito conhecida jornalista e apresentadora televisiva portuguesa, que pretendia fazer um trabalho sobre essa figura luso-brasileira que, lamentavelmente, "conhecia muito pouco".

Meses mais tarde, ao recordar Augusto Maria de Saa, à mesa da embaixada em Brasília, num jantar oferecido a um intelectual português de visita, recordo bem uma convidada dizer, com ar bem sério e compenetrado: "já li coisas dele, mas é uma tristeza a sua obra ser tão pouco divulgada". E claro que tinha toda a razão!

Nesse repasto tomava assento aquele que, tempos mais tarde, viria a ser o nosso embaixador na Etiópia. E quero deixar-lhe aqui um preito de gratidão pelo facto dele ter tentado, embora sem visível sucesso, mobilizar os círculos intelectuais de Adis Abeba para a necessidade de se fazer uma edição bilingue, etíope-português, do conhecido estudo de Saa sobre "As origens alentejanas do Preste João". A diplomacia não é só economia!

Foi um belo programa radiofónico! Está gravado num CD e deu origem ao importante blogue “Memória de Saa” (www.memoria-de-saa.blogspot.pt). Quem diria que já passaram 13 anos!

Foi no 1° de abril de 2005. À distância, até parece tudo mentira...

sábado, março 31, 2018

Primos em dia de Aleluia


Não tenho uma “teoria geral” sobre primos. Tenho primos de todos os “feitios”. Os que me são muito próximos, que são quase os irmãos que não tive, os que vou vendo de quando em vez e, finalmente, aqueles que perco por muitos anos (“estás mais gordo, pá!”) em cujos abraços caio, a espaços muito longos, quase sempre em funerais ou em ocasiões um pouco menos funestas, como os casamentos. 

Primos tive de quem, em certas fases da vida, estive bastante próximo e que, com o tempo, se foram afastando, quase sempre por nenhuma razão especial, apenas porque sim, porque a geografia da vida não ajudou. E o contrário também é verdade: há primos que “recuperei”, em tempos mais recentes, retomando um contacto que se tinha diluído ou nem sequer densificado muito no passado. E isso foi ótimo. 

Apesar desta tipificação simples, não alimento nenhuma teoria geral sobre as “redes” de primos e, aqui entre nós, não fico muito impressionado quando vejo aquelas fotografias gigantescas de famílias, com tios e muitos primos, em jeito de encontro anual dos detentores do apelido. Eu, que não cultivo nem acho excessiva graça a esses momentos gregários de celebração, vivo muito confortável com o “modelo” de relação com os primos que tenho. E dou-me por feliz quando os encontro. E dou-me por triste quando os perco, mesmo que os já não via há muito. Porque isso significa que os perdi para sempre.

Foi agora o caso. Chegou-me a notícia da morte do filho de uma prima direita da minha mãe. Tenho fotografias de infância com ele, no terraço da “casa das tias”, nas Pedras Salgadas, uma espécie de lugar de culto familiar. Eu ainda mal andava, ele teria um ano ou dois mais. Para a história oral da nossa família ficou uma frase que ele teria dito, guloso, procurando mobilizar a famosa doçaria caseira das tias, usando-me como pretexto: “Este menino crescia bem era com bolos”. Muitos anos mais tarde, completámos juntos o “5° ano do liceu”, que ele veio fazer a Vila Real, depois de alguns percalços académicos, antes de eu começar a ter os meus. E divertimo-nos imenso! Devo-lhe, em meados dos anos 60, uma cuidada “introdução” à rua dos Caldeireiros, no Porto, num fim de tarde com uma agenda impublicável. Depois, a vida levou-nos para destinos diferentes. E nunca mais, nem um simples funeral, nos juntou.

O meu primo que agora se foi tinha um irmão ligeiramente mais velho, um tipo magnífico, “conquistador” nato de pequename, com uma vida errática e algo aventureira, que vim a reencontrar no Brasil, onde, por muitos anos, lutou duro pela existência e com quem, um dia, cruzei memórias de família, por horas perdidas, nas cadeiras da piscina do Copacabana Palace, no Rio, onde o tinha convidado para almoçar. Foi-se também da vida, já há alguns anos. 

Resta agora uma irmã, quase da minha idade, que ontem me deu conta de mais esta tristeza que agora passa a acumular, a somar-se a outros lutos de outra natureza. A vida não tem sido nada fácil para ela.

