quarta-feira, agosto 05, 2009

Portugueses


Fui ontem a Limoges transmitir um abraço de solidariedade aos nossos compatriotas que aí estão hospitalizados, na decorrência do terrível acidente de viação que, no sábado, matou cinco pessoas, entre os quais um cidadão holandês, e deixou um grande número de feridos, alguns deles ainda em situação delicada. Antes de partir de Paris, fui avisado de outro acidente, poucas horas antes, com mais um morto e muitos feridos, desta vez na zona de Bordéus.

Este tipo de ocorrências tornou-se quase como uma sina anual dos nossos emigrantes, no seu regresso sazonal ao país. Ao longo de décadas, um imenso número de portugueses deixou o seu sonho de vida, e o dos seus familiares, pelas estradas de França, Espanha e Portugal, por razões diversas, e às vezes cumulativas, que vão desde a velocidade, a imperícia, o cansaço e outros estados físicos impróprios para a condução, bem como deficiências nas viaturas.

Campanhas de advertência têm sido levadas a cabo por entidades francesas ou da comunidade portuguesa - como foi o caso da "Cap Magellan" -, mas os seus efeitos são sempre limitados. É que alguns pensam que estas coisas acontecem apenas aos outros.

À noite, no meu regresso de Limoges, desembarquei na Gare de Austerlitz. E não pude deixar de lembrar-me que estava a chegar a Paris pela mesma estação ferroviária onde, há algumas décadas, muito provavelmente, haviam desaguado, pela primeira vez, alguns daqueles que agora desapareceram. Ironias deste destino português em França.

terça-feira, agosto 04, 2009

Memória de Agostos (I) - 1967


Uma derradeira boleia deixou-me na Porte d’Italie. Nessa manhã, tinha partido de Blois, depois de cinco dias com diversas paragens, condicionadas pelas disponibilidades de transporte. O mapa de Paris que trazia comigo, obtido no turismo francês em Portugal, era o então conhecido “Paris à vol d’oiseau”, com desenhos dos prédios e um recorte do centro da cidade que nos dava a ilusão de podermos “conhecer”, por antecipação, os monumentos e artérias principais. Mal eu sabia, ao chegar à Porte d’Italie, que a capital francesa era muito e muito mais do que isso. E ainda hoje continuo a aprender...

Eu havia preparado, com muito cuidado, essa minha saída de férias pela Europa, depois de um ano académico pouco feliz. A boleia era então um método de viagem muito comum, particularmente para quem tinha menos de 20 anos e queria conhecer o mundo europeu, sem grandes encargos, com uma mochila às costas. O Inter Rail estava para ser inventado e os tempos que então se viviam eram suficientemente calmos para gerar confiança em quem nos abria, com simpatia, as portas das suas viaturas. E, pela parte de quem solicitava boleia, o sentimento de segurança era quase generalizado. Nessa que foi a primeira de algumas viagens do género que fiz pela Europa, o meu objectivo era ir de Portugal à Noruega, com Paris como uma incontornável escala.

Cheguei aqui no dia 4 de Agosto de 1967, faz hoje precisamente 42 anos. Lembro-me de nesse dia ter apanhado, creio que pela primeira e última vez, um daqueles autocarros com uma plataforma aberta nas traseiras, que agora só se vêem nos filmes. Descobrir lugar para uma dormida compatível com aquilo que tencionava gastar, numa tarde de um Agosto turístico, revelou-se uma tarefa muito difícil. Corri “seca e meca”, mas todos os “auberges de jeunesse” que os livros indicavam estavam mais que cheios. E o final da tarde aproximava-se.

Foi então que alguém me falou do Centre International de Séjour, na Porte de Vincennes. De metro, fui lá parar, defrontando-me logo com uma fila de espera considerável. O processo de registo era assegurado por dois funcionários, cujo gesticular revelava já um certo cansaço, seguramente provocado pela pressão e pelo calor intenso do dia. Longos minutos decorreram e a fila pouco andava. A certo passo, um dos funcionários soltou uma sonora e impublicável imprecação… em castiço português. Não resisti e, lá de trás, do fundo da fila, mandei-lhe um “boa tarde”. O homem olhou-me à distância, com cara de poucos amigos, mas logo lançou, num berro: “Você aí! Avance!”. Um tanto atrapalhado, ultrapassei a longa fila, com imensa gente a protestar, a caminho do balcão. O nosso patrício, com uma lata incomensurável, mas bem olímpico no seu desplante, limitou-se a informar os contestatários, bem alto, desta vez em francês, da óbvia evidência: “Este senhor tem reserva!"

Não seria esta a última vez que ser português me traria vantagens na obtenção de dormida em Paris.

segunda-feira, agosto 03, 2009

Fome

A visita oficial estava prestes a chegar ao fim. O jovem membro do Governo português tinha concretizado a sua primeira deslocação a África, a um país de expressão francesa. As coisas haviam corrido bastante bem e o embaixador havia decidido organizar um jantar final de “estadão”, para retirar legítimos dividendos do sucesso. Convidados para o repasto estavam, entre outras personalidades, todos os interlocutores do nosso político. Porém, a mais ansiada presença era a do homem poderoso do regime, o ministro das Finanças, com o qual não fora possível marcar um encontro, na agenda da visita. Ora a resolução de algumas questões bilaterais passava essencialmente por ele e, por essa razão, tê-lo à mesa seria muito importante.

Chegada a hora, os convidados lá foram aparecendo, alguns com a costumeira imprecisão temporal africana. Porém, mais de uma hora tinha já passado e o ministro das Finanças local não havia meio de aparecer. Comecei a detectar alguma inquietação no seio da delegação portuguesa, tanto mais que o jovem político era muito avesso a improvisos e a situações que saíam da rotina programada.

A certa altura, constatando o nervosismo crescente do nosso governante, já exausto das conversas preliminares com os seus interlocutores locais, recordo-me de ter dito ao embaixador que seria importante passarmos à mesa. “Mas falta ainda o ministro das Finanças!...”, retorquiu-me, embaraçado. Eu compreendia que era uma pena perdermos essa “cartada”, que ele preparara com tanto cuidado, mas tínhamos de acelerar as coisas, de uma vez por todas. “Vou telefonar ao ministro!”, disse. Ora aí estava uma excedente ideia. E lá desapareceu para uma sala anexa.

Regressou cinco minutos depois. Trazia na cara algum desânimo pontuado, contudo, por um sorriso enigmático. E anunciou que tínhamos de jantar sem o ministro das Finanças. O jovem político, pouco dado a absorver contrariedades, mostrou um inicial “carão”, mas era preciso ir em frente. E o jantar acabou por correr bem.

No final, despachados que foram todos os convidados, restando nos salões apenas a delegação portuguesa, alguém inquiriu: “E então por que diabo é que o ministro das Finanças não veio?”. E o nosso embaixador, já com um amplo sorriso, lá nos contou a sua conversa telefónica com o convidado faltoso.

