sexta-feira, agosto 18, 2017

O provedor


Não vale a pena iludirmo-nos: a questão dos incêndios florestais é muito séria. Tanto pelos imensos danos materiais provocados como pelo descrédito induzido na imagem do Estado.

Por muito que alguns, na esfera política, possam não querer aceitar, é uma evidência que está criada, na sociedade portuguesa, a ideia de que a administração do Estado é hoje impotente para gerir, com aceitável eficácia, esta situação, limitando-se a reagir, perante os factos com que se vê confrontada, numa penosa e quase patética navegação à vista. 

O executivo faz o que pode: tenta utilizar da melhor forma os meios ao seu dispor, mas já terá percebido que, a repetirem-se, no futuro, conjugações climatéricas negativas, o que não parece improvável, a tragédia vai reeditar-se. No meio de tudo isto, a fé na eficácia tempestiva das alterações legislativas acaba por ser uma atitude quase ridícula. Não que o "pacote florestal" não seja necessário, mas é mais do que óbvio que a sua completa implementação vai demorar um imenso tempo que o país não tem. E, até lá, é preciso agir com medidas urgentes e excecionais, a montante de uma nova crise, com as autarquias e com o governo central na primeira linha da prevenção, aproveitando o que a declaração de calamidade pública agora facilita.

A mais miserável dimensão desta história é a sua exploração político-partidária. Será que alguém, minimamente honesto, acredita que, se acaso a direita estivesse no poder, a Proteção Civil teria sido mais eficaz, o Siresp teria funcionado melhor, outro modelo de responsabilização funcional e pessoal teria levado a resultados diferentes? 

Sejamos claros: PS ou PSD/CDS (PCP ou BE quase não contam aqui) são as duas faces da mesma moeda - onde se misturam o aparelhismo e o compadrio político, a instrumentalização partidária dos bombeiros, uma maior ou menor complacência face às negociatas em torno do material de combate aos incêndios. Ter a esquerda ou a direita no poder, nesta questão dos incêndios é, como dizem os franceses, "bonnet blanc/blanc bonnet". É absolutamente indiferente. Toda a gente sabe isto, de António Costa a Passos Coelho, embora todos façam de conta que não.

Contudo, os incêndios deste ano não foram iguais aos outros. Na dimensão, nas tragédias, no trauma coletivo que provocaram. O Estado, e a confiança no Estado, não saem intocados disto. É aqui que, inevitavelmente, entra o papel do chefe desse Estado, pelo crédito afetivo que hoje o responsabiliza perante o país. No tradicional Inverno do nosso esquecimento que aí vem, compete-lhe ser o provedor do sentimento nacional de urgência e desespero e não permitir que a espuma dos dias seguintes abafe a necessidade de atuar. Já. 

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 17, 2017

Eça


Há 117 anos, passados ontem, José Maria Eça de Queiroz, escritor (e também diplomata), morria em Neuilly.

Recordemo-lo, em "A correspondência de Fradique Mendes", a falar do calor. Como o que aí anda..

"Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezas paralelas, em calão teimoso: "é de rachar!", "está de ananazes!", "derrete os untos!"... "

quarta-feira, agosto 16, 2017

Um futuro negro


Às vezes, pergunto-me como terei iniciado a minha colaboração em "A Voz de Trás-os-Montes", no final dos anos 60 (creio que em 1967). Lembro-me de ter começado por escrevinhar por lá uns textos sobre desporto, antes de ensaiar algumas coisas ridiculamente rebuscadas sobre política interna, para, finalmente, me fixar, nas questões internacionais.

Vila Real, por essa época, tinha três jornais. "A Voz de Trás-os-Montes" era o mais popular, com forte presença na comunidade expatriada, em especial no Brasil. Havia também "O Vilarealense", uma folha sem imagens, com uma "mancha" a lembrar os jornais do início do século, numa linguagem adjetivada e algo gongórica, onde se anunciava que o senhor fulano de tal "acompanhado da sua excelentíssima família, partiu para as praias do Minho no gozo de merecida vilegiatura anual". E, finalmente, a "Ordem Nova", propriedade do partido único, a União Nacional, jornal cujo nome denunciava a orientação oficiosa mas que, por algum tempo, teve a esperteza de criar uma página cultural que alargou simbolicamente a sua audiência. "O Vilarealense" e a "Ordem Nova" já desapareceram e a VTM está hoje num novo ciclo.

Foi o padre Henrique Maria dos Santos, diretor de "A Voz de Trás-os-Montes", quem suscitou ou aceitou a minha colaboração (não me lembro se a sugestão foi dele ou se fui eu que o procurei, mas esta última hipótese é bem mais plausível). De quando em vez, e a partir de certa altura com forte regularidade, eu enviava textos sobre temas internacionais (embora não tivesse então o menor interesse pela diplomacia) que, com grande gosto, via depois surgir impressos no periódico. Cheguei mesmo a ter uma "caixa" própria, em jeito de colunista "a sério".

Vivia por essa altura em Lisboa. Numa ocasião, de passagem por Vila Real, o padre Henrique comentou, embora sem grande dramatismo, que alguns dos meus artigos eram "um pouco avançados", expressão com que, à época, se designavam as derivas esquerdistas. De facto, eu notava que certos textos "não saíam", mas isso não me impedia de insistir, tentando publicar o que me apetecia. 

Um dia, o meu pai passava pela "Rua Direita", a artéria central da Vila Real, quando foi abordado pelo capitão Medeiros, o censor da imprensa da cidade.

"Temos um problema com o seu filho!" 

O meu pai, por um instante, temeu que fosse alguma coisa "política", sendo o militar um dos "braços" do regime na cidade. E, de facto, era, embora de escassa gravidade, felizmente.

"O seu rapaz anda a escrever umas coisas no jornal que já me causaram problemas. Eu tinha avisado o padre Henrique, mas agora vou ter de cortar todos os artigos que ele vier a escrever."

O censor - ou melhor, o examinador, porque a "Comissão de Censura" tinha passado a ser designada "Exame prévio", na onomástica suavizante do marcelismo - disse ter sido "chamado à pedra" pelo facto de ter deixado passar, num texto, uma referência ao "filósofo da Europa oriental, Vladimir Ilyich Ulianov". Ora o bom do Medeiros "já não se lembrava" (sic) que esse era o verdadeiro nome de Lenine e "Lisboa" tinha-o repreendido por isso. Mas "o pior foi na semana passada"...

O meu pai estava divertido. E o Medeiros continuou a explicar:

"O malandro do seu filho escreveu um artigo sobre a Rodésia. No fim, escreveu que, no seu entender, "a Rodésia vai ter um futuro negro". Eu deixei publicar aquilo, convencido que ele se estava a referir aos problemas do Ian Smith e ao provável agravamento da situação por lá. Até nem me pareceu mal visto! Só que o pessoal "lá de baixo", de Lisboa, que é "fino como um alho", percebeu que o que ele queria dizer é que a Rodésia vai acabar na mão dos pretos. Ora eu não posso continuar a ter problemas destes e já disse ao padre Henrique que, a partir de agora, os artigos do seu rapaz "não passam". O senhor compreende, não é?"

O meu pai sorriu e disse ao capitão Medeiros que o assunto, nem para ele nem com certeza para mim, tinha a menor importância. E o militar na reserva, feito censor no ativo, lá continuou o seu caminho. Só o 25 de abril lhe iria retirar a avença.

terça-feira, agosto 15, 2017

... e o padre mudou de freguesia


Ser padre, nos anos 60, em Vila Real, era uma condição que induzia algum prestígio e atenção social. A cidade, se bem me lembro, tinha então bastantes figuras religiosas. Porém, na hierarquia psicológica da urbe, havia padres mais reverenciados, ao lado de outros tidos como um pouco mais "ligeiros", no apreço coletivo. Aquele a que me refiro estava no meio da "tabela"...

Era um homem bem-falante, de muito boa-figura, na casa dos quarenta anos. Juntava-se, pelos finais de tarde, a alguns profissionais públicos que, saídos dos empregos, em dias de bom tempo, se passeavam, até cerca da hora de jantar, com calma e à conversa, na "golden mile" que vai da Avenida Carvalho Araújo ao chamado Cabo da Vila (leia-se "bila"), onde o percurso se invertia.

O nosso homem, sempre rigorosamente de negro e de cabeção, foi ganhando espaço num desses grupos, constituído por figuras com algum relevo local. Tinha uma voz timbrada, conversa interessante, um cabelo negro sempre bem penteado. E um olhar muito percutante. Fixava as mulheres com quem se cruzava com um esgar insinuante, obrigando algumas a baixar os olhos, talvez despertando ideias noutras. 