Para tentar atenuar o peso destas horas, vou agora lembrar-lhe, a ela, uma pequena história. Eu tinha sete anos (sei isso com precisão, porque nesse dia me tinha sido oferecido, por antecipação, o livro da “segunda classe”). Ela, ao que julgo, um ano menos. Tal como hoje, estávamos num sábado de Aleluia. Como à época ocorria, todos os sinos das igrejas de Vila Real tinham tocado em uníssono, logo pela manhã. O dia estava belíssimo e eu estava de cama, com uma maleitazeca qualquer, preso em casa. Os meus pais e os pais dessa minha prima tinham saído por algum tempo e deixaram-na a brincar no meu quarto. A companhia dela não me agradava nada, sei lá bem porquê!, essas idades têm dessas coisas patetas. E foi então que a ela lhe deu, imaginem!, para cantar. Muito alto. E não se calou, não obstante os meus protestos. Até que minha mãe regressou. Ela lembrava muitas vezes que, quando entrou em casa, ouviu logo um berro meu, vindo do quarto: “Tirem-me daqui esta Amália Rodrigues!”. 

Já não te deves lembrar, Bli! Imagino que, por estas horas de grande tristeza para ti, cantar é o que menos te apetecerá. Mas talvez te faça sorrir com esta memória carinhosa. Um beijo para ti.

sexta-feira, março 30, 2018

Carta sincera a um amigo íntimo


Estou contigo. Entendo que merecias ser tratado de outra forma. O modo, ainda que simpático, como o polícia te interpelou, há tempos, soou-nos a estranho. Que diabo! Chamar-te a atenção pelo fumo! Como se isso fosse um grande crime, no meio de uma rua, com a tua idade...

Faz agora precisamente 28 anos que nos encontrámos pela primeira vez, em Londres, estavas recém-chegado da tua Alemanha natal. Durante mais de quatro anos, tivemos um convívio muito agradável, quase quotidiano. Deste mostras de te adaptares bem aos costumes britânicos. Diria mesmo que, embora arraigadamente germânico, te sentias por ali quase em casa.

Mudaste-te depois, ao mesmo tempo que nós, para Portugal. Cuidámos em encontrar lugar para te acolheres e teres uma regular ocupação, embora nem sempre contínua. Em certos períodos, é verdade, convivemos pouco, andávamos mais com outros. 

Havias-te habituado, desde muito cedo, a ir, de forma muito radical, pelos caminhos da esquerda. Cada um é como é, mas essa tua idiossincrasia teimosa, posso agora dizer-te, chegou a preocupar-nos, temendo que pudesse ter consequências nefastas, que te levasse a inconvenientes choques, que não te adaptasses ao novo ambiente por cá prevalecente. Gostes tu ou não, as coisas, em Portugal, ainda são o que são: a direita usufrui de uma prioridade, no dia a dia coletivo, que já vem de longe...

Passaste muitas férias connosco, fizemos imensas viagens em conjunto. Porém, com a nossa vida saltitante, tempos houve em que nos separámos, por longos meses. Mas sempre nos reencontrávamos, pelas nossas idas a Lisboa. E foste uma nossa companhia regular, por esse país fora. Testemunhaste alegrias, estiveste presente em alguns momentos menos bons. Mostraste ser um amigo fiel e seguro. 

Às vezes, encontrávamos-te um pouco em baixo, sem energia, o teu estado preocupava-nos, pregaste-nos alguns sustos, mas, no final, acabavas sempre por te recompor. Não vale a pena esconder que tens alguns persistentes vícios - para além do fumo! -, porque pertences a uma geração marcada pelo excesso do consumismo. Infelizmente - sei que não vais gostar que diga isto, mas aqui vai! -, bebeste sempre um pouco demais. Nunca vimos remédio para isso, gastámos muito para te alimentar esse vício, mas, reconhecerás, sempre tentámos conduzir-te da melhor forma que sabíamos, levar-te por bons caminhos. Convirás que te demos tudo quanto foi necessário para que nada te faltasse, para o teu pleno bem-estar. E sempre te perdoámos os teus excessos, porque gostávamos muito de ti.

Mas a vida é o que é. Ou melhor, o que foi. Hoje, vais deixar-nos, de vez. Podes crer que já estamos a ter muitas saudades tuas.

(Carta aberta ao meu BMW, de 1990, com volante à direita, que, na tarde de hoje, sexta-feira santa do ano da graça de 2018, acaba de partir para o abate)

“Deus não dorme!”


No jornalismo político português, ficou célebre um editorial subscrito por esse homem sério e de bem (assumo a redundância) que se chama Mário Mesquita, intitulado “Deus não dorme!”. Foi a constatação, perante uma derrota eleitoral de Mário Soares, de que alguns erros se pagam caro.

Foi agora divulgada a lista dos árbitros de futebol escolhidos para o Mundial de futebol. Nenhum juíz português figura entre os árbitros designados. Também aqui, pelos vistos, “deus não dorme”. Aleluia, embora o dia só seja amanhã!

A seleção portuguesa está no topo dos resultados à escala internacional. Mas o futebol português, dirigido por uma escumalha de dirigentes de clubes que envergonham o país, com as suas moscambilhas medíocres de influência sobre as classificações e “gestão de carreiras” dos homens do apito, bateu já há muito no fundo. E todo o mundo, lá fora, sabe isso! 