No contacto, perguntou ao ministro se havia recebido o convite para o jantar dessa noite. A resposta foi logo surpreendente: que sim, que tinha recebido, que sabia que era para estar com um político português e que estava muito grato por ter sido convidado. Desconcertado, o embaixador perguntou-lhe: “Et à quelle heure vous avez l’intention d’arriver, M. le Ministre?”. A resposta foi magistral: « Ah!, mais non, M. l’Ambassadeur, je vais pas. Ce soir j’ai pas faim… »...

domingo, agosto 02, 2009

Camarões

Portugal tinha-se manifestado algo intransigente em aceitar uma proposta, creio que em matéria agrícola, que os países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP) tinham apresentado, no quadro das suas negociações comerciais com as então Comunidades Europeias. Era uma situação um pouco delicada, dada a nossa conhecida atitude favorável aos acordos com os países em desenvolvimento. Porém, as instruções recebidas de Lisboa eram imperativas e não podíamos "levantar a reserva" - como se diz no linguarejar negocial.

A questão técnica era assegurada, no âmbito da delegação portuguesa àquela reunião no Luxemburgo, por um especialista cuja familiaridade com as línguas estrangeiras estava longe de ser o seu mais notório atributo. Apesar disso, achou-se importante que fosse ele a explicar as nossas razões ao presidente de turno do grupo dos países ACP, o embaixador dos Camarões em Bruxelas. E combinou-se um encontro.

Tudo correu bastante bem, o nosso homem exprimiu-se de forma razoavelmente compreensível e, o que era mais importante, ficou passada a mensagem da nossa boa-vontade e empenhamento em ser encontrada, a curto prazo, uma solução para o problema. Estava salva a honra do convento! O breve encontro terminou e, em jeito de conversa já social, o embaixador perguntou ao nosso homem: "Et vous avez déjà visité mon pays?". Com um sorriso simpático, o interlocutor português respondeu ao embaixador dos Camarões: "Non, M. l'Ambassadeur, je n'ai jamais visité les Crevettes"!

Não peçam para descrever a cara do camaronês...

sábado, agosto 01, 2009

Ásia

JustifierSó quem visitou alguns países da Ásia pode testemunhar o modo extremamente positivo como a herança histórica portuguesa aí sobreviveu. Descontadas as desventuras da descolonização dos territórios na Índia, que suscitou reacções que ainda hoje emergem acidamente em sectores residuais do tecido sócio-político de Goa, a imagem geral de Portugal nas paragens asiáticas é muito acarinhada. Mesmo em países como a Indonésia, que connosco mantiveram uma conflitualidade recente por virtude da questão de Timor-Leste, a memória portuguesa aparece citada por toda a parte e é-nos constantemente lembrada, com simpatia, a nossa contribuição no léxíco e nos costumes locais, bem como, frequentemente, no seu património arquitectónico, militar e religioso.

A imagem que um país e os seus cidadãos provoca nos outros é um importante factor constitutivo da sua identidade internacional. Por isso, quando positiva, torna-se num valor imaterial sem preço, porque, na maioria dos casos, não resulta de uma criação artificial, mas de uma longa decantação da História. E, por essa razão, é um fenómeno mais genuíno e mais duradouro.

Falo hoje desta questão porque, numa conversa, há dias, alguém me referia o facto de, aparentemente, não ter havido celebrações condignas dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Sri Lanka. E de se aproximar, a passos largos, idêntica data relativa à Tailândia. E, ainda ontem, um amigo me falava, com entusiasmo, do que encontrou de referências portuguesas, numa sua ida recente ao Japão.

Portugal é um país cuja riqueza histórica é incomensuravelmente superior à sua capacidade de a projectar no mundo contemporâneo. Não temos meios financeiros para provocar a produção de filmes, publicações, cátedras, visitas e outras medidas de "promoção", à altura da qualidade daquilo que ficou inscrito no nosso passado. Veja-se o que fazem os espanhóis com Cristóvão Colombo, para termos um termo de comparação.

No tempo da ditadura, a História portuguesa foi utilizada como instrumento de adubamento da ideologia do regime. A hagiografia em torno de certas figuras, por vezes com um exagero que roçou o ridículo, bem como a hiperbolização megalómana dos feitos gloriosos do nosso passado foi feita, durante algumas décadas, de uma forma tão caricatural e simplista que, não raramente, acabou por afastar as pessoas do apreço que lhe era realmente devido. O papel da História portuguesa no imaginário nacional sofreu imenso com esse descarado oportunismo político e, a meu ver, isso ainda se faz sentir em muitos sectores da sociedade portuguesa.

Voltando ao que interessa: a Ásia actual, a meu ver, continua a ser um terreno magnífico para assentar uma redescoberta serena dos tempo em que os portugueses por lá andaram.

sexta-feira, julho 31, 2009

Luas

Ao ver reportada, há dias, a persistente existência de alguns cépticos, por esse mundo fora, que ainda não acreditam na chegada do homem à Lua, em Julho de 1969, não pude deixar de recordar um episódio anedótico anterior, passado em Portugal.

Estávamos em 1957 e a União Soviética anunciara a colocação em órbita do seu primeiro satélite, o Sputnik. Este primeiro passo na aventura espacial, hoje considerado decisivo para tudo o que se lhe seguiu, não foi muito bem visto por alguns sectores oficiais portugueses, quiçá tementes que, com esse êxito, as doutrinas políticas que emanavam de Moscovo pudessem ter o seu caminho facilitado no nosso país.

Ora uma voz da “ciência” portuguesa, o astrofísico professor Varela Cid, concluíra uma teoria sobre o tema que agradava ao regime. E recordo que aí tivemos, com direito a quadro negro e explicações a giz, a demonstração pelo nosso “sábio” luso, na nascente RTP, da "impossibilidade" prática de um satélite poder ser posto em órbita.

Não há limites para o ridículo.

quinta-feira, julho 30, 2009

Assinatura

Há uma velha teoria segundo a qual os diplomatas passam metade da vida a escrever aquilo que os outros assinam e uma outra metade a assinar aquilo que os outros escrevem.

As coisas não serão bem assim, mas a tendência funcional é para que isso aconteça. Por mim, continuo a esforçar-me para não dar razão à segunda parte da frase, escrevendo ainda a maioria das coisas que assino.

quarta-feira, julho 29, 2009

Estátuas

Umas férias no "Portugal profundo" dão-nos mais tempo para observar, com cuidado, o novo património escultórico que enxameia as localidades portuguesas.

Não coloco em causa a importância de dar trabalho a alguns esforçados artistas, mas confesso quee me sinto chocado pelo mau-gosto que impera em algumas cidades e vilas, frequentemente em locais com grande dignidade.