As histórias das suas "conquistas" começaram entretanto a surgir pela cidade. De início, eram apenas inconfirmados boatos. A partir de certa altura, porém, eram já densificadas por confirmações cruzadas, em especial pela regularidade com que o seu carro era visto num lugar onde vivia uma senhora cujo marido tinha longas e convenientes ausências. 

Alguns dos colegas de passeio do sacerdote começaram a sentir-se incomodados, durante esses percursos vespertinos, não tanto pelas aventuras extra-altar do homem, mas ao dar-se conta de estarem a ser comparsas dessas miradas insistentes, que tinham às vezes como alvo senhoras conhecidas. E, aos poucos, certos companheiros foram-se afastando do grupo. Outros, menos sensíveis ou desatentos, permaneciam com ele nos passeios. 

A meio do clássico percurso, o sacerdote forçava, com regularidade, uma pausa. Era em frente ao Café Excelsior, precisamente na sua esquina. Verdade seja que se tratava de um lugar "estratégico". Dali se observava, em frente, toda a clássica e envidraçada Pastelaria Rosas. De um lado, estava uma "paisagem" comercial clássica, do Teixeira Pelado ao Santoalha, do Rafael ao Zeca Martins ou ao Euclides. Do outro, obtinha-se uma perspetiva soberba sobre toda a "rua central", com a belíssima "capela nova" ao fundo (que aqui fica na imagem).

Alguns dos companheiros dos passeios viriam, com o tempo, a concluir que não era necessariamente a vista da igreja da escola de Nasoni que motivava o sacerdote a suspender o "trottoir" coletivo. Era apenas o surgimento, numa varanda próxima, de uma das mais belas senhoras da cidade. À sua vista, o padre estacava sempre habilmente o grupo e passava alguns minutos a deitar olhares langorosos à dama. Esta acabava por se recolher, quando percebia estar a ser colocada sob a mirada concupiscente e pouco discreta da figura do clero.

A cena repetiu-se algumas vezes. Por debaixo da varanda, num estabelecimento comercial de que era proprietário, trabalhava o marido da senhora. Um dia, avisado pela esposa do incómodo regular que a esta era provocado, o homem saiu da loja, irrompeu pelo meio do grupo e espetou um par de valentes chapadas no padre sedutor, acompanhado de um sonoro: "Vá lá galar as beatas da sua freguesia, seu cretino!"

Os passeios entre a avenida e o "Cabo da Bila" passaram, a partir dessa tarde, a não ter assistência religiosa...


(Ao ver, há pouco, na televisão, a Volta a Portugal, o nome do camisola amarela lembrou-me esta historieta)

segunda-feira, agosto 14, 2017

Romantismo autárquico

Há um inesperado potencial de romance no combate autárquico. Fui alertado para ele pela reportagem que João Pedro Henriques traz hoje no DN sobre a Vidigueira. 

Quem havia de dizer o PCP, com a sua sisudez ideológica, ia ver-se apanhado na trama entre o seu ex local, um tal Narra (belo nome!), e o promissor futuro político da sua amada d'Aguilar (isso mesmo, com apóstrofo e apelido de conde prestidigitador)?! 

No embaraço da traição, os comunistas (disfarçados de CDU, porque a foice picaria a moderação de algum eleitorado) lá vão à urna com um Raposo (filho do Raposo do estimável restaurante local, onde, confirmo, não se comia mal), entretanto demitido de assessor autárquico pelo Narra, em cena dita picante, aliãs com consequências menos agradáveis na saúde familiar do desempregado.

Qual Beirais, qual carapuça! Nem Soeiro Pereira Gomes imaginaria tal "engrenagem". É que, ao pé das sagas policiais de delinquentes de periferia, muito série B, que excitam Oeiras ou Gondomar, a Vidigueira está transformada numa imensa fonte de inspiração para uma "Narra...tiva" romanceada.

O incendiário vindo do Leste

O racista de Loures não é importante. Importante foi Passos Coelho e o PSD dele não se terem demarcado. 

Pedro Passos Coelho não é (obviamente) um racista, mas vive uma situação de desespero político que o leva, nos dias de hoje, a cavalgar, de forma oportunista, sentimentos que um verdadeiro social-democrata deveria rejeitar. E isso tem um nome, feio: chama-se populismo.

O que Passos Coelho disse no Pontal sobre a lei da nacionalidade não teria grande importância se isso não tivesse acabado por se somar àquela que parece começar a ser uma deriva filo-xenófoba de alguns setores dentro do seu partido. Ao dizer o que disse, no contexto que hoje se vive, o líder do PSD, que é tudo menos um ingénuo político, sabia bem o que fazia. E isso é que é muito grave. Como se prova pelo facto da imprensa ter corrido a sublinhar aquela sua declaração.

Só falta agora que um refugiado, ou um imigrante de Leste, surjam acusados por alguém - não, não é preciso haver provas ou ser condenado! - de terem ateado um incêndio. Esperem pelas redes sociais, pelo lixo aqui no facebook, pelos desbragados sob pseudónimo no twitter. É assim que estas coisas começam.

domingo, agosto 13, 2017

O embaixador "marchista"


A medalha de ouro ganha esta manhã por Inês Henriques, no campeonato do mundo de atletismo, nos 50 km marcha, trouxe-me à memória um embaixador muito peculiar. 

Esse embaixador tinha chegado, uma semana antes, a um determinado posto, uma cidade muito fria da Europa. Nessa manhã, havia pedido ao seu único colaborador diplomático uma indicação sobre o melhor restaurante da cidade, para o qual o convidou para almoçar.

Foram de carro. Quando o restaurante estava já à vista, do outro lado de uma imensa praça, o jovem diplomata informou: "O restaurante é naquele edifício lá ao fundo!". Foi então que o seu novo chefe, inopinadamente, deu ordem ao motorista para parar o carro.

"Será que o homem quer ir a pé?", disse, de si para si, o diplomata. Estavam alguns graus negativos, bastante vento, o caminho tinha muita neve e, na realidade, não havia nenhuma justificação para que a viatura os não deixasse, confortavelmente, à porta do restaurante. É que seriam quase 500 metros! Porquê ficar àquela distância? Atendendo, porém, ao facto do seu recém-chegado chefe estar a ser pródigo, nesses primeiros dias, em atitudes algo bizarras, o nosso jovem não reagiu. 

"Vamos a pé!", comandou o embaixador, levantando a gola e arrancando, sob o vento e a neve, para o distante hotel. O colaborador seguiu-o, naturalmente. A passada do embaixador não era, contudo, normal: começou a acelerar imenso, assumindo um ritmo e até uma atitude física idêntica ao dos corredores da marcha no atletismo.

O jovem diplomata ainda o procurou acompanhar por uma dezena de metros mas, a certo ponto - o que é demais é erro! -, desistiu, decidiu ir ao seu próprio ritmo, sem seguir aquela passada sem sentido, cansativa, desnecessária, despropositada. Quando, por fim, chegou à porta do restaurante, o embaixador esperava-o, há quase um minuto, com um sorriso leve. Nada disse, e foram almoçar.

Passou um ano. Numa conversa, a propósito de qualquer coisa, o embaixador perguntou: "Lembra-se, quando eu cheguei, de um dia ter acelerado muito o passo, numa ida a um restaurante, tendo você ficado para trás?". Claro que o secretário se lembrava desse episódio, nunca tento tido a ousadia de o referir. 

"Você marcou pontos nessa ocasião", disse o embaixador. "É que aquilo foi um teste. Eu tinha acabado de chegar, não o conhecia bem. Tomei essa atitude para o experimentar. Se você me tivesse seguido, no ritmo exagerado de passada que eu utilizei, isso significava que você era uma pessoa fraca. Como não me acompanhou, mantendo o seu próprio ritmo, percebi que você tinha personalidade e vontade própria. Passou no teste".

As pequenas embaixadas, como aquela era, são microcosmos onde se potenciam as idiossincrasias, onde vêm ao de cima traços insuspeitados de caráter. São "caixas de Pandora" da personalidade de cada um. E onde até se descobrem embaixadores "marchistas"...

sábado, agosto 12, 2017

Conversa onomástica


Ele tinha ido visitar o meu embaixador. Era um homem da cultura desse país, uma figura relativamente conhecida, que eu já tinha encontrado noutras ocasiões. Ia a sair da embaixada, cruzámo-nos na escada, cumprimentei-o e convidei-o a entrar para o meu gabinete. Estávamos a falar da pessoa em casa de quem nos tínhamos visto pela última vez quando, subitamente, ele me surpreendeu com a pergunta:

"Tem visto o Seixas da Costa?"

"Tenho...", saiu-me, com um sorriso.