Se não houver um rápido saneamento desse coio de gangsters, nas claques e em sórdidos dirigentes, nos comentadores “cartilhados” a que todos (repito, todos) os media dão uma cobertura cúmplice, incitando javardamente as respetivas hostes, os golos geniais de Ronaldo de nada nos valerão. 

E uma Federação Portuguesa de Futebol que tem, entre os seus diretores, um jogador de que o mundo conhece fotografias a dar um murro na barriga de um árbitro internacional, qualifica-se a si própria. Só comparável à “justiça desportiva”, essa gargalhada que aí anda a armar ao sério, atulhada de juristas nomeados numa “balcanização” e obediência de interesses aos emblemas de estimação.

É muito bem feita esta exclusão da arbitragem portuguesa do Mundial da Rússia, embora alguma gente séria que felizmente existe no mundo do apito acabe por pagar, injustamente, pelos pecadores. Que as mãos não doam à FIFA, já que as autoridades portuguesas se mostram incapazes de pôr um ponto final a esta vergonha - dos emails lampiónicos do Paulo Gonçalves à fruta andrade do Pérola Negra e do “jornalismo” de Francisco J. Marques, passando por essa figura mal educada, saída de uma opereta saloia, e que, para mal dos nossos pecados, dirige hoje o (meu) Sporting. E outros há, claro! 

Portugal não apita na Rússia? Muito bem! Deus não dorme, felizmente!

Eduardo Saraiva (Águaboa)


Numa certa fase da sua vida, Eduardo Saraiva pareceu-se bastante com a imagem contemporânea do músico e cantor Paul Simon. 

Um dia, no Brasil, na Bahia, onde ele integrava uma comitiva a um evento sobre jornalismo, a que eu assistia como embaixador português, cheguei mais cedo ao então novo restaurante “Amado”, onde tínhamos reservado uma mesa para um grupo de participantes nesse encontro. À entrada, “deixei cair” que Paul Simon iria jantar naquela nossa mesa. Senti as pessoas do restaurante excitadas com essa perspetiva, mas, entretido com a minha caipirinha e a conversa com alguém, quase que esqueci a graça. 

Quando Eduardo Saraiva entrou, houve um movimento de empregados, em torno do grupo que ele integrava, que se prolongou por minutos, com gente a sair da sala interior e a deslocar-se à varanda exterior, onde estava a nossa mesa, só para olhar a “vedeta”. A certo ponto, comecei a dar conta que o Eduardo estava a começar a ficar irritado com a estranha atenção que sobre ele convergia. E não estava a perceber nada! Achei ser meu dever esclarecer o assunto, entre gargalhadas de todos os presentes. De todos, não! Para minha surpresa, o Eduardo pareceu não ter apreciado muito a “partida”. Embora sem “hard feelings”.

Lembrei-lhe isto há cerca de três anos, numa troca de correspondência que tivémos, quando me convidou para escrever um texto para a coletânea “Taras de Luanda”, que coordenou. Comecei por aceitar o convite mas, depois, dei-me conta de que o meu estilo de escrita era menos compatível com o projeto. E, embora a contra-gosto, desisti, o que, em mim, é raro. O Eduardo aceitou, com “fair play”, a minha atitude.

Desconhecia que o Eduardo Saraiva estivesse doente. Conheci-o nos anos 90, a trabalhar com o meu bom amigo José Lello, que também já se foi. Pareceu-me sempre ter da vida uma leitura lúdica, com um grau de saudável loucura, que me fazia apreciar o seu estilo. 

Lamento a sua desaparição, que agora soube.

A Oeste algo de novo?



Os fantasmas dão muito jeito, quando se quer assustar alguém. Mas devemos denunciar que não passam disso, de fantasmas. A decisão portuguesa de não expulsar diplomatas russos, em simultaneidade com tal atitude por parte de alguns parceiros da UE e da NATO, está a suscitar alguma polémica interna, naturalmente explorada externamente. A pergunta pode fazer-se: mudou alguma coisa a Oeste?

Entendamo-nos, no essencial. A Rússia de Putin quebrou já, há muito, o laço de confiança que, no termo da Guerra Fria, pareceu poder criar ao mundo ocidental uma janela de diálogo sustentável com o principal Estado sucessor da União Soviética. Alguns erros deste lado poderão ter contribuído para o que se passou. Mas a responsabilidade do atual estado de coisas é esmagadoramente russa, deriva da leitura questionante de equilíbrios que Moscovo havia subscrito e que agora não cumpre, do seu desprezo contumaz pelo Direito Internacional, do autoritarismo de um regime que vive mal com o dissenso e tem um histórico de relação violenta com as vozes opositoras que mais do que legitima a plausibilidade da sua culpa no ato bárbaro agora cometido e que suscita toda esta reação.