Dou o exemplo de uma terra a que estou muito ligado, Viana do Castelo: dois mostrengos estão a estragar, respectivamente, a intocável Praça da República e o Largo de S. Domingos. No primeiro caso, é uma feiíssima alegoria a uma temática brasileira. No segundo (vejam...) é uma figura a cavalo (parece um burro...), desproporcionada e monstruosa.

Não é possível lançar uma campanha nacional para abolir estes monos?

segunda-feira, julho 27, 2009

Bela definição

Rei Juan Carlos definindo a "profunda sintonia" entre Portugal e Espanha" na inauguração do Instituto Ibérico de Nanotecnologia: "Nem podia ser de outra maneira entre duas nações antigas, vizinhas, amigas, sócias e aliadas".

domingo, julho 26, 2009

"Literatura"

A vida editorial francesa, para além de coisas sérias e profundas que estão na génese de uma sociedade onde o valor das coisas intelectuais é muito respeitado, tem um "outro lado", com sucesso garantido. São livros fáceis, de um género perecível, ao final de algumas semanas.de exposição. Mas é um mercado muito rentável, a julgar pelos "tops" de vendas.

Este tipo de volumes, assentes nos "affaires", é, em si mesmo, muito francês. Nos últimos anos, contudo, parece haver uma crescente tendência para se ir para além da fronteira do mero "voyeurisme" político, passando para um terreno que mistura cada vez mais a alcova com a intriga. Dir-me-ão que isso sempre existiu; é verdade, mas agora há, claramente, mais.

Curiosamente, a imprensa francesa, sempre muito atenta à "petite histoire", pareceu, durante algum tempo, relativamente imune às histórias sentimentais clandestinas, contrariando a prática da sua congénere anglo-saxónica. Agora, começa também a mudar.

Em Portugal, este género de literatura tem escassos seguidores, se excluirmos algumas "obras" de escândalo que, depois de algumas semanas de evidência, saem para lugares discretos das mesas das livrarias. Geram dinheiro, rendem fotografias, queimam reputações e enchem os egos de alguns protagonistas. Mas, felizmente, não parece fazerem escola. E ainda bem.

sábado, julho 25, 2009

Ártico

Dormir num saco-cama, assente numa placa de esferovite directamente pousada sobre o gelo, numa tenda militar, bem a Norte do círculo polar ártico, com uma temperatura exterior de cerca de 25º negativos, é uma experiência para a qual se exige uma certa coragem. A verdade é que a tenda tinha no centro uma espécie de aquecedor, com uma chaminé que saía pelo tecto. E no seu interior, valha a verdade, a temperatura estava bem acima dos números de fora. Mesmo assim...

Estávamos num campo de treino da NATO, organizado pelas tropas norueguesas, em 1980. O dia fora longo e eu partilhava o espaço com dois colegas, um belga e um turco. Chegados à nossa tenda, enfiei-me logo no meu saco-cama, saquei de uma lanterna de bolso, que prudentemente levara comigo, e pus-me a ler o "Herald Tribune" do dia. Acompanhava-me uma pequena garrafa metálica com um belo whisky de malte, em cuja tampa, com esmero, coloquei algum gelo que raspei do chão. As recomendações NATO tinham sido estritas - nada de alcool! -, mas achei que uma pequena excepção podia ser admissível para o civil inverterado que eu era. E nem a proximidade do Pólo Norte tinha o condão de me afastar de alguns comezinhos prazeres mais cosmopolitas...

Notei que o meu amigo belga adormeceu logo e estranhei ver o turco a tentar fazê-lo fora do saco-cama. Disse-me que estava com calor e que ficaria bem assim...

Acabadas a minha dose de whisky e a leitura, adormeci também. Acordei, creio que cerca de uma hora depois, alertado pelo belga. O nosso colega turco, imprudente, ao ter-se deixado dormir fora do saco-cama, estava agora enregelado, sentia-se mal e não conseguia aquecer, nem sequer aproximando-se do aquecedor.

Que se podia fazer? Sair da tenda, à procura de ajuda, na gélida e ventosa noite ártica, era quase suicida. Adiantei uma ideia: porque não bebia o nosso amigo turco um bom trago do meu whisky? Seguramente que isso poderia ter um efeito-choque, ajudando à sua recuperação. O belga concordou que era uma boa sugestão. E é aí que o turco nos surpreende: "não posso beber álcool. Sou muçulmano". E continuava a tremer de frio.

Com diplomacia e poder argumentatório - estávamos entre diplomatas - tentámos convencê-lo de que os ditames religiosos, com toda a certeza, eram passíveis de pontual derrogação quando estava em causa a salvação da vida. O whisky podia assim ser considerado, no caso vertente, como um mero medicamento - "embora bem mais saboroso do que é habitual", lembro-me de ter pensado. O turco, já um pouco em pânico, acabou por concordar em seguir a opção que lhe era oferecida: bebeu uma boa dose do meu velho malte e até repetiu... E lá aqueceu, como previsto, conseguindo dormir.

Pergunto-me, até hoje, se a minha leitura das regras religiosas muçulmanas esteve ou não correcta. E será que me posso considerar culpado se acaso o meu amigo turco, por via da minha sugestão, mudou de hábitos de vida?

Isabel Meyrelles

Chama-se Isabel Meyrelles, nasceu em Matosinhos, em 1929. Tinha ouvido falar dela, em Portugal, a alguém com quem ela convivera no Grupo Surrealista de Lisboa - o meu primo Carlos Eurico da Costa.

Começou a dedicar-se à escultura no Porto, com 16 anos. Pertenceu ao famoso grupo intelectual do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa. Veio para Paris em 1950. Estudou escultura, na Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts, e literatura, na Sorbonne. Foi tradutora para francês, entre outros, de Jorge Amado e organizou e publicou, na Gallimard, uma interessante Antologia da Poesia Portuguesa do século XII ao século XX. Tem editadas em Portugal as suas "Poesias", nas Edições Quasi (2004). Considera-se mais uma escultora que uma poeta.

Devo dizer que, à excepção de alguns textos numa antologia, e de fotografias de algumas das suas esculturas, desconhecia, quase por completo, a sua obra. E, pessoalmente, talvez apenas nos tenhamos encontrado em algumas noites do "Botequim", em Lisboa, o bar que dirigiu com Natália Correia, ente 1971 e 1977. Fomos apresentados em Paris, há dois meses, numa exposição de pintura, e, posteriormente, deu-me o prazer de aceitar o convite para vir à Embaixada, na data da nossa festa nacional.

Nesse mesmo dia, o Estado português decidiu conceder-lhe uma condecoração - Comendadora da Ordem de Sant'Iago da Espada - que consagra a sua figura de intelectual e o conjunto da sua obra, distinção cujas insígnias lhe entregarei pessoalmente, aqui em Paris, daqui a algum tempo. Saiba mais sobre Isabel Meyrelles aqui.

quinta-feira, julho 23, 2009

Cristina Branco

Foi há cerca de nove anos que ouvi, pela primeira vez, Cristina Branco. Por um mero acaso, foi em Paris, num memorável espectáculo na Unesco, com Argentina Santos e Marisa.