"Estou bastante ofendido com ele. Não responde às cartas que lhe tenho mandado". E prosseguiu com outras queixas, manifestamente dirigidas a um colega que, antes de mim, trabalhara na embaixada e já estava em outro posto.

Porque aquilo tinha o seu quê de divertido, e (vá lá!) por uma pateta omissão lúdica, deixei continuar a conversa, por vários minutos, com ele a referir-se sempre ao "outro" pelo meu nome. Apercebi-me então que começava a ser já tarde para travá-lo. Ficaria seguramente ofendido, perguntando-me por que o não tinha corrigido antes. O meu embaraço crescia: "Você sabe, é que eu era mesmo amigo do Seixas da Costa!". Eu fazia "que sim" com a cabeça, morto para que ele me "desamparasse a loja". E, ao fim de um imenso quarto de hora, lá se foi! Ufh! 

Voltei a vê-lo, tempos mais tarde. Foi como se nada se tivesse passado...

sexta-feira, agosto 11, 2017

Coreia

Foi bastante mais significativo do que, à primeira vista, se pode pensar o voto unânime do Conselho de Segurança da ONU que impôs sanções acrescidas à Coreia do Norte, em condenação pelos recentes lançamentos balísticos e atividades conexas de natureza militar. Ver a Rússia e a China a votar ao lado dos EUA, França e Reino Unido foi a prova clara de que a atividade do regime norte-coreano é vista como gravemente desafiadora da paz internacional.

Nos últimos anos, a Coreia do Norte contou com alguma complacência da China e da Rússia, mas apenas porque estes seus vizinhos temem, não sem razão, que um colapso do regime, nomeamente por via militar, possa vir a desequilibrar geopoliticamente a região, conferindo novos avanços estratégicos aos EUA e abrindo caminho a uma reunificação sob o "template" político da Coreia do Sul. A China, em especial, não permitirá nunca que o futuro da península coreana passe a ficar dependente, na totalidade, da tutela americana – hoje sob uma administração tão “respeitadora” da autonomia de Seul que até agora ainda não encontrou tempo para nomear um embaixador para o país.

Mas é também muito evidente que, para a China e a Rússia, é altamente desconfortável ver nascer um novo poder nuclear, ainda por cima titulado por um regime imprevisível, no seu "near abroad".

Se este mal-estar já era muito óbvio, ele não se atenuará ao observar a escalada que está montada entre Washington e Pyongyang. É que de ambos os lados desta trincheira verbal estão duas personalidades, dotadas de um poder quase absoluto sobre a movimentação das suas máquinas militares, que não auguram nada de bom em matéria de uma serena ponderação das suas decisões.

O mundo que viveu duas guerras, e em particular aquele que atravessou uma Guerra Fria, em que os dois lados da equação eram potências de capacidade equivalente, que se anulavam pelo mútuo temor, não contava com este potencial conflito, cuja simetria se apoia apenas no jingoísmo e na bravata.

O que é mais angustiante, na perspetiva da Comunidade Internacional que observa este “ping-pong” de ameaças, é o papel quase marginal do mundo multilateral, em especial das Nações Unidas, reduzidas à tarefa de promotor de medidas económicas constrangentes e com uma voz inaudível no tocante às questões de onde podem depender as vidas de milhões de pessoas. 

Se as condições, na sua política interna, estivessem reunidas de forma favorável, os EUA teriam aqui uma oportunidade soberana para fazer reganhar à ONU a sua centralidade. Mas não estão, pelas razões que todos sabemos e perante as quais se torna ainda mais evidente a nossa impotência.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 10, 2017

A vísita do Pedro

Hoje, veio almoçar comigo à praia o meu colega Pedro Leite de Noronha. É um homem bem disposto, amigo da vida, embaixador aposentado "ma non troppo" (ele acrescenta "mas não trôpego"). Tal como eu, tem um blogue e também com ele, partilho algumas outras "afinidades eletivas", para usar a expressão de Goethe.

Nos últimos dias, no seu Folhetim no "Diário de Notícias", Ferreira Fernandes tem vindo a contar a intervenção desse meu colega numa operação diplomática algo complexa. Hoje mesmo, o jornal traz (pode ler aqui) o relato de uma conversa dele com o ministro Santos Silva.

Mas no nosso almoço não abordámos muito essa questão. Estamos ambos em férias. Acompanhado de um reserva Soalheiro 2015, um Alvarinho "de truz" que ele me trouxe, comemos um belo peixe comprado na Comporta. É que o Pedro é um gastrónomo militante, conhecendo restaurantes por todo o país. Também aí somos parecidos.

O governador

"Mas isso é uma grande trapalhada! Como é que vais resolver o assunto, António?"

António Pinto da França, embaixador português em Angola nesses anos 80, olhou a interlocutora que lhe colocou a questão com uma cara séria, nesse almoço de amigos que, em alguns sábados, costumava fazer na residência da embaixada. O que o embaixador acabara de contar era muito curioso, embora com um lado oficioso, que ia caber à embaixada cuidar, e que ele dizia preocupá-lo.

Segundo nos disse, uma amiga comum, a Lilita, mulher de um industrial português residente em Luanda, Pedro da Cunha, tinha por hábito, nessa capital angolana praticamente desprovida de comércio, convencer os proprietários de lojas antigas a deixarem-na tentar descobrir, nos seus armazéns e fundos, coisas velhas que ainda estivessem por vender, "relíquias" do tempo do comércio colonial - quase uma década depois da independência.

Ninguém na mesa sabia então desse hábito da Lilita, de que ela nunca nos falara e que o António nos relatava. A maioria dos presente, intimamente, deve mesmo ter tido fortes desconfianças sobre a eficácia dessas "expedições", numa cidade onde praticamente nada se vendia e onde era improvável que ainda houvesse "fundos de loja". Mas, adiante.

O problema, explicou o embaixador, é que numa dessas visitas a um armazém de uma velha casa de tecidos, ao ser afastada uma estante, sentiu-se que a parede do fundo era movível. Retiradas as tábuas, surgiu - imagine-se! - um caixão. Isso mesmo, um caixão! Era um modelo muito antigo, que aparentava ter talvez um século ou mais. 

A Lilita contou que o proprietário da loja mandou tirar o caixão para fora do esconderijo e decidiu chamar as autoridades. Terá vindo a polícia e, num ato de coragem, um dos agentes decidiu abrir o caixão. E o que é que encontrou? Um cadáver de homem, relativalente incorrupto, como às vezes sucede por um conjunto favorável de circunstâncias químicas e ambientais. O corpo estava vestido com uma farda militar e tinha um espadim a seu lado - que um dos polícias se apressou a recolher, segundo o comentário crítico da Lilita. 

À parte o pormenor, raro, do corpo estar conservado no essencial no seu aspeto, tudo não teria passado de uma curiosidade, mobilizando, quando muito, os historiadores luandenses, não fosse dar-se o caso de, entretanto, se ter dado conta, numa placa no caixão, de que o morto era, nem mais nem menos, do que um antigo governador-geral de Angola, dos anos 70 do século XIX, de seu nome dom Segismundo Teodósio de Mendonça, visconde da Peneda.

À volta da mesa algumas pessoas tinham ficado aturdidas pela história, especialmente as senhoras, todas amigas da Lilita, que nada lhes tinha contado. O embaixador explicou que o problema que se nos deparava tinha a ver com a necessidade de fazer a trasladação do corpo para Portugal, agora que a embaixada fora alertada, dado que não parecia curial proceder-se a um enterro em Angola. Não só não havia condições dignas para tal, como podiam suscitar-se alguns problemas políticos: um ato mais ou menos solene, que trouxesse à memória um titular do tempo colonial, nos dias de acrimónia política que se viviam entre Luanda e Lisboa, era algo de impensável. 

Por uma singular coincidência, e como todos nós sabíamos, familiares algo distantes do António Pinto da França, residentes em Angola há algumas gerações, pertenciam uma família de apelido Mendonça, muito integrada na sociedade angolana contemporânea. Contactados, ter-se-ão escusado e mostrado muito pouco interesse em tomarem conta dos restos mortais de um seu duvidoso antepassado, que ainda por cima havia sido governador em nome do país colonizador. A solução do envio do corpo para Portugal era a melhor, mas para onde e ao cuidado de quem?

"Ó Francisco, você que é transmontano é que podia falar com a família do Camilo de Mendonça, o homem do Cachão. Eles devem ser parentes do Dom Segismundo..."

Praticamente desde o primeiro minuto, eu tinha achado aquela história "boa demais". Era muito estranho que ela não tivesse sido objeto de conversas no seio da embaixada. Enquanto o António falava, olhei de soslaio, por mais de uma vez, para o Fernando Andresen Guimarães, cônsul-geral, por quem qualquer processo de trasladação teria forçosamente de passar. Ele mantinha um sorriso tão esfíngico como o do nº 2 da embaixada, José Stichini Vilela. Eles, como eu, estavam a ouvir aquele episódio da Lilita pela primeira vez e, à medida que a sua descrição prosseguia, foram percebendo o que se estava a passar. 