Nos locais próprios, o nosso país deixou clara a sua plena solidariedade com o Reino Unido, o seu profundo repúdio pelo uso de métodos que colocam quem os pratica à margem da convivência internacional civilizada. 

Portugal não recebe lições de ninguém no tocante à expressão prática de solidariedade em todos os casos em que interesses tidos por essenciais à paz e segurança internacionais estão em causa. Somos fiéis e reconhecidos parceiros na NATO, temos um histórico inatacável de assunção de responsabilidade em cenários de conflito, para cuja diluição demos contribuições bem acima do que nos seria exigível, continuamos a cumprir escrupulosamente as sanções impostas à Rússia, por virtude do seu comportamento na Ucrânia. 

Mas Portugal é um Estado soberano, dono das suas decisões e, muito em particular, do tempo para as tomar. Não vamos a reboque de ninguém, nem nos deixamos condicionar pela síndroma do “Maria vai com as outras”, que tanto parece excitar alguns setores caseiros - curiosamente, os mesmos que, em 2003, conduziram o país à vergonha das Lajes, atrás desses gambozinos que se chamavam “armas de destruição maciça”. 

Defendemos a preeminência da ação através dos fóruns de expressão política coletiva, como a NATO e UE, porque o multilateralismo é o espaço operativo que consideramos dever privilegiar, porque é o terreno essencial da legitimidade à escala global. Mas, como é óbvio, Portugal nunca fechou as portas à assunção de outras atitudes no futuro, porque os limites do Direito Internacional são as únicas fronteiras de ação que devem limitar uma soberania.

Olhando o modo como o governo português decidiu proceder neste caso, devo dizer que me sinto perfeitamente confortável com o sentido de medida assumido pela nossa diplomacia, posição, aliás, em tudo conforme àquela que o presidente da República parece também ter. E tenho plena confiança em que António Costa e Augusto Santos Silva saberão pilotar em nosso nome este processo, sempre com o objetivo de evitar escaladas de tensão e manter abertas as vias do diálogo, cumprindo aquela que tem sido a nossa vocação em democracia. Não, não há nada de novo a Oeste.

(Artigo publicado na edição de hoje do “Expresso”)

O garfo do Tavares


No final dos anos 70, numa visita de trabalho a Jerusalem, permiti-me comentários de analista sobre o conflito israelo-palestino. Um diplomata local retorquiu-me: “Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade”. Poucos anos depois, numa ida turística a Berlim, ainda em tempo de Guerra Fria, mandei “bitaites” impressionistas sobre a realidade que se projetava no muro. Um berlinense ocidental, com muita memória sofrida, disse-me uma frase idêntica. Um dia, em 2003, em Seul, num almoço com Ban Ki Moon, que me parecia ainda longe de sonhar ser secretário-geral da ONU, fiz juízos de valor sobre as razões no conflito coreano. E lá surgiu de novo a tal máxima. Há dois anos, numa visita à Estónia, procurei desdramatizar, numa conversa com um académico local, a tensão com a Rússia: “Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade”.

Não sei que “exatidão” existia na visão comprometida de todos aqueles meus interlocutores – e tive conversas similares em outros cenários de conflito. Uma coisa tenho por certa: se acaso tivesse falado com quem estava do outro lado da barreira, a narrativa seria contrastante, mas a frase seria porventura a mesma. A cultura emocional modela as razões e, por definição, embota a racionalidade. Mas, na teoria da negociação, também se aprende que as emoções são parte integrante da economia dos conflitos, que nunca se resolvem sem as ter em conta. Por esse motivo, a objetividade do observador distanciado é, as mais das vezes, uma virtude que serve de muito pouco.

Vem isto a talhe de foice, imaginem!, a propósito do Brasil. Há uns tempos, um grande amigo brasileiro, de visita a Lisboa, quis jantar comigo no restaurante Tavares. Perdi o amor à bolsa e verguei-me à memória “ecista” (no Brasil, não há “queirosianos”) do local, que também dizia muito ao meu parceiro de refeição. E até lhe apontei a mesa em que tivera lugar uma famosa conversa, embora sem consequências históricas evidentes, entre o antigo presidente Juscelino Kubitschek e o plumitivo conservador Carlos Lacerda. O nosso “papo” ia bom até ao momento em que fiz vir à baila o nome de Lula. O meu amigo tinha sentimentos muito fortes sobre aquela figura. Vi a cara dele ficar encarnada – e não era da pimenta numa qualquer iguaria, nem do calor da sala. Olhando-lhe a mão, vi-o torcer lentamente, com silenciosa fúria, um garfo, até o utensílio ficar em ângulo reto. No instante, percebi que, também ele, me queria dizer, com a sua raiva, que eu não tinha direito a ter uma opinião sobre uma realidade a que não pertencia. Pelo menos, uma opinião diferente da dele...