Era um modo diferente de interpretar o fado, que combinava a forma clássica com algo de novo, que era indefinível para um mero leigo, como eu era e sou nestas áreas. Julgo não ter falhado nenhum dos seus discos (tenho mesmo uma edição holandesa) e, se bem que tenha frequentemente enveredado por outros caminhos musicais, a sua voz continua a ser excepcional.

Saiu há poucos meses em França o seu novo trabalho, Kronos, que apresentou numa bem sucedida "tournée" em França. Ouça-a aqui em "Se a alma te reprova".

Patten

Ao ver, há dias, a chegada maciça dos novos parlamentares europeus ao hemiciclo de Estrasburgo, veio-me à memória uma cena passada no último dia em que, em nome da presidência portuguesa da União Europeia, em Dezembro de 2000, aí estive presente.

Como era de regra, um membro do governo do país que detinha a presidência respondia, na bancada do Conselho, às perguntas dos deputados. Um dia falarei de aspectos desse ritual, que tem muito de teatral, a somar-se a algo de criativo.

Para o que aqui hoje interessa, importa recordar que, na bancada em frente, estava o Comissário Europeu encarregado das Relações Externas, Chris Patten. Patten é uma figura simpática, serena, um homem de bem que se portou com grande dignidade quando teve de gerir a difícil transição de Hong Kong, das mãos britânicas para a China. Antigo ministro da senhora Thatcher, é um europeísta convicto, embora "à inglesa". Escreveu, sobre a sua experiência europeia, um livro que recomendo, intitulado significativamente "Not Quite the Diplomat". É, além disso, um homem que olha para a vida com humor, que sabe dar uma boa gargalhada e que atribuiu aos seus cães dois nomes significativos: "Whisky" e "Soda".

A presidência portuguesa havia sempre podido contar com Chris Patten como um aliado fiel dentro da Comissão. Jaime Gama e eu próprio havíamos conseguido, não sem alguns "truques", equilibrar os papéis relativos, com inegáveis "zonas cinzentas" e potencialmente conflituais, de Patten e de Javier Solana. A contento médio dos dois, julgo eu.

Nessa tarde, a última em que eu tinha de dirigir-me ao plenário em nome da presidência, recordo o meu grande cansaço, que se terá revelado na impaciência e eventual rispidez de algumas das minhas respostas, nas mais de duas horas desse interminável e muitas vezes inglório exercício. Patten tê-lo-á notado e, num determinado momento, pelas mãos de uns dos fâmulos vestidos de pinguim, que contrastam vivamente com a modernidade do areópago, chegou-me um bilhete, que guardei: "Coragem, Francisco. Falta pouco! Daqui a semanas, andarás pela 5ª avenida a respirar o ar do Novo Mundo. Entretanto, este teu amigo terá de ficar por aqui mais uns anos. Lembra-te dele! Amigavelmente, Chris".

Patten referia-se à minha saída do governo e ida para embaixador junto das Nações Unidas, em Nova Iorque. Nenhum de nós sabia que eu acabaria por ficar por lá, como embaixador, ainda menos tempo do que o que a ele lhe restava como Comissário Europeu. Como alguém dizia, é a vida!

quarta-feira, julho 22, 2009

Mercedes

Numa noite, nos idos de 80, o embaixador português em Angola saiu de um jantar em minha casa, no "compound" da Embaixada - onde eram os escritórios e muitos de nós então vivíamos -, e arrancou ao volante para a sua residência, no bairro de Miramar. Tentava chegar antes da meia-noite, hora do "recolher obrigatório", que quase sempre implicava a possibilidade de encontrar patrulhas armadas, de humores variáveis e imprevisíveis.

Poucos metros corridos na Rua Karl Marx (antigamente, era Vasco da Gama...), enveredou por um caminho mais curto, que passava sob um prédio ocupado por "cooperantes cubanos". Ao aproximar-se do túnel do prédio, depara com umas pessoas que rodeavam uma senhora sentada no chão, aparentemente em dificuldades, que faziam gestos para o carro parar.

Luanda era então uma cidade sob tensão de guerra, mas as condições de segurança na cidade, em especial nessa zona, eram ainda razoáveis. Além disso, o embaixador era homem confiante e muito humano, pelo que não hesitou um segundo e parou. Tratava-se de uma grávida em aflições de parto e os circunstantes pretendiam levá-la para a maternidade de Luanda, o Hospital Josina Machel (antigo Maria Pia). As portas do carro abriram-se de imediato, para deixar entrar a senhora. Mas, fosse pelo esforço, fosse pela pressão do tempo, já não deu tempo e a criança acabou por nascer dentro do carro do embaixador de Portugal.

O nome dado à criança - vá-se lá saber porquê... - foi Maria Mercedes!

segunda-feira, julho 20, 2009

Televisão

O papel da televisão portuguesa na comunidade emigrada é um tema fascinante que Manuel Antunes da Cunha trata no seu recente livro "Les Portugais de France face à leur télévision" (ed. Presses Universitaires de Rennes, 2009).

Estou ainda no início do livro deste doutorado em Ciências de Informação e Comunicação, mas o que já pude ler revela-me um trabalho extremamente interessante e profundo, feito com grande rigor científico.

Este livro permite tornar mais transparente a mensagem cultural que a televisão pública veicula, mesmo quando isso não resulta de uma opção estratégica claramente assumida. E, naturalmente, auxilia também a "ler" o modo como as diversas gerações de origem portuguesa se posicionam face a essa mesma mensagem e como interagem com ela.

domingo, julho 19, 2009

Paris 88

Eugénia de Melo e Castro é uma caso original na música portuguesa contemporânea. Viajante do Atlântico, fez carreira em Portugal e no Brasil e, por mais de uma vez, ao longo das últimas décadas, contribuiu fortemente para o reforço do mútuo conhecimento desses dois mundos tão distantemente próximos.

Cantou com os melhores do Brasil, usando sempre, sem complexos, o seu "português de Portugal".

Será impressão minha ou o mundo musical português não a aprecia como deveria apreciar? E porque será?

Como aperitivo aos seus já muitos e belos discos, deixo, nesta noite de verão, e nem de propósito, o seu Paris 88.

sábado, julho 18, 2009

Bela frase


"Quem me dera não ter nascido em Portugal para poder ter a incrível experiência de visitar um país como este".

Frederick Fannon, na revista "Up!" da TAP

Maspero

Entre 1956 e 1975, uma livraria fazia parte do circuito de um certo Portugal político em Paris. A "Joie de Lire", na rue St. Severin, junto à place St. Michel, propriedade do editor François Maspero, era um ponto de encontro de muitos, que por aqui viviam, com outros que, como eu, por aqui passavam, a partir da segunda metade dos anos 60. Para aquela espécie de turistas políticos que alguns de nós então éramos, a Maspero (ninguém dizia a "Joie de Lire") era uma "meca" da livralhada inacessível em Portugal, à qual se juntavam panfletos e publicações dos partidos portugueses na clandestinidade, que despertavam a nossa imensa curiosidade.