É que tudo não era senão mais uuma das habituais patranhas do António, fruto da sua imaginação transbordante, cheia de pormenores credibilizantes da narrativa, às vezes com um exagero, aqui ou ali. que, para gente "calejada" nas suas brincadeiras em que já nos transformáramos, denunciavam, discretamente, a "galga". Esta era apenas uma, entre tantas...

A experiência diplomática ensina-nos que um posto diplomático, numa cidade agradável, pode transformar-se num "inferno", se acaso por acaso ali calhar um chefe difícil, que potencie ainda mais as tensões do quotidiano. Mas o contrário também é verdade: um embaixador inteligente, divertido, bem disposto, atento aos seus colaboradores e amigos, pode contribuir muito para "dar a volta" a um destino profissional pesado. António Pinto da França, de quem todos sentimos muitas saudades, fazia parte destes últimos.

quarta-feira, agosto 09, 2017

A França na Europa

Foi agora anunciado que o novo embaixador francês junto da União Europeia será Philippe Léglise-Costa. Substituirá Philippe Étienne, que regressou há meses a Paris, para ser Assessor Diplomático de Emmanuel Macron. Quem tinha essa mesma função junto de François Hollande era... Philippe Léglise-Costa.

Tal como em alguns outros grandes países da União Europeia, o serviço diplomático francês tende a criar um grupo de funcionários especializados em temas europeus, que rodam entre as estruturas centrais de coordenação e decisão comunitária (Quai d'Orsay, Eliseu ou Matignon) e a Representação Permanente (Reper) em Bruxelas, muitas vezes passando também por outras capitais europeias relevantes. Esse núcleo incorpora funcionários de diferentes tendências políticas, o que permite assegurar uma grande continuidade à política externa, em especial à política europeia.

Philippe Léglise-Costa tem origem portuguesa, como o último nome indica. O seu pai, Pierre Léglise-Costa, filho de pai francês e mãe portuguesa, é uma personalidade que, falando português muito melhor do que muitos portugueses, tem feito imenso pela nossa cultura em França - como académico, autor, editor e tradutor de grande obras portuguesas. Há meses, publicou entre nós um interessante livro sobre o modo como nos olham do exterior, com o título de "Portugal visto de fora - o que os estrangeiros pensam que sabem sobre nós".

Já por aqui contei, mas relembro hoje, que, na véspera da primeira cimeira europeia em que Hollande participava, Philippe Léglise-Costa fez um "briefing" aos embaixadores da UE. Ao seu lado, tinha o novo - e, para todos nós, desconhecido - secretário-geral adjunto do Eliseu. O seu nome, viemos a saber depois, era Emmanuel Macron.

terça-feira, agosto 08, 2017

Diplomacia do croquete


Naqueles tempos dos anos 80, de guerra civil em Angola, era muito difícil encontrar produtos alimentares. Os vegetais iam aparecendo nas "quitandeiras" dos mercados, algum peixe conseguia-se junto dos pescadores da ilha, mas o mais difícil era a carne. Nas idas a Portugal, traziamo-la em caixas frigoríficas, a espaços o frango ia aparecendo na chamada "loja diplomática", algumas vezes conseguimos importar alguns quilos do Zimbabwe. Mas para o quotidiano, isso continuava a ser insuficiente.

Um dia, um dos contínuos da embaixada, o simpático e avantajado Bia, surpreendeu-me com uma pergunta: "O senhor doutor quer comprar uma vaca?" Explicou-me que tinha um primo que tinha vacas e que estava disposto a vender-nos uma. "Viva?", perguntei. Sim, viva, mas o vendedor poderia mandar cortar o animal em grandes peças. Além disso, aceitava receber em Kuanzas, a moeda local.

Esta questão da moeda não era indiferente. Por esse tempo, surgiam-nos algumas propostas, de angolanos e portugueses residentes, para aquisição de produtos alimentares. A sua liquidação, no entanto, deveria ser feita em contas no estrangeiro ou por troca com whisky, que só os funcionários da embaixada tinham facilidade em importar. Cair nessa "esparrela" seria infringir a lei local, num tempo muito delicado nas relações bilaterais.

Lá se fez o negócio e, uma tarde, fui com o meu Golf a uma determinada casa na zona da Corimba, a sul de Luanda, buscar as peças da vaca. Olhando hoje para trás, puno-me pela inconsciência do gesto: que carne era aquela? Em que condições sanitárias estava? Mas isso deve-me ter parecido despiciendo, nesse tempo de escassez.

Para poder cortar as peças de carne, era necessário recorrer a um talho. Mas, se em Luanda não havia carne à venda, onde diabo poderíamos encontrar um talho? Descobriu-se que um funcionário do consulado tinha sido talhante e ele facilitou-nos um espaço. Um amigo português, com experiência no "ramo", prontificou-se para a operação de corte. E lá fui eu levar as peças pelas traseiras de um antigo talho. 

Só que, quando as peças começaram a ser transportadas, do meu carro para o interior do talho, a miudagem dos apartamentos da vizinhança, convencida de que se tratava de um fornecimento normal, dasatou numa gritaria ("Há carne! Há carne!") que trouxe uma multidão para as imediações do talho. Vi-me em dificuldades em concluir a "operação" e sair dali...

Ao final da tarde, em convenientes pedaços, a carne chegou-nos a casa. Era péssima! Rija e nervosa, criou-se mesmo, nos amigos com quem a partilhámos, o dito de que era carne "importada" e que essa famosa vaca, para ser tão "musculada", devia ter vindo a pé desde o Zaire... Por meses, houve lá por casa tantos croquetes em jantares que, finalmente, fizémos juz prático ao conceito da "diplomacia do croquete"'!

Carla Del Ponte


Demitiu-se a presidente da Comissão de Inquérito da ONU para a Síria, a suíça Carla Del Ponte, frustrada com o modo como o seu trabalho se processava.

Há muitos anos, em Viena, depois de uma reunião na OSCE, almocei com ela. Era então Procuradora para Crimes de Guerra, em grande evidência no contexto da ex-Jugoslávia. Embora não isenta de críticas, a sua ação era, à época, considerada muito meritória.

O anfitrião do almoço, o meu colega holandês, Justus de Visser, fez-lhe esse elogio e todos nós, que à época lidávamos com o tema dos Balcãs, deixámos palavras simpáticas sobre o seu difícil trabalho.

Carla Del Ponte era uma mulher dura, mesmo pouco simpática, mas com algum humor. No final da sua intervenção, deixou esta constatação:

- Há uma alegria que levo desta função. Graças a ela, tornei-me na figura feminina da Suíça mais conhecida no mundo - depois da Heidi, claro!

segunda-feira, agosto 07, 2017

Mal-parado

Parece que os principais clubes portugueses fizeram, neste defeso de transferências, grande mais-valias com as alienações de ativos do seu pé-de-obra.

Por que será que ninguém se lembra de perguntar a razão pela qual Sporting, Porto e Benfica não aproveitam estes encaixes de capital para reduzirem a sua imensa dívida à banca? É um assunto incómodo, é isso?

Trata-se, pura e simplesmente, de uma vergonha e de uma cobardia coletiva. Do lado do governo, como da oposição, o silêncio é a triste regra.

Não há Volta a dar


Provavelmente, estou a comparar coisas que são incomparáveis, em especial em meios, mas faz-me imensa impressão olhar a cobertura televisiva da nossa Volta a Portugal, em matéria fílmica (nos comentários não sei, porque o uso do "mute" é sagrado!), lembrando-me do recente Tour de France. Ou mesmo da Vuelta ou do Giro. E fico com a sensação de que já foi bem melhor! Mas que pobreza "franciscana"...

domingo, agosto 06, 2017

Coreia


É muito significativo o (raro) voto unânime do Conselho de Segurança da ONU que impõe sanções acrescidas à Coreia do Norte, em condenação pelos recentes lançamentos balísticos e atividades conexas de natureza militar. 

Ver a Rússia e a China a votar ao lado dos EUA, França e RU, é a prova clara de que a atividade do regime norte-coreano começa a ser vista como gravemente desafiadora da paz internacional - salvo para uns desaparafusados mentais que, nomeadamente por cá, reivindicam o direito do regime de Piongyang de se armar "contra o imperialismo".