(Artigo publicado na edição de hoje do “Jornal de Notícias”)

quinta-feira, março 29, 2018

Cavaco em Peniche


Um antigo colaborador de Aníbal Cavaco Silva escreveu-me esta manhã, notando não ter sido eu exato, num artigo que publiquei, quanto à ausência de visitas do anterior presidente a algum do locais da repressão da ditadura. E assinalou uma visita que Cavaco Silva fez ao forte de Peniche, em 2010.

A pessoa que me escreveu merece-me, de há muito, grande consideração pessoal. E, por isso, faço aqui o meu “mea culpa”: Cavaco foi, de facto, a Peniche, acompanhado do presidente da Câmara local e de um governante socialista, avaliar os projetos de obras de reconversão do forte, como a imagem ilustra. 

Mas vou mais longe, coisa que ninguém fez até hoje, que eu tivesse notado. Vou transcrever, pela primeira vez, as palavras de Cavaco nessa visita. Elas aqui ficam, para a posteridade: 

É com alguma emoção que, como chefe de Estado do Portugal democrático, visito da Fortaleza de Peniche. Por aqui, pela prisão política que, por décadas, existou neste forte, passaram centenas de pessoas que sacrificaram a sua vida na luta contra a ditadura que, por quase meio século, se abateu tristemente sobre o nosso país. Um regime que perseguiu, prendeu e torturou, que conduziu Portugal a três trágicas guerras coloniais. Daqui, desta prisão, fugiram uma noite Álvaro Cunhal e alguns dos seus companheiros políticos, numa ação que ficou nos anais da luta da oposição ao Estado Novo. É a esses portugueses, de todas as convições políticas - anarquistas, comunistas, socialistas ou simples democratas e republicanos - que o chefe de Estado quer hoje deixar aqui uma palavra de gratidão, pelo seu honroso sacrifício, como construtores de uma liberdade que chegou nesse “dia inicial inteiro e límpido, onde emergimos da noite e do silêncio”, como Sofia de Mello Breyner cantou a data fundadora que foi o 25 de abril”.

A imprensa, preconceituosa como sempre, nada disse sobre estas palavras de Cavaco. Nenhum dos seus acompanhantes ao forte de Peniche as notou. Cavaco, ao que consta, terá mesmo ficado surpreendido ao ouvi-las sair da sua própria boca. 

Mas eu, que quero sempre a História escrita com o rigor de um José Hermano Saraiva, aqui as deixo, na sua sólida inteireza.

Embora ainda me pergunte se o primeiro dia de abril não seria, talvez, a data mais adequada para as evocar. É que ainda estamos nos “idos de março”.

quarta-feira, março 28, 2018

“Cumué?”


No regresso pascal à cidade de origem, os encontros de rua com gente da minha geração têm rituais sedimentados, por décadas. A anteceder o abraço forte e franco, surge quase sempre a frase: “Então, cá por cima?” ou, numa variante, “Então, vieste à Bila?” (com “b”, claro). Alguns, menos crentes de que a minha visita se possa fazer sem sacrifício das “delícias” da capital, acrescentam ainda: “Tem que ser, não é?”. 

Ontem, num passeio pela rua Direita, a antiga artéria principal da cidade, hoje transformada num cemitério ou quase de lojas comerciais, mas que tenho por ritual percorrer sempre que venho à cidade, fui surpreendido por outra expressão, que já não ouvia há alguns anos, mas que fez escola por muito tempo: “Como é?” (”cumué?”). É uma pergunta que não exige resposta, equivalente a um “Atão?”. 

Fez-me muito bem ouvir isto. E deu-me uma ideia. Um destes dias, em Lisboa, vou testar a expressão à chegada a uma reunião que tenha grande formalidade. Sempre quero ver qual será a cara de alguns fabianos...

O Bragança


Não era um homem muito simpático, diga-se. Vendia jornais, revistas, tabaco e meias-folhas de papel selado, nesta loja, no centro de Vila Real. Tinha uma empregada muito pequenina, faladora e agradável, que compensava, em atitude, o défice de comportamento afetivo do patrão. 

Mas estou a ser um pouco injusto: o Bragança (o “senhor Bragança”, como eu naturalmente o chamava) tratava-me bem. Durante anos, fui o “menino”. Depois, já eu matulão, deixei por um tempo de ter designação. Com a ida para a universidade, passei a “senhor Costa”. E assim fiquei, que me lembre, até entrar no governo. Uma tarde, numa visita a Vila Real, o Bragança recebeu-me com um raro sorriso rasgado: “Tenho aqui uma entrevista que o senhor doutor deu ao Notícias”. E mostrou-me duas folhas do JN, já com meses, que amavelmente guardara. O seu já então episódico cliente vinha nos jornais. E subira um furo mais na designação.