François Maspero tinha como orientação não entregar à polícia - à "polícia da burguesia" - quem fosse apanhado a roubar livros, o que criou, em muita gente, uma espécie de impunidade que, ao que se dizia, terá acabado por levar a livraria à ruína económica. Fui testemunha presencial de uma frutuosa e furtuosa "romagem" à Maspero de um amigo português, ao tempo estudante em Paris, convenientemente dotado de um avantajado capote alentejano, que dava espaço para um eficaz "arquivar" de volumes. Ainda o estou a ouvir: "Ora cá está ele! Faltava-me o volume 8 das obras do Bataille!". E lá desapareceu o avantajado volume da Gallimard no bojo do capote...

quinta-feira, julho 16, 2009

Quino

Confessados ou não, todos temos os nossos heróis. Eu tinha um, cuja foto não conhecia nem sabia por onde andava. Nem, ao certo, se ainda era vivo.

Assim, nem queiram imaginar qual não foi o meu espanto quando, há dias, num evento público em Paris, em que nada fazia supor que ele estivesse, vi ser chamado ao palco Quino, o inventor dessa magnífica Mafalda da banda desenhada. Devo ter sido das primeiras pessoas que, na sala, se levantaram, de imediato, a dar-lhe merecidas palmas. Não por aquilo por que era premiado, mas como agradecimento a quem tanto prazer me proporcionou.

Para mim, se há por aí alguns génios, Quino é um deles.

Gritos

Por detrás de belas casas do centro de Londres, construídas nos séculos XVIII ou XIX, situam-se os "mews", espaços de antigas cavalariças ou de guarda de carros de cavalos, hoje muitas vezes transformados em luxuosos apartamentos, com um discreto acesso por ruas laterais.

A caminho do pátio das traseiras da residência da Embaixada de Portugal em Londres, em Belgrave Square, existem requintados "mews", habitações de gente abastada, a avaliar pela qualidade dos automóveis que por lá se acolhem e pelos preços que se sabe serem praticados na área.

Um dia, o cozinheiro do embaixador deu-me nota de "uma coisa desagradável" que se passava num dos "mews" adjacente ao nosso prédio: em algumas manhãs, uma senhora dava berros terríveis, que, bem cedo, lhe acordavam a criança e lhe infernizavam o início do dia. Os factos tinham lugar aperiodicamente; havia semanas com gritaria, intervaladas com tempos silenciosos. Até já tinha pensado chamar a polícia, mas preferiu dar-me conta pessoal do sucedido. Como não me voluntariei para testemunhar matinalmente os factos, nem o próprio embaixador se queixara, procurei saber junto de outros ocupantes da residência se os confirmavam. Todos anuíram, embora, por estarem mais distantes, as suas queixas fossem bastante mais limitadas.

Fiquei intrigado e, confesso, cheguei a suspeitar de vícios ocultos de alguma vizinha, embora numa qualquer pouco comum e errática prática matinal. Até que alguém, já não sei bem como, me resolveu o mistério: a vizinha dos gritos era, nem mais nem menos, a fabulosa soprano Jessye Norman, que ensaiva a sua voz aos alvores dos dias em que passava por Londres, no curso das suas tournées.

Imaginem que tínhamos chamado a polícia ou eu tinha pedido para que ela se calasse...

terça-feira, julho 14, 2009

Le Droit à la Paresse

A partir de hoje e até inícios de Agosto, um indeclinável direito a uma "vilegiatura estival" (era assim que o desaparecido 'O Vilarealense' anunciava a partida, para banhos, dos seus assinantes) faz com que este blogue entre em serviços mínimos e até erráticos.

No fundo, trata-se apenas do exercício do "direito à preguiça", a que se refere o livro de Paul Lafargue, de que aqui deixo uma imagem, uma figura franco-cubana do século XIX, sobre quem um dia valerá a pena voltar a falar-se neste blogue, tanto mais que se passeou pelo Portugal desses tempos, embora, ao que conste, não tenha levado o seu famoso sogro consigo.

Palma Inácio (1922-2009)

Há menos de uma semana, aqui em Paris, falei longamente sobre Palma Inácio com Mário Soares. Comentámos que a sua vida daria um belo filme. Acabo de saber que morreu hoje, na data mais revolucionária da França. O dia da Tomada da Bastilha é um dia bonito para Palma Inácio morrer.

Confesso que sempre tive uma grande admiração por Hermínio da Palma Inácio, como uma das grandes figuras da resistência ao salazarismo. Tive o feliz ensejo de lho dizer, há já bastantes anos, dele recebendo um agradecimento de grande modéstia. Desde jovem, lutou intensamente pela liberdade, tendo estado envolvido em imensas tentativas de sublevação. Foi preso e violentamente torturado pela PIDE, com um comportamento de grande dignidade na cadeia. A foto que ilustra este post recorda a sua saída de Caxias - a saída dos presos políticos, a seguir ao 25 de Abril, que foi atrasada precisamente porque o general Spínola não queria Palma Inácio em liberdade. E porque os outros presos não queriam sair sem ele.

Mário Soares contou, nessa bela noite de memórias em casa de amigos comuns, algumas histórias curiosíssimas sobre as suas relações com Palma Inácio. Entre as quais, o dia em que teve de escondê-lo em casa de José Fernandes Fafe, na linha do Estoril, depois de uma das suas épicas e legendárias fugas da prisão.

Durante muito tempo, o facto de Palma Inácio ter sido o chefe do grupo que assaltou a filial do Banco de Portugal, na Figueira da Foz, fez convergir na sua pessoa uma ignominiosa imagem de alguém que se havia apropriado, para finalidades pessoais, do dinheiro então obtido. Esse era o objectivo insultuoso que o regime ditatorial dele quis dar à opinião pública. Porém, quem conhece a história da oposição ao Estado Novo sabe bem que Palma Inácio foi um homem sério, que nunca utilizou essas verbas em seu proveito e que viveu sempre com grandes dificuldades, devotado às causas políticas em que acreditou. Mas terá sido essa miserável "fama" a razão que atrasou a atribuição de uma merecida Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, com que o presidente Jorge Sampaio o agraciou em 2000.

Leia mais sobre Palma Inácio aqui e aqui.

segunda-feira, julho 13, 2009

14 juillet

Há já uns bons anos, sem que me tivesse apercebido da data, cheguei a Paris, ido de comboio de Bruxelas, na noite do 14 de Julho, a festa nacional francesa. Havia sido difícil reservar um hotel próximo do "Périphérique", porque era importante conseguir sair bem cedo para o aeroporto, no dia seguinte, para partir para outro continente.