Nos últimos anos, a Coreia do Norte tem contado com alguma complacência da China e da Rússia, mas apenas porque estes seus vizinhos temem, não sem razão, que um colapso do regime, nomeamente por via militar, possa vir a desequilibrar geopoliticamente a região, conferindo novos avanços estratégicos aos EUA e abrindo caminho a uma reunificação sob o "template" político da Coreia do Sul. Mas é hoje mais evidente do que nunca que a ambos os países é desconfortável ver nascer um novo poder nuclear, ainda por cima titulado por um regime imprevisível, no seu "near abroad".

No programa do Jô


Há cerca de uma década, quando era embaixador no Brasil, fui convidado para ir ao programa do Jô Soares. Devo dizer que não foi das "prestações" de que mais me orgulhe. Pensava-a perdida, mas descobri-a agora na net. Ela aqui fica, para quem estiver interessado.

Chávez e Lula


Hugo Chávez morreu. Lula da Silva necessitaria de um milagre para ressuscitar politicamente. Deixo aqui um episódio dos dois.

Um dia, um importante ministro brasileiro, que acompanhou Lula numa das suas frequentes visitas a Caracas, contou-me uma história significativa que era bem reveladora do pensamento íntimo de Chávez. 

Numa conversa em Caracas, Lula fazia notar a Chávez que os ganhos do Brasil, no seu comércio com a Venezuela, eram exponenciais. O Brasil nunca lucrara tanto nos seus negócios no país, nunca a balança comercial lhe fora tão favorável. E, no entanto, "com amizade", afirmou que o Brasil não se sentia bem nessa relação tão desequilibrada, em grande parte devida à ausência de um setor produtivo venezuelano que se pudesse desenvolver e criar produtos essenciais à satisfação de áreas essenciais, nomeadamente no domínio alimentar. O Brasil estaria disposto a ajudá-lo nisso, na criação de empresas industriais que pudessem substituir importações e reforçar a produção industrial venezuelana. 

Chávez olhou para Lula, percebeu a genuinidade do gesto e adiantou: "Tens razão! Já tinha pensado nisso e tenho um grupo a estudar a criação de um conjunto de empresas estatais dedicadas a vários setores de produção de produtos essenciais". O presidente brasileiro deu um salto na cadeira: "Eu queria dizer empresas privadas, não empresas estatais!" Foi a vez de Chávez se alarmar: "No, privadas, jamás!" Para logo acrescentar: "Os privados ligam-se logo à reação contra mim!".

Era assim Chávez. Era assim Lula.

Bica profissional


O café feito em nossas casas era, por muitos anos, bem distinto daquele que as máquinas de "expresso" dos cafés nos proporcionavam. De cafeteira, saco ou balão, o seu gosto estava longe do amargo diferente daquilo que no Porto se convencionou chamar um "cimbalino". 

Por essa época, quando decidia tomar a bebida num estabelecimento comercial, uma amiga referia sempre que ia por uma "bica profissional". A expressão ficou consagrada entre nós.

As máquinas caseiras de "expresso" mudaram entretanto tudo isso. Hoje todos temos em casa desses aparelhos - da Nespresso, da Delta ou das grandes cadeias. Cada vez mais, tem-se à mão uma maneira de "produzir" um café bastante idêntico dos estabelecimentos comerciais.

Mas a frase "pegou". Ainda hoje, pela manhã, ao decidir-se sair para um café, lá veio a expressão: "Vamos a uma bica profissional?"

sábado, agosto 05, 2017

Fernando Reino


O meu primeiro embaixador, quando no final dos anos 70 fui colocado em posto na Noruega, foi Fernando Reino. No Ministério dos Negócios Estrangeiros desse tempo, o transmontano Fernando Reino fazia parte de um escasso grupo de diplomatas europeístas (coisa que, à época, eu estava muito longe de ser). Culto, inteligente e cheio de iniciativa, era claramente um "highflyer", como o futuro haveria de confirmar, em postos com a importância de Madrid ou da ONU. Democrata assumido, foi um dos rostos mais proeminentes da geração diplomática que viria a fazer a transição dos regimes separados pelo dia 25 de abril de 1974.

Eu só conhecia Fernando Reino pela sua fama profissional. Por pouco nos não cruzámos na Comissão Nacional de Descolonização, de onde ele saíra antes de eu ser por lá ter sido colocado. Mas sabia que era um "workoolic" impenitente, que tinha transformado um posto periférico como era a capital norueguesa numa "agitada" unidade diplomática, bastante visível em Lisboa. 

Verdade seja que, por esse tempo, entre Portugal e a Noruega havia fortes programas bilaterais de cooperação. Fruto da simpatia dos trabalhistas noruegueses pela Revolução portuguesa, os governos daquele país tinham, entre muitas outras iniciativas para favorecer o nosso país, dado forte ajuda à instalação habitacional dos "retornados", haviam oferecido um navio hidrográfico a Portugal e vieram a ser responsáveis pela criação no novo hospital da minha terra, Vila Real (mas nada tive a ver com isso, que fique muito claro). A embaixada em Oslo vivia então um "corropio" de agitação, numa certa "competição" com a embaixada norueguesa em Lisboa, a qual, com alguma naturalidade, procurava ser protagonista dos programas de cooperação. Essa tensão criativa passou a fazer parte do meu quotidiano.

A fragilidade de quem ia para primeiro posto, somada à impulsividade de Fernando Reino, conduziu-me, inicialmente, a uma dependência inusitada face ao meu futuro embaixador: à chegada a Oslo eu já tinha casa destinada e até um berrante Golf encarnado estava já à minha espera. Esta "tutela" era fruto de um simpático e generoso sentido protetor, de que custou a libertar-me...

Trabalhar com Fernando Reino não era fácil. Numa embaixada (chancelaria na imagem) tão pequena como aquela - éramos os dois únicos diplomatas, com cinco unidades administrativas -, o seu "génio" tornava frequentemente os dias um tanto tensos. Olhando em perspetiva, posso compreender que um profissional da sua qualidade se sentisse frustrado por estar a operar num posto que, decididamente, não estava ao nível das suas capacidades e legítimas ambições. Só que quem com ele colaborava era, não raramente, uma "colateral casualty" desse seu evidente mal-estar. E eu, claro, na primeira linha. Alguns conflitos tivémos, mas nenhum que tivesse afetado a amizade que entre nós se estabeleceu e a profunda admiração, pessoal e profissional, que por ele passei a ter.

Fernando Reino ficou menos de um ano na Noruega, depois da minha chegada a Oslo. Viria a ser convidado a ser chefe da casa civil do presidente Ramalho Eanes. Os nossos destinos nunca mais se voltaram a encontrar profissionalmente. Mais recentemente, por iniciativa de amigos comuns, temos-nos visto em simpáticas almoçaradas.

No dia de hoje, Fernando Reino completa 88 anos. Deixo aqui um forte abraço de parabéns, com votos de muita saúde, a um amigo que foi o meu primeiro embaixador.

Às Voltas com um nome


Começou a Volta a Portugal em bicicleta. Olho o espetáculo na televisão com uma curiosidade limitada. Não conheço os ciclistas, hoje interessa-me muito pouco a prova, salvo as subidas à Senhora da Graça e à Estrela (mas nem sei se fazem parte da prova deste ano). Acompanho com bastante mais interesse o "Tour de France" do que a nossa Volta, confesso.

Mas nem sempre foi assim, como por aqui creio já ter dito. Na minha juventude, sabia de cor os segundos que separavam os dez primeiros classificados da "geral", tinha os meus favoritos para os "sprinters" dos pontos, para os "heróis" da montanha, para a classificação por equipas.

Num ano da década de 60, uma fábrica de boinas de Viana do Castelo decidiu constituir uma equipa de ciclismo - a Cedemi. Nas minhas férias de agosto eu passava regularmente junto à fábrica (existe agora, no mesmo espaço, o Café "A Boina") e, naturalmente, não me era indiferente o destino desportivo da equipa da terra do meu pai, cidade a que me sentia afetivamente muito ligado.

Creio que no primeiro desses vários anos em que a Cedemi marcou presença na Volta, a sorte foi madrasta para a equipa. A certo passo, ficou reduzida a um único corredor - cujo nome, por mais que puxe pela cabeça e pelo Google não consigo identificar. A sua classificação era já na casa das largas dezenas, pelo que a chegada ao fim da prova era, com toda a certeza, o ponto de honra almejado.

Uma das etapas da Volta desse ano acabava em Vila Real, vinda dos lados do Porto. A terrível subida do Marão, a partir de Amarante, tinha feito a seleção natural das hostes. A chegada ao Alto de Espinho, antes do início da descida em direção a Parada de Cunhos, já se fizera de um modo que retalhara o pelotão. Atingir Vila Real implicava, além disso, uma última subida, a partir da ponte do rio Cabril, antes da meta, situada nas imediações das traseiras da Mocidade Portuguesa. Algumas dezenas de espetadores distribuiam-se pela então "Avenida Marginal" (hoje "1° de maio"), saudando o esforço dos atletas.