Na adolescência, comprava por lá, religiosamente, “A Bola”, então a minha bíblia desportiva trissemanal. No final dos anos 60, nas férias da universidade, o Bragança guardava-me, a cada semana, “A Vida Mundial” e um dos três exemplares do “Diário de Lisboa” do dia anterior que, ao final da manhã, chegavam à cidade, e que eu ia logo devorar para o café. Mais tarde, reservava-me o “Expresso” e “O Jornal”.

Com o Fernando “Choco” e o Albertino “dos jornais”, muito antes do Pelinhos engraxador (e comunista) na Avenida, o Bragança era um dos grandes fornecedores de imprensa à cidade. 

O local era também um lugar de tertúlia, como o eram a Farmácia Barreira, na rua Direita, e a relojoaria do Salgueiro, na rua Central. Nas conversas no Bragança lembro-me que preponderava o Dr. Elísio Neves, oftalmologista, bom amigo do meu pai, no triângulo do seu trânsito da Pompeia, o café em frente, para o consultório, sobre a pastelaria Gomes. 

Filho de um velho “chofér” de praça que recordo com o boné preto da profissão, o Bragança, que sempre estava elegante, de fato e gravata, era casado com uma senhora loira, com um ar muito arranjado, redonda de carnes, que mantinha uma loja de cabeleireiro de senhoras no piso superior, com entrada pela tabacaria. Estava longe de ser o cabeleireiro “top” da cidade, mas a localização era imbatível. O Bragança tinha fama de ser um homem rico, presumo que não pelos jornais que vendia, mas pelos edifícios de que era proprietário ou que herdara, alguns “na marginal”. 

Tenho ainda a imagem do Bragança e da mulher, ambos de costas muito direitas, de braço dado, a caminharem, a passo lento, ao final da tarde, com as lojas a fechar e as luzes a abrir, pelas ruas já quase desertas da cidade, a caminho de casa, cruzando-se comigo, a sair do bilhar do Excelsior e a dizer-lhe: “Boa noite, senhor Bragança”.

Por que é que agora me lembrei disto? Passei pela tabacaria do Bragança, ontem à tarde. Está fechada, no estado que a fotografia mostra, aliás não muito diferente de imensas outras casas no centro histórico de Vila Real. É um ambiente algo desolador, mas bem comum a muitas terras portuguesas.

Verdade seja que, nos últimos anos, já depois do próprio Bragança ter desaparecido da circulação, o interior da loja, que noutros tempos fora ordenada e era um espaço bastante decente, apresentava o aspeto de um verdadeiro caos: a imprensa amontova-se no balcão e pelo chão. Algumas revistas velhas, amarelecidas, jaziam espalhadas a esmo pela indescritível montra. 

O anúncio da morte a prazo da tabacaria começou a ser dado pelo caráter errático da sua abertura. Presumia-se que a loja estava aberta se, no exterior, surgia pendurada uma régua de madeira com molas, de onde pingavam algumas revistas já sebentas e datadas, incompráveis, naquele estado. 

Um dia, sei lá quando, a loja não abriu mais. A cidade nem se terá dado conta, outros locais de venda de jornais há muito a substituíam. Acabou “o Bragança”, a vida continuou. 

Só a mim passou pela cabeça recordá-lo. Logo eu, que o não achava muito simpático. Mas é talvez, subliminarmente, a maneira de me penitenciar pela crueldade da minha memória. É, deve ser isso.

Arnaud Beltrame


Não me sentiria bem se não deixasse aqui uma fotografia, em jeito de singela homenagem, a alguém que soube dar um exemplo limite do sentido de dever público e que foi capaz de transformar um gesto espontâneo e extremo de solidariedade num raro exemplo cívico.

terça-feira, março 27, 2018

Coimbra B


O comboio acaba de fazer uma breve paragem em Coimbra B, no caminho ferroviário entre Lisboa e o Porto. Para quem não saiba, convém esclarecer que Coimbra tem uma estação no centro da cidade, designada por Coimbra A, de onde se toma uma ligação para Coimbra B. É, daqui, acede-se “ao mundo”...

(Historicamente, era em Coimbra B que os “caloiros”, arribados à universidade da cidade, eram pela primeira vez chamados de “doutor”, pelos carregadores de bagagem, à espera de uma gorgeta pelo “elogio”, que inchava esses incautos novatos.)

Mas hoje trago Coimbra B à baila por outra razão: uma anedota que se contava no meu tempo de liceu.

Alguém de Coimbra quis, um dia, ir de comboio até Qianjin, uma cidade no norte da China. Dirigiu-se à bilheteira da estação de Coimbra A, bem no centro da cidade, e pediu um bilhete. O homem do guichet respondeu-lhe: “Para isso, só em Coimbra B. Eles é que têm as ligações internacionais”. 