O motorista que me aguardava na Gare du Nord foi-me dizendo que não ia ser pêra doce chegarmos ao hotel, que ficava perto da Étoile. Tinha razão. O trânsito estava impossível e, chegados ao Arco do Triunfo, foi preciso parlamentar com uns polícias para atravessar a praça. Mas lá conseguimos arribar ao destino.

Entretanto, o motorista tinha-me chamado a atenção para o interesse em não perder o fogo de artifício dessa noite, o maior e mais imponente nos céus de Paris, durante todo o ano. Desde sempre, desde as festas da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, passando pelo "4 de Julho" em Manhattan, sempre fui um fã das sessões de fogo de artifício, essa maravilhosa arte efémera que alegra as noites de verão.

Com a sugestão do motorista ainda no ouvido, mas consciente de que a hora do espectáculo se aproximava, perguntei na recepção do Hotel Raphael, onde me iria hospedar, se me aconselhavam algum local, de onde ainda pudesse ver o espectáculo. A reacção do empregado foi de uma snobeira tipicamente parisiense. Depois de me dar a chave do quarto, olhou para o relógio e adiantou, num tom displicente: "As pessoas acham que o terraço do nosso hotel é, muito provavelmente, o melhor local de Paris para ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Aliás, o fogo desta noite começa daqui a 15 minutos e vamos servir champanhe no terraço dentro de... 3 minutos".

Foi quase uma noite memorável, com técnicas de pirotecnia que não imaginava possíveis. Presumo que, de lá para cá, tudo esteja ainda mais requintado no fogo da festa parisiense, tanto mais que, este ano, a Torre Eiffel, que comemora os seus 120 anos, será ainda mais o centro principal do evento.

Ainda não sei onde vou, logo à noite, ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Mas não excluo, em absoluto, tentar-me fazer convidado para o terraço do Raphael...

Boavista

Há uma imensa injustiça quando um emblema a quem imensos milhares dedicaram as suas emoções e afectos, ao longo de um historial de largas décadas, se perde por virtude de gestões ruinosas e de decisões assentes na irresponsabilidade.

Há uns anos, foi o Salgueiros, há pouco tempo esteve para ser o Leixões, agora foi a vez do Boavista. A macrocefalia do Futebol Clube do Porto não justifica tudo.

A desqualificação do Boavista é um momento triste para a cidade do Porto e para o futebol português em geral. Mas o que é ainda mais triste, porque sintomático do estado em que vive o futebol português, é não ver pessoalmente responsabilizados e punidos com severidade criminal, até ao limite máximo das consequências da lei, os responsáveis directos por este tipo de descalabros que afectam os nossos clubes, que os endividam e arruínam para satisfação das suas vaidades e glórias pessoais, arrastando consigo o desemprego, para os jogadores e os restantes empregados dos clubes. Responsáveis que têm nomes, alguns bem sonantes, como todos sabem. E que por aí vão continuar a andar à solta, bem na vida e de costas direitas.

Deixo um abraço de simpatia aos meus amigos boavisteiros, em cujo admirável Campo do Bessa me "estreei", numa tarde de 1966, como um dos menos bem sucedidos "laterais-direitos" dos anais da equipa de futebol da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto...

domingo, julho 12, 2009

Armstrong

A Volta a França já não desperta por aqui o entusiasmo de outros tempos, embora uma parte do país mantenha ainda uma nostálgica imagem dos tempos de Anquetil, Merckx, Hinaut, Induráin e de outras grandes figuras que, a partir da França, ajudaram a fazer a história do ciclismo mundial. Os sucessivos escândalos do doping, com a noção de que algumas das melhores corridas podem ter sido falseadas, bem como a concorrência mediática de outros eventos, acabaram mesmo por diluir o fantástico feito de Lance Armstrong, vencedor sucessivo de sete "Tours" (1999-2005), e que, este ano, decidiu regressar à competição.

Armstrong, em toda a sua glória-tragédia, desde o "record" de vitórias em "Tours de France" à ainda mais admirável vitória pessoal sobre o cancro, converteu-se, definitivamente, numa figura altamente polémica, que suscita emoções de dimensão irracional, potenciadas por um estilo pessoal com alguma arrogância. Por isso, a somarem-se às obras de cariz hagiográfico, que o louvam quase à escala dos deuses, aparecem, em paralelo, libelos impressos pelos seus detractores radicais, ambos quase no limiar do ridículo.

O "óscar" da paranóia anti-Armstrong deve ir, contudo, para "Lance Armstrong, l'abus!", um requisitório assinado por Jean-Emmanuel Decoin, chefe de redacção do "L'Humanité", órgão do velho Partido Comunista Francês, que considera que o "Tour de France" foi "desnaturado" pelo "imperialismo do post-Reagan". Segundo uma recensão do livro feita pelo "Le Monde" (confesso não ter tempo para a leitura destes exageros editoriais), o livro, epicamente dedicado "ao ciclista desconhecido", avança mesmo com um imperativo "Armstrong, go home!".

O anti-americanismo é uma arte que certa França cultiva com um requinte tal que, por vezes, chega a ser interessante de observar, pelo que releva de idiossincrático e quase identitário. Mas há limites!

sábado, julho 11, 2009

Duas rodas

Eu consigo perceber, sem dificuldade, que se tente privilegiar quem viaja de bicicleta, dando-lhes faixas de circulação próprias, protegendo-os e estimulando o seu uso, mesmo se, por vezes, o comportamento dos respectivos condutores fica algo à margem das regras comuns de trânsito. Porém, trata-se de um meio de transporte que, além de saudável, é não poluente e cuja utilização com velocidades razoáveis tem, sem contestação, um impacto global positivo sobre as sociedades.

O que eu não entendo, por mais que me esforce, é por que diabo temos de sofrer, cada vez mais, uma espécie de assédio de tráfego por parte dos veículos motores de duas rodas, que enxameiam as nossas ruas e estradas. Que eles por aí andem, muito bem: têm um direito como qualquer outro. Mas é inexplicável a impunidade com que não cumprem as regras mais elementares de trânsito, como ultrapassam por ambos os lados das nossas viaturas, como não respeitam os traços contínuos, como se enfurecem e se tornam violentos se nos limitamos a exercer esse direito básico que é podermos ocupar a totalidade das nossas faixas de rodagem.

Em cidades como S. Paulo, no Brasil, os chamados "motoboys" são hoje uma raça humana verdadeiramente terrorista, que obriga a um aturado esforço de concentração dos condutores automóveis para deixarem o espaço necessário a "suas excelências" circularem como lhes aprouver, pela esquerda ou pela direita, zigzagueando em frente às viaturas, sem o menor respeito pelos limites de velocidade, buzinando a todo o momento e assumindo comportamentos de elevada agressividade se acaso consideram, com razão ou sem ela, que os seus "direitos" adquiridos (e eles estão, de facto adquiridos, porque o grupo faz hoje forte chantagem política) estão a ser limitados. Para além de, com frequência, pontapearem os carros e quebrarem deliberadamente espelhos retrovisores.