De súbito, vi surgir, isolado no infortúnio classificativo, quer na etapa quer na "geral", o tal corredor da Cedemi. Com o entusiasmo filo-vianense que era o meu, à sua passagem soltei um "Força, 'fulano' ". O homem, não obstante o cansaço, surpreendido por ver gritado o seu nome numa artéria da capital transmontana, onde provavelmente não esperava ser conhecido nem era expectável que a sua equipa tivesse fãs, quase que abrandou a marcha, olhando-me com um esgar sorridente e, presumivelmente, também grato.

Ao final da tarde, como sempre acontecia, os corredores, alojados nas pensões nas cercanias da Avenida Carvalho Araújo, vinham passear-se por ali, de chinelos de dedo, mobilizando a atenção dos curiosos. Nesse dia, com naturalidade, o meu pai procurou os seus conterrâneos vianenses, as pessoas que tinham a equipa a seu cargo. Eu acompanhei-o e, por minutos, assisti à breve conversa. 

Num certo momento, juntou-se ao grupo o tal único ciclista da Cedemi ainda em prova. Foi apresentado ao meu pai e, olhando para mim, com um imenso sorriso, deixou no ar, cúmplice: "Nós já nos conhecemos!" Eu devo ter corado, com aquele momento de intimidade com o desportista residual da Cedemi a encher-me de orgulho. 

Infelizmente, isso não foi suficiente para eu decorar o nome do homem.

sexta-feira, agosto 04, 2017

O resto é paisagem


Tornei-me lisboeta pela vida. Meio século na capital, preservando as raízes nortenhas e mantendo-me como viajante obsessivo pelo país, acabou por me tornar um nativo diferente: olho os lisboetas com uma mirada algo exterior, julgo que lhes topo bem as reações, os não-ditos – para ser mais claro, os preconceitos.

Assumindo o risco de todas as generalizações, diria que o lisboeta médio, por muito que disfarce, dá razão íntima ao dito macrocéfalo de que «Portugal é Lisboa, o resto é paisagem». A sua curiosidade pelo resto de Portugal, salvo se tiver família numas berças a que, às vezes, vai por exercício folclórico-antropológico, é muito escassa. Arrumado abril, o Alentejo passou a ser, para o cidadão de Lisboa, o seu sinónimo de «campo», muitas vezes apenas visitado a caminho do Algarve, para um «fossado» gastronómico ou uma curta vilegiatura num monte «confortabilizado». 

O Norte, para muito ulissipo-dependente, é um mistério que não chega sequer a mobilizar a sua curiosidade. Tenho amigos para quem chegar a Leiria significa atravessar uma fronteira psicológica que os coloca já às portas do Porto, mesmo na vizinhança da Galiza - dessa Espanha onde conhecem “de gingeira” Barcelona ou Córdoba, Toledo ou Valência. Mas não Viseu, a Guarda ou Bragança – como há dias me confessava um amigo com décadas de mundo e cosmopolitismo.

No cume dessa geografia do desconhecimento está o Porto. O cinzento da pedra, o intrincado das rua, a reserva das famílias, as cumplicidades quase (e às vezes) maçónicas do círculos de amigos tornam o Porto praticamente ilegível para o lisboeta. Como resposta, usa a sobranceria, o olhar arrogante sobre uma “província” que o sotaque ajuda a caricaturar, ajudado pelo agravar das rivalidades do futebol. Para o cidadão da capital, a menor reivindicação do Porto surge como um ato de despeito, revela uma impotência feita reação. O lisboeta olha com risota o ar façanhudo com que alguns portuenses clamam contra a falta de atenção à sua especificidade, à dimensão nacional dos seus interesses.

Lembrei-me disto há dias, a propósito da Agência Europeia do Medicamento. Sabe-se que António Costa, que tem do país uma visão menos “lisboeteira”, expressou a ideia, desde o primeiro momento, de que esse era um tema em que importava envolver o Porto. Não foi esse o parecer de alguma vontade central, que sempre tem Lisboa como sinónimo óbvio do país. E as coisas deram no que deram. Se e quando o Porto vier a perder a candidatura, um certo centralismo lisboeta, agora derrotado, sentir-se-á vingado. Lisboa não admite que possa haver um oásis na paisagem.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, agosto 03, 2017

Venezuela

Um dos argumentos de quantos, por esse mundo fora, defendem o sistema "bolivariano" de Chávez e do seu "genérico" Maduro é a muito duvidosa qualidade política da oposição mais visível, a começar por Caprilles e outras figuras muito pouco recomendáveis. De facto, é sobejamente sabido que, na barricada anti-governo, se escondem linhas políticas sinistras, saudosas das ditaduras latino-americanas de direita.

A questão, porém, está mal colocada: a alternativa a Maduro, por muito que a atual oposição seja o que é, é a democracia, são eleições livres, vigiadas internacionalmente, com ampla liberdade nos "media". Essa é a única agenda que a comunidade internacional tem legitimidade para recomendar. Depois, logo se verá quem o povo venezuelano quer à frente do país. E, no passado, já ficou provado que há mais Venezuela para além do autoritarismo nos dois lados. Resta saber se o bom-senso ainda pode ter por lá uma oportunidade.

O dinheiro dos outros

Nas últimas horas é o "escândalo" com o custo da transferência de Neymar para o PSG, com financiamento do Qatar. Nas revistas portuguesas, está-se agora na fase da "fortuna" de Américo Amorim e nas reportagens sobre as férias milionárias "dos famosos". Abre-se qualquer publicação e só se fala dos "ricos", do seu estilo de vida, dos milhões que movimentam.

O que é que levará as pessoas a estarem constantemente preocupadas com o dinheiro dos outros? A curiosidade será o outro nome da inveja?

Fácil, não é?


Era assim, naquele tempo. A embaixada portuguesa em Oslo publicava, antes do Dia de Portugal, um anúncio na principal imprensa norueguesa, convidando todos os emigrantes portugueses naquele país a escreverem um postal à embaixada e, dentre as respostas recebidas, far-se-ia um sorteio que dava direito a uma viagem paga a Portugal. Creio que era a TAP que patrocinava a iniciativa

Nesse início dos anos 80, os portugueses residentes na Noruega não chegavam às três centenas. Eu era responsável pela secção consular da nossa embaixada em Oslo, cidade onde funcionava a única associação de portugueses no país, o "Clube Português Amizade". Cabia-me a mim montar a "operação".

Nesse ano - 1980 ou 1981 -, feito o sorteio, verificou-se que o nosso compatriota vencedor residia em Vadsø, uma pequena e distante localidade bem acima do Círculo Polar Ártico, não longe da fronteira com a então União Soviética. Telefonei a informá-lo e a combinar a logística e, por curiosidade pessoal, perguntei-lhe como diabo fora parar àquele remotíssimo lugar, onde, até ao momento, não se sabia residirem portugueses.

"Não, não há cá mais nenhum português. Quer saber como vim? Olhe, eu estava a trabalhar numa fábrica no norte do Irão. Havia por lá um norueguês que me disse que aqui havia um trabalho bem pago, também numa fábrica. Ele fez o contacto e eu vim. Fácil, não é?"

É "fácil" esta fantástica aventura da nossa diáspora...

quarta-feira, agosto 02, 2017

O camarada tradutor


A Eslováquia era, nesse tempo, o "mau aluno" dos candidatos à adesão à União Europeia. O primeiro ministro de então, Vladimír Mečiar- umas das duas figuras-chave, com o checo Václav Klaus, na divisão da antiga Checoeslováquia -, conduzia um governo acusado de limitar as liberdades da oposição e dos meios de comunicação social. O próprio presidente da República eslovaca vivia sob forte pressão de Mečiar.

Eu havia desenhado com cuidado a minha visita a Bratislava, como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, nesse ano de 1998. O nosso objetivo era dar um sinal de apoio à integração da Eslováquia nas instituições europeias, não obstante o governo do país se revelar então o maior obstáculo à consagração desse mesmo estatuto. Os contactos oficiais seriam feitos nos moldes tradicionais mas eu insisti em ter encontros com as principais forças da oposição, fazendo igualmente uma conferência-debate num instituto que promovia a ideia europeia, uma entidade que sabia não ser do agrado do governo, que não se fez representar no evento.

Um dos encontros tidos com um dos partidos da oposição foi no hotel onde fiquei instalado. Recordo o aviso discreto que o chefe da delegação desse partido me fez, logo à chegada: eu devia ter consciência de que a nossa conversa iria ser escutada, porque isso era uma prática que estava nos "genes" do governo de Mečiar. Assim, "adaptei" tudo quanto disse, em inglês, a essa (previsível) realidade, aproveitando, dessa forma, para passar algumas "mensagens" às autoridades, com maior à-vontade do que aquele que eu usararia nas diversas visitas feitas a interlocutores oficiais.