Chegado a Coimbra B, a resposta não foi muito mais promissora: “Só na Pampilhosa, meu amigo. Lá é que os comboios ligam a Espanha. Ali é que o podem informar”. 

Na Pampilhosa, de facto, as coisas começaram a compor-se, ainda que não em definitivo: “Vendemos-lhe um bilhete para Paris. Depois, eles lá o encaminham para a China”.

E o homem assim continuou. De Paris foi mandado para Moscovo, dali para Pequim e um dia lá chegou a Qianjin. E por ali ficou o tempo que tinha de ficar, sabe-se lá bem a fazer o quê.

Um dia, o coimbrão decidiu regressar. Dirigiu-se então ao guichet da estação ferroviária de Qianjin. A fila de pessoas era grande (tudo o que mete pessoas, na China, como se sabe, é “em grande”). Esperou pela sua vez e, quando esta chegou, pediu um bilhete para Coimbra, que explicou ser uma cidade em Portugal. Contava-se - mas “vendo-a como ma venderam”, como soe dizer-se - que o chinês, com um ar impaciente, lhe perguntou: “Mas o meu amigo acha que aqui não temos mais nada que fazer? Seja mais preciso, homem! Quer um bilhete para Coimbra A ou para Coimbra B?”

Como disse, passei há minutos por Coimbra B. Lembrei-me do homem e da precisão dos chineses. E acreditem: por este andar, um destes dias, vão chegar “palettes” de chineses a Coimbra. A questão persiste: A ou B?

Lula


É óbvio que Lula vai ser preso. Até pode haver razões legais sólidas para isso e, se as houver, que a justiça se faça. Não tenho conhecimento suficiente do processo para me pronunciar, num sentido ou noutro. Acho contudo infame o processo mediático-político que está hoje em curso no Brasil, pretendendo pressionar a justiça, tentando criar um ambiente na opinião pública para inviabilizar qualquer hipótese de uma outra decisão que não seja a prisão de Lula.

Diplomatas & Russos


Não tenho tempo para escrever muito. Só dá para estes “5 pontos”, como o Amadeu Lopes Sabino fazia na sua saudosa coluna no “Diário de Lisboa” (quem se lembra?):

1. O governo português esteve muito bem ao não fazer parte do grupo de países que anunciou ir expulsar diplomatas russos. Portugal teve atitude idêntica a 10 países da NATO e 13 da UE. As expulsões de diplomatas que estão no exercício de funções bilaterais fazem-se nos contextos bilaterais próprios, tanto mais que não se gerou uma posição conjugada no âmbito da UE, como a que, no passado e noutro contexto, levou à fixação de sanções comuns contra a Rússia.

2. Dito isto, é evidente que o regime de Putin não merece o menor benefício da dúvida, no tocante à plausibilidade de ter mandado cometer o crime. O modo como na Rússia são liquidados ou intimidados os adversários de Putin, naquele sistema que hoje é já um “genérico” de democracia, legitima fundadas suspeitas.

3. Acho patético como alguma esquerda lusitana (parte da qual nem sequer foi, no passado, pró-soviética) assume hoje a Rússia - autoritária, desrespeitadora do Direito Internacional, com escasso apreço pelas minorias e pelos Direitos Humanos - como o seu “campeão” na ordem internacional, apenas movida por um anti-americanismo primário. Tudo à Rússia é perdoado, Putin tem sempre “razão” - na Síria, na Geórgia, na Ucrânia.

4. Ora a Rússia, as vezes, tem de facto razão, como o teve na inaceitável provocação ocidental que levou à desestabilização da Ucrânia, como o tem quando reage às provocações insensatas da NATO nas suas fronteiras.

5. Pena é que essa razão seja titulada por uma figura política que faz da arrogância (também há por cá quem goste do estilo) e da jactância jingoísta a sua imagem de marca. Pode não se gostar de Trump sem ter de se gostar (mais) de Putin.

(Já adivinho os adeptos dos pontos 1 e 4 a não gostarem dos pontos 2, 3 e 5 - e vice-versa. Este é um triste mundo a-preto-e-branco, o das redes sociais, onde o iraniano Maniqueu é rei e senhor)

segunda-feira, março 26, 2018

Evocações


Não guardo papéis e, muito menos, comunicações oficiais. Tenho pena, no entanto, de não ter ficado com fotocópia de um determinado “telegrama” que enviei de Londres, ao tempo em que era “encarregado de negócios”, na ausência do embaixador. Mas ele estará nos arquivos da embaixada e do MNE.

O tema era Gibraltar e o eterno problema que o rochedo constitui para as relações do Reino Unido com a Espanha, que reivindica a posse do território. O governo de Londres instituiu, desde o final dos anos 60, um dispositivo legal que condiciona qualquer evolução do estatuto de Gibraltar à decisão maioritária dos gibraltinos. Como estes, à evidência, preferem manter-se sob a tutela britânica a fundirem-se com a Espanha, o impasse está garantido.