Porém, um fim-de-semana por estradas de França provou-me que o problema tem por aqui uma dimensão já muito similar, obrigando a um esforço particular de atenção por forma a permitir que os "senhores das motos" se possam passear à vontade entre os automóveis, num comportamento sem rei nem roque, desde os distribuidores de pizzas aos cultores canastrões que vão "on the road" num estilo "Easy Ryder", na melhor das hipóteses ufanos nas suas Harley-Davidson. E como, em França, se não vê um polícia de estrada por centenas de quilómetros, a lei da selva está hoje por aqui instituída.

Resta dizer que, em Portugal, as coisas vão por caminho perfeitamente idêntico. Pior: em certas zonas, há mesmo uns selvagens, com ou sem capacete, que transportam crianças entre adultos, numa impunidade total, ficando-se com a sensação de que estão protegidos por uma espécie de benévola antropologia ruralista.

Um ortopedista dizia-me, há anos, com algum sadismo, que a anarquia da circulação das motos em Itália tornava o país num "paraíso" para os médicos da sua especialidade. Eu, confesso, não lhes desejo mal, mas começo a ficar farto. E que dirá o meu amigo e "motard" Manuel Serra a tudo isto?

quinta-feira, julho 09, 2009

Robert McNamara (1916-2009)

Julgo que foi a primeira das várias vezes em que, por dever de ofício, tive de passar longas horas num já célebre barracão de conferências que existe em Maastricht, cidade holandesa encravada na Alemanha, que dá pela sigla de MECC. E nunca pela melhor razão: a excelente feira de antiguidades que lá tem lugar, no primeiro semestre de cada ano.

Estavámos em meados de 1990 e recordo-me que se tratava de uma qualquer conferência sobre questões de cooperação para o desenvolvimento, tema a que então especialmente me dedicava. Robert McNamara era um dos conferencistas e, devo confessar, a minha atenção ao que iria dizer havia sido mobilizada na razão directa da imagem, quase fotográfica e caricatural, que eu dele tinha - uma figura de cabelo oleadamente penteado para trás, qual ministro de Salazar. Lembrava-me, e lembro-o aqui, a mostrar um mapa do Vietnam, nos seus tempos de secretário da Defesa dos EUA, com um ponteiro que devia assinalar bombardeamentos e "santuários", no auge dessa carnificina sem sentido, para a qual a lógica cega da Guerra Fria tinha conduzido a América. E da qual o orgulho do país saiu com uma profunda ferida, que veio a conduzir à posterior eleição de Ronald Reagan.

Ao meu lado, lembro-me bem, estava sentado Abdul Magid Osman, então ministro das Finanças de Moçambique, velho amigo dos tempos em que ambos trabalhávamos na Caixa Geral de Depósitos, no início dos anos 70. E foi com Abdul que comentei aquilo que já sabíamos ser a surpreendente transfiguração de McNamara: do infatigável "warrior" anti-vietcong, tínhamos perante nós um homem sensível à situação do mundo em desenvolvimento, atento às suas necessidades, titulando a alteração da matriz dos estáticos "programas de ajustamento estrutural" do Banco Mundial, o organismo a que McNamara agora presidia. O jingoísta McNamara era agora um homem quase sereno, a caminho da reconciliação com o seu passado.

Seis anos mais tarde, Robert McNamara publicou "In Retrospect - The Tragedy and Lessons of Vietnam", um livro que aconselho vivamente a quem não tiver a fraqueza de se não querer enfrentar com a verdade. Um livro que honra um homem que não teve o receio de reconhecer os seus erros, por mais trágicos que hajam sido.

Em 2001, tive o privilégio de ouvir de novo McNamara no Council on Foreign Relations, em Nova Iorque, apontar, a tempo e horas, os perigos que detectava na equipa do recém-eleito George W. Bush. Recordo a sua lucidez, que não era minimamente incompatível com o seu patriotismo, que alguns neo-mccaristas, num certo momento, quiseram pôr em causa.

McNamara morreu agora, com 93 anos. Desconheço se chegou a ter a consciência da esperança que Obama representa para uma certa América. Porque Obama é hoje - e esperamos que possa continuar a sê-lo - a América que a contrição de McNamara também ajudou a construir.

quarta-feira, julho 08, 2009

Terrorista

A história foi-me contada ontem em Paris, no intervalo de uma função oficial.

Estava-se nos anos 60 ou 70. Três "terroristas" tinham sido presos, no Norte de Angola, e mantinham-se alinhados, na parada de uma unidade militar portuguesa. Eram homens que combatiam pela independência da sua terra, contra o "nosso ultramar". O exército tinha-os neutralizado e aguardavam transporte para Luanda.

Num determinado instante, um dos "turras" (era assim que os "terroristas" independentistas eram chamados nesses tempos) deu um salto em frente e voou para apanhar um papel que o vento havia feito deslocar na parada do quartel. A rapidez do seu movimento corporal apanhou de surpresa os militares à guarda de quem estavam, que puxaram logo de arma, numa reacção que, por pouco, não foi violenta. Mas o "turra" rapidamente regressou à formação alinhada com os seus camaradas, recolhendo logo o papel no bolso.

Os militares portugueses não "brincavam em serviço" e, de imediato, exigiram a entrega do papel. Quem sabe, podia tratar-se de um documento estratégico, a revelação de planos militares. Se o "turra" tinha corrido o risco de avançar para agarrar o papel, numa ousadia que podia ter-lhe custado a vida, alguma valia ele teria. O detido ainda hesitou mas, face ao óbvio imperativo, acabou por entregar o papel.

O resultado foi mais simples do que se esperava: tratava-se de uma página do jornal "A Bola", esse federador "avant la lettre" do grande e imparável mundo que é a lusofonia desportiva.

Lula

Foi uma "festa da lusofonia", como alguém qualificou a jornada que, na UNESCO, consagrou no dia 7 de Julho o presidente brasileiro, Luíz Inácio Lula da Silva, como o detentor, em 2009, do Prémio Houphouet-Boigny para a paz.

O chefe de Estado brasileiro, perante uma entusiástica assembleia de líderes políticos do mundo e uma multidão de admiradores, recebeu o preito de respeito da comunidade internacional, pela sua contribuição à causa da paz, do desenvolvimento e da redução das desigualdades.

Ando há muitos anos nesta vida internacional e, como é óbvio, tenho sido testemunha de diversas cerimónias de consagração de personalidades, sendo algumas mais elegias do que outras, quase sempre encadernadas na forma de exercícios de retórica elogiosa. Mas, devo confessar, raras vezes pude testemunhar um movimento de tão espontânea e genuína adesão ao sublinhar das qualidades de uma personalidade como o presidente Lula da Silva.