No dia seguinte, seria eu a fazer uma visita ao partido que, na Eslováquia, era o homólogo do PS português. Recordo-me que a sede era num modesto primeiro andar, numa rua central de Bratislava. Impressionou-me o "décor" das dependências por que passámos: um ambiente que lembrava as sedes partidárias de alguns partidos e formações políticas portuguesas no pós-25 de abril, com posters nas paredes, lembretes com "post-it", enfim, uma alegre anarquia, que rimava menos bem com a serenidade ideológica daquela formação, que, aliás, anos depois, entraria para o governo.

O meu interlocutor era o líder do partido. Não falava inglês, pelo que seria necessário utilizar um intérprete eslovaco, também membro próprio partido. Este não falava português, pelo que anunciou que traduziria para espanhol, explicando-nos que estudara em Cuba. A conversa anunciava-se assim algo confusa. Porém, como essencialmente me interessava ouvir falar o meu interlocutor sobre a situação local, acheio que o modelo poderia funcionar. 

Nestas ocasiões, a tendência é esquecermos o tradutor e tê-lo apenas como um transmissor da mensagem. Foi o que tentei fazer. Sem sucesso. É que o tradutor era um "cromo" que se impunha na sala. Efeminado à quinta potência, tinha um capachinho castanho escuro que se movimentava, por má fixação, à medida que se expressava. E a sua "coreografia" era exuberante. Fazia gestos e agitava-se de uma forma que começou por suscitar o surgimento de leves sorrisos irónicos na nossa delegação. A certa altura, conceitos políticos graves vindos da boca do líder socialista eslovaco chegavam-nos num espanhol de Cantinflas, acompanhados por sublinhados fonéticos em forma de onomatopeias, quase cantadas. 

Como chefe da delegação, eu procurava guardar a compostura, mas as pessoas que me acompanhavam - em especial o então subdiretor-geral, João Pedro Zanatti, e o meu chefe de gabinete, Miguel Almeida e Sousa - já quase não se continham no riso, baixando a cabeça e fingindo tomar apontamentos da conversa. A pouco a pouco, eu ia-me também "tirando do sério". A certo ponto, já quase nos não contínhamos, evitando cruzar os nossos olhares, para não rebentar a cena. Recordo ter apressado o fim da conversa, despedindo-me do meu amável e sensato interlocutor, que conduzia então uma luta complexa e corajosa contra Mečiar. 

À saída, saudei o efusivo tradutor e - recordo bem! - descemos todos de roldão as íngremes escadas para a rua, abafando gargalhadas, que se libertaram finalmente, naquele fim de tarde de Bratislava. 

Tempos mais tarde, quando visitei a capital eslovaca, nomeadamente ao tempo em que vivi em Viena, passei várias vezes por aquela rua central, olhei a sede dos "camaradas" eslovacos e lembrei-me daquela hilariante cena.

terça-feira, agosto 01, 2017

"Ainda bem que o encontro..."

A cara com que a figura pública ouviu esta expressão "mortal" era, verdadeiramente, um cara de poucos amigos. Proferiu-a um "espontâneo" (nome que se dá aos que saltam inopinadamente para as praças de touros, mas adequa-se), puxando a personalidade por um braço. Era - via-se à légua - uma "cunha" ou a lembrança de um pedido sem resposta. O visado balbuciava fórmulas dilatórias e levantava, distraído, o olhar, tentando descortinar, dentre a multidão, uma qualquer cara conhecida a quem pudesse agarrar-se socialmente, fugindo à "melga" que lhe atazanava a manhã. A coisa durou uns bons minutos. Não sei que fórmula mágica usou mas, por fim, lá vi os dois separarem-se, com a personalidade, com manifesto ar de alívio, rumando a um horizonte de sossego.

Que chatos são os chatos!

segunda-feira, julho 31, 2017

Jeanne Moreau


Morreu Jeanne Moreau. Hoje posso, finalmente, revelar a Truffaut que eu era o terceiro homem, para além do Jules e do Jim. E mais não digo porque, tal como a noiva, também estou de preto.

Baez e o Chile


Há pouco, na madrugada televisiva, a repetição do espetáculo dos 75 anos de Joan Baez levou-me subitamente de volta a Oslo, há quase 40 anos, onde a ouvi uma noite cantar ao vivo. 

Nunca fui um fã incondicional da música de Baez, mas, naquele tempo, na cidade bastante provinciana que era a capital norueguesa, a visita de alguns nomes internacionais era um escape cosmopolita que procurava não perder, não obstante o meu parco salário, para os elevados preços locais. 

No caso da cantora americana, eu também juntava por ali muita da memória afetiva da agitação da juventude americana anti-Vietnam com a pertença a uma geração que por cá fizera abril e que então atravessava as interrogações de quem saía de uma experiência de tempos esquerdistas para uma democracia "burguesa". 

E, assim, ao ouvir a Baez cantar o "Gracias a la vida", de Violeta Parra, surgiu-me inevitavelmente o Chile no encadeado da memória.

Um dia, nessa Noruega, numa apresentação da argentina Mercedes Sosa, conhecemos um casal de refugiados chilenos que o país acolhera, depois da tragédia de 1973. Tempos mais tarde, num grupo em que eles estavam, fui ouvir Joan Baez e, depois, Donovan. Acabávamos essas noites, invariavelmente, a comer umas coisas vagamente sul-americanas numa cave esconsa, onde um cantor espanhol se passeava entre as mesas e, quando nos reconhecia, cantava uma música com o estribilho "Ay Portugal! Por qué te quiero tanto?"


Que será feito desses e de outros amigos chilenos? Terão ficado na fria Noruega, que os acolheu na tragédia? Terão regressado ao Chile democrático? Que aconteceu ao Fermin, irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende, um homem agitado e cordial, que habitava um modesto apartamento de Oslo e que, generosamente, nos convidava, em alguns domingos, para partilhar garrafas de "Casillero del Diablo" (a que juntávamos "Dão - Porta de Cavaleiros", o vinho português que o "Vinmonopolet" vendia), que lhe atenuava as saudades do Chile, entre resmas de propaganda do MIR? Trabalhava numa fábrica de discos e, graças a ele, tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil de 33 rotações. E chorava, ao ouvir Violeta Parra, Victor Jara e até Zeca Afonso...

domingo, julho 30, 2017

Marcelo, hoje

Marcelo Rebelo de Sousa é hoje entrevistado pelo DN.

Fazer uma exegese do texto é uma tentação natural: é sempre curioso interpretar Marcelo à luz do que vai dizendo, porque isso faz obviamente parte do "auto-retrato" que ele quer fixar de si próprio.

Com a sua experiência de constitucionalista, Marcelo está a desenhar, muito em função da conjuntura que lhe aconteceu, o esquiço daquilo que pretende vir a protagonizar, como modelo para o exercício do cargo presidencial. Porque também é professor, tende a teorizar bastante essa sua interpretação, procurando que ela componha um todo coerente que seja facilmente percetível pelo país. Ou, pelo menos, por quem faz a opinião no país.

Nota-se nesta entrevista uma específica preocupação (um tanto excessiva?) em fazer perceber o seu comportamento à família política de onde é originário, por forma a não deixar que a sua imagem no seu seio fique conquistada pelo rótulo de "traidor" que, de forma mais ou menos explícita, exsuda de algumas "opiniões" do "Observador" ou da bílis nas redes sociais. Isso é muito evidente no modo como aborda questões como os incêndios ou o roubo do material militar.

Em alguns temas, o presidente é mais "redondo", prudente, como é bem evidente na política externa. Noutras áreas, refugia-se no futuro, no resultado de apuramentos ou avaliações que vierem a ser feitos. Faz bem, porque isso o reforça institucionalmente e o liberta da pulsão interior que deverá ter para agir como o "professor Marcelo" dominical nas televisões.

Com tudo isto, Marcelo está a transformar-se. De certo modo, começa a atar as mãos a si próprio. A personagem institucional que está a construir, e que notoriamente quer fixar na História, é cada vez menos compatível com a figura irrequieta, com laivos de volúvel, que marcou muita da sua imagem ao longo de décadas. A confirmar-se esta evolução, isso é uma excelente notícia: perdemos um comentador genial mas o país pode vir a ganhar um estadista.

sábado, julho 29, 2017

Oportunidade perdida

O "Expresso" perdeu hoje uma excelente oportunidade para dar testemunho de que o jornalismo de verdade continua a morar naquela casa: ter-lhe-ia ficado bem retratar-se e pedir desculpa, perante os seus leitores, pela manchete com que desvirtuou, na passada semana, a sua notícia sobre os mortos de Pedrógão. Ao não fazê-lo, ficou atestada a arrogância e o desrespeito perante quem o lê por parte de um jornal que, em tempos idos, aos sábados, nos trazia notícias em que acreditávamos - apenas porque vinham no "Expresso".

sexta-feira, julho 28, 2017

Brincar com o fogo


A polémica em torno dos ciganos de Loures e o debate a propósito dos incêndios fez emergir um país político estranho. Pode parecer menos evidente a associação dos dois temas, mas têm algo de comum. 