Num dia dos anos 90, o “chief minister” de Gilbraltar, o trabalhista Joe Bossano, foi notícia em Londres, por umas quaisquer declarações, fortemente anti-espanholas. Como a presidência portuguesa das instituições comunitárias de 1992 iria ter esse tema na sua agenda, decidi referir o incidente numa comunicação a Lisboa.

Nesse tempo, os “telegramas” seguiam por fax. Escrevendo nós o texto em computador, dentro de um modelo pré-arranjado, sabíamos exatamente o formato em que Lisboa iria ler os nossos textos e em que página exata ficaria cada linha que escrevêssemos. O meu telegrama tinha uma primeira página de texto e, depois, apenas umas escassas linhas na segunda página. Eu medira tudo ao milímetro e já verão porquê.

Na página principal, descrevi a questão que o “chief minister” de Gibraltar tinha suscitado. Depois, aproveitei para traçar um perfil do político gibraltino. Nas última parte dessa primeira página, devo ter escrito qualquer coisa como isto: “Joe Bossano é um populista, quase demagogo, de verbo fácil, de quem localmente é arriscado discordar. Detém um desmesurado poder sobre o serviço público de Gibraltar, com fama e proveito de ser praticamente o “dono” da região. Tem, além disso, uma palavra muitas vezes cáustica para os adversários, agressiva para a comunicação social que não lhe agrada e, quando lhe apraz, o seu discurso volta-se com facilidade contra o país de que a região depende, bem como contra os políticos da sua capital. Com este perfil, V. Exa. não estranhará, com certeza, que esta mercurial figura, autoritária, arrogante e de uma proverbial rudeza, nos convoque imediatamente à memória um outro líder político bem conhecido, de uma ilha dirigida, anos e anos, sob forte arbítrio pessoal, num estilo desafiador dos próprios equilíbrios democráticos”.

A primeira página terminava aqui. Um amigo, no Ministério, em Lisboa, disse-me, que sentiu um frémito pela espinha, no dia seguinte, ao ler este texto, e pensou para consigo: “Este tipo endoideceu! Fazer estas insinuações, com o governo PSD no poder, é suicida!” 

E lá foi, já em pânico, ler a segunda e última página do “telegrama”. Tinha poucas linhas e dizia qualquer coisa como isto: “Refiro-me naturalmente ao antigo líder de Malta, Don Mintoff, cujo estilo autoritário e o modo atribiliário de governo se constituiu num fator de tensão permanente, na gestão local e na agressividade constante perante Londres, que deu origem a crises recorrentes nas relações com os governos britânicos”. E fechava o texto com a minha assinatura. E o meu amigo logo reduziu a taquicardia que o tinha assaltado...

Dizem-me que o meu telegrama foi lido, com algum gozo, em vários setores do MNE. E não querem ver que, entre algumas pessoas, naturalmente com óbvia má fé, houve mesmo quem pensasse que, no que eu havia escrito na primeira página, podia haver alguma insinuação sobre a figura de um lider regional português?! Há imaginações delirantes!

domingo, março 25, 2018

Manuel Reis


Cruzei-me com Manuel Reis duas ou três vezes na vida, a última das quais, creio, há mais de uma década. Mas, embora conhecendo-o pessoalmente muito mal, acho da maior justiça destacar o papel decisivo que teve na modernidade de Lisboa. Sem Manuel Reis, uma certa Lisboa acabaria por acontecer na mesma, mas não era a mesma coisa.

Máxima


“Um jornal de véspera só serve para embrulhar peixe” 

(máxima do jornalismo, antes de surgir a ASAE)

“Expresso”


Vou, daqui a pouco, ler o “Expresso”, que ontem foi posto à venda, mas que só hoje adquiri. 

Leio o jornal desde o número 1, em 1973. Em alguns sábados da vida, andei dezenas de quilómetros para comprar o “Expresso”.

Que se passou? O que é que matou a urgência da leitura do “Expresso”? Por que será que tenho a (ainda) inconfessada sensação de que, se perdesse um número do jornal, isso não teria a menor importância? Fui eu quem mudou ou foi o jornal?

Em baixa

Ao ver o Alemanha-Espanha, ainda que “a feijões”, dou comigo a rever “em baixa” as expetativas, que já não eram muito elevadas, sobre as nossas hipóteses no próximo mundial de futebol na Rússia.

Catalunha

Não tenho a menor simpatia pela causa da independência catalã. Mas indo por este caminho, a Espanha vai acabar por criar um bando de mártires e, a prazo, vai pagar um preço caro. Um ato de amnistia daria força moral a Madrid, mas com o rei que não tem tudo tenderá a correr mal.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...