Todos sabemos existir um problema antigo com a integração da comunidade cigana em Portugal. O assunto sempre foi tratado com “pinças”, ao longo dos anos, pela consciência de que envolvia um número de pessoas bastante limitado, de que se tratava de uma cultura maioritariamente ligada a setores sociais desfavorecidos e de que os mecanismos do Estado, embora com uma eficácia aquém do desejável, pareciam ir lidando com o problema de forma paulatina. Era consensual que conferir uma excessiva relevância ao tema, em especial trazendo-o para a arena política, poderia desencadear fáceis pulsões populistas, com impactos que extravasariam a sua própria circunstância. Tal como aconteceu. 

O modo como um candidato autárquico, sedento de protagonismo e sem visíveis escrúpulos, explorou o caso, na certeza de poder recolher prosélitos votantes por seu intermédio, não espantou, porquanto a irresponsabilidade é apanágio dos oportunistas e dos demagogos. O que surpreendeu neste processo foi o facto do partido que recrutou o candidato não o ter “enquadrado” de imediato após o incidente, retirando-lhe a indigitação ou obrigando-o a uma retratação completa.

O PSD não é um partido qualquer na sociedade portuguesa. É um dos eixos centrais do regime e, com o PS, integra um compromisso implícito de gerar condições de governabilidade para o país, muito para além dos ciclos em que ocupa o poder central. Porquê? Porque é também um grande partido autárquico, que ocupa em permanência uma fatia de poder local da maior importância. O PSD tem fortes responsabilidades políticas e uma história de luta pelo sistema democrático, no âmbito do pacto em que se baseia o modelo constitucional, para defesa da ética cívica em que assenta o próprio regime. Quando, há uns anos, vimos um seu líder sacrificar um candidato autárquico, antecipadamente vitorioso, por suspeitas de envolvimento em desqualificantes delitos, o país decente não deixou de ter um sentimento de admiração pelo caráter nobre do gesto então praticado.

A luta contra a discriminação e a exclusão social é uma das matrizes do nosso regime. A criação de um “firewall” ao discurso social estigmatizante e às pulsões populistas, racistas ou xenófobas, integra um compromisso implícito que tem federado as forças com representação parlamentar. Foram mais de quatro décadas de entendimento, com vista a gerar um clima de decência cívica. Por isso, devo dizer que, como cidadão, me choca assistir a esta deriva estranha que, nos dias de hoje, atravessa o PSD, que sei também preocupar muitos dos seus simpatizantes, que se não sentem confortáveis com este tipo de opções.

E, de Loures, chegámos aos fogos. Começo pelo mais simples. Estou longe de considerar exemplar a atuação do governo neste contexto. Há coisas que falharam e continuam a falhar e muito mais tem de ser feito. O Estado tem de projetar confiança, os cidadãos têm de ter a certeza de que estão em boas mãos. 

Mas um tema desta gravidade justifica alguma “gravitas” no seu tratamento. Na sequência do incêndio de Pedrógão, o líder do PSD começou por ter uma atitude de Estado, dando prioridade ao combate à catástrofe e propondo, com racionalidade, uma comissão independente para avaliar serenamente o assunto. Mas essa serenidade durou muito pouco: logo surgiram uns “suicidas” que afinal não existiram e, nos últimos dias, o partido desembestou numa campanha sobre o “mistério” do número de mortos, colando-se às mais fantasiosas hipóteses, como se acaso acreditasse que havia algum misterioso interesse da parte do governo em esconder a existência mais uma ou duas vítimas, como se isso alterasse significativamente a esmagadora dimensão da tragédia. Por isso, como português, lamento sinceramente ver um partido central da nossa democracia a brincar com o fogo.

Já faltou mais...


A América e nós


Um dia, em perspetiva, vai ser possível olharmos com alguma calma para o furacão que nos dias de hoje atravessa a América política, por virtude das consequências da eleição de Donald Trump. Espero que, evitada que tenha sido alguma tragédia, possamos divertir-nos com as histórias, então já conhecidas, dos bastidores dessa peça política que esteve em cena em Washington. Por ora, limitamo-nos a abrir as televisões ou os jornais com a garantia de um permanente “happening”, uma sucessão endémica de eventos que, por virtude do comportamento errático do homem mais poderoso do mundo, abalam as instituições do seu país, com efeitos colaterais nos restantes. E não sabemos onde e como parará.

É uma evidência que uma imensa perturbação afeta a América, pela existência deste inusitado presidente. A queda abissal da sua popularidade não é casual. Mas há algo importante que convém não esquecer. Os EUA podem estar internamente aturdidos com Trump, mas não vivem minimamente preocupados com a imagem que o seu presidente projeta no exterior, nos aliados ou no próprio imaginário popular à escala internacional. A América vive, essencialmente, para si própria e, podendo Trump ser um problema para o mundo, é apenas no quadro de um eventual embaraço que ele possa constituir para os americanos que o fenómeno pode ter alguma evolução. O “America first” não é um mote exclusivo de Trump, é uma expressão sentida como uma uma obviedade por todos os seus compatriotas.

Por isso, o modo como a Europa olha Trump, tal como os humores sobre ele dos líderes mundiais, é coisa completamente indiferente ao cidadão do Ohio ou da Califórnia, que apenas quer saber se a sua vida vai piorar ou melhorar por virtude das políticas do governo federal. Por isso, desiluda-se quem pense que o mundo tem alguma palavra a dizer no futuro da novela presidencial em curso.

Mas, pelo contrário, Trump tornou-se relevante para nós. Durante meses, entretivemo-nos a especular por que é que ele conseguiu ser eleito. Aprendemos alguma coisa com isso e olhámos com uma atenção mais especiosa para o Brexit, para o extremismo holandês ou francês, nas eleições seguintes, já à luz desse fenómeno. Trump ensinou-nos igualmente que o populismo pode manipular a verdade e sobreviver à sua margem, sem consequências de escândalo. Soubemos com ele que já ganhou foros de alguma legitimidade aquilo que põe em causa alguns referenciais de decência pública e da ética de relacionamento social. Também acordámos para o fim dos “adquiridos” do progresso global, como as questões ambientais ou o respeito pelas minorias ou culturas fora do “mainstream”. O racismo do proto-autarca de Loures é, no fundo, apenas uma forma saloia de trumpismo. Desprezível mas não desprezável para o ambiente político do nosso país.

quinta-feira, julho 27, 2017

A Gôndola

No dia 6 de agosto, Lisboa perde a Gôndola, levada pela gadanha inexorável do imobiliário. Tenho pena? Tenho, claro, embora abram hoje em Lisboa, a cada dia, espaços magníficos que, salvo a inevitável nostalgia, compensam bem a perda deste restaurante.

A Gôndola era um espaço sazonal, a que só se aportava no bom tempo. Não passava pela cabeça de nenhum fabiano ir por lá no inverno. (Por ali perto, mais depressa se ia ao Polícia, ao Oh! Lacerda ou mesmo à Tia Matilde, noutros tempos à Sereia, mais recentemente ao Castro Elias).

Mas um almoço, no jardim da Gôndola, num dia glorioso de sol de primavera ou outono, podia ser uma experiência extraordinariamente agradável (similar ao belíssimo terraço, meu vizinho, da York House). Já em pleno verão, a caloraça, às vezes, podia ser imensa.

A minha memória não é o que foi, mas, pelas minhas contas, sei lá bem porquê, só me recordo de ter convidado amigas mulheres para ali almoçar comigo. Mas com muita mais gente por lá partilhei bastantes refeições, às vezes de trabalho, porque tinha uma boa distância entre as mesas para se poder conversar à vontade.

Agora que o restaurante está prestes a fechar, vou confessar um segredo: não me recordo de nenhuma refeição gastronomicamente memorável na Gôndola. Era uma comida simpática, recentemente com umas entradas mais ambiciosas, mas pouco mais do que isso. Mas agradava-me muito tomar um gin tónico na salinha de entrada e mantive sempre um particular carinho por aquele hábito antigo das criadas usarem avental branco, numa coreografia de sala idêntica à da Quinta, que existiu junto ao alto do elevador de Santa Justa.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...