Portugal teve, nesta cerimónia, dois momentos marcantes. O primeiro no depoimento do primeiro-ministro José Sócrates, num improviso emocionado, que sublinhou a contribuição do chefe de Estado brasileiro para as grandes causas da modernidade e do progresso. O segundo no testemunho de Mário Soares, presidente em exercício do prémio, que substanciou as razões da atribuição deste galardão ao chefe de Estado brasileiro.

E foi muito bom ouvir a língua portuguesa, em toda a cerimónia, reconhecida por uma plateia global. Este dia fez muito bem ao estatuto do Português à escala multilateral.

terça-feira, julho 07, 2009

Imbecilidade

Um jornalista do Público considera que a entronização do Cristiano Ronaldo no Real Madrid mais não é senão o "O Triunfo da Imbecilidade". Porém, não concordo que isso seja a "alarve disponibilidade das multidões para perderem minutos, horas, das suas vidas a seguir de perto qualquer banalidade quotidiana da vida de um ídolo".

Posso compreender o sentimento de alguma estupefacção perante um exercício mediático de sacralização de um habilidoso com um bola de couro, esta espécie de hagiografia prematura de um miúdo apenas fisicamente talentoso, investido de um enorme poder de sedução e esperança. Mas eu coloco-me no lugar dos adeptos do Real e imagino, desde já, a ânsia das vitórias que a figura de Ronaldo terá provocado nos mais de 80 mil "merengues" que estiveram no Santiago Bernabéu.

A felicidade faz-se hoje bastante desta adesão aos sucessos que outros protagonizam, de quem nos assumimos próximos, colectivamente juntos na vitória, sempre com a derrota de outros como aparente contraponto indispensável. Para quem, como eu, tem a anti-competição como sólida e permanente doutrina de vida, confesso-me um tanto perdido neste ambiente. Mas será isto a alienação de que falava um clássico fora de moda? Talvez seja, mas esta comemoração das vitórias mais não é, para muitos, do que o complemento natural de existências simples, que seriam ainda menos relevantes se não se juntassem nessa onda gloriosa colectiva. É triste reconhecer isto, mas é a realidade.

Só posso desejar que o nosso madeirense de sucesso, do alto dos seus 24 anos, consiga suportar a carga de esperança agora nele investida. E, com clara consciência desta minha debilidade afectiva, sem qualquer ligação particular ao Real, lá estarei, nos fins de semana, à espera dos seus golos e dos seus êxitos, exultando com os primeiros e ansiando pelos segundos. Como estive nos tempos do Manchester, sucedâneo do que deixou de fazer no Sporting. Da mesma maneira que estive com Figo, no Barcelona e, mais tarde, no mesmo Real Madrid. Por isso, com total serenidade, não consigo condenar os adeptos do Real, hoje em delírio, nem lhes chamo imbecis.

Quantos de nós não sofremos de taquicardias patetas pelo nossos clubes, pelas nossas selecções nacionais, pelas nossas bandeiras desportivas? No futebol como no hóquei (lembram-se das jornadas de Montreux?), no atletismo (recordo a Rosa Mota ou o Carlos Lopes), na natação (eu dei braçadas morais a acompanhar Baptista Pereira, nas travessias da Mancha) ou no ciclismo (quem não sofreu pelo Agostinho?), quantos não alinhámos nessa magnificação dos ídolos desportivos, transformando meros eventos em casos-de-vida-ou-de-morte?

O desporto pode ser e é, muitas vezes, um tempo de evidente irracionalidade. Mas, ao fim de não poucas décadas de experiência, concluí que a mobilização colectiva da afectividade faz parte da nossa vida e, bem-pensantes à parte, constitui parte do sal de todas as sociedades contemporâneas.

Boa sorte, Cristiano Ronaldo! Só espero que a conversa com esse mago "merengue" que se chama Alfredo Di Stefano lhe venha a ensinar algumas das regras do jogo, não do futebol, mas dessa outra coisa bem mais complexa que é ser-se um nome público em Espanha: amado, odiado ou uma coisa depois da outra, qualquer que seja a ordem dos factores.

segunda-feira, julho 06, 2009

Grave

Há dias, dei por mim a perguntar-me de onde viria aquele fácies grave que quase todas as modelos assumem na "passerelle", aquele ar de zangadas com o mundo que parece ser estilo obrigatório da profissão. Porque não sorriem, quando muitas delas (e nós, por tabela) só ganhariam com isso?

E cheguei à conclusão de que, sendo Paris a capital da moda, talvez tenham apanhado aquele trejeito no "carão" fechado que caracteriza a grande maioria dos empregados de café e restaurantes desta cidade, os quais, em geral, levam esta forma de antipatia snob a um grau de sofisticação que quase se transformou já numa caracterização antropológica da espécie.

Livros


Chegou-me uma petição para mobilizar a opinião pública com o fim de evitar que, "em especial", a Imprensa Nacional / Casa da Moeda proceda à destruição de livros velhos e invendáveis do seu fundo editorial.

Acho esta acção muito meritória, mas pergunto-me por que razão a "sociedade civil" não tem zelo e exigência exactamente idênticos junto das editoras privadas, que, de há muito e ao que sei, levam a cabo esse mesmo tipo de acção. Será que se singulariza a IN-CM porque é "Estado" e reivindicar contra o Estado está no "l'air du temps"?

Com o devido respeito, pergunto-me mesmo se não poderia lançar-se um Banco Editorial contra o Analfabetismo (ou contra a Iliteracia, o que seria mais realista), onde pudessem ser recolhidos os fundos editoriais que por aí andam a ser vendidos ao quilo. E, quem sabe, poder oferecê-los pelo mundo de língua portuguesa, para locais onde há imensa falta de coisas escritas em português. E não apenas literatura portuguesa, como o viés patrioteiro de alguns apenas quer promover.

sábado, julho 04, 2009

Terreiro do Paço

O Público de ontem trouxe várias sugestões arquitectónicas alternativas ao projecto oficial existente para o Terreiro do Paço, em Lisboa. O preço que este último vai implicar será, aos olhos de alguns, pouco compatível com os tempos de austeridade em que vivemos.
Tudo ponderado, confesso que não posso eximir-me à tentação de avançar com uma outra hipótese: e se deixassem ficar tudo como estava, antes das obras?

Em tempo: dizem-me, de Portugal, que alguém quis ver neste singelo post uma crítica ao meu Amigo e meu Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa. Será que preciso de dizer algo mais?

Agostinho

Começa hoje o Tour de France - a Volta a França. Embora envolta em muitos problemas e polémicas, continua a ser a prova ciclística maior à escala mundial.

Para nós, portugueses, a Volta à França teve um nome que lhe ficará eternamente associado: Joaquim Agostinho, com dois 3.ºs lugares e seis outras presenças nos primeiros dez lugares. Muito embora, convém recordá-lo, uma grande figura do ciclismo português, Alves Barbosa, tivesse obtido, ainda antes de Agostinho, um honroso 10.º lugar. Mais tarde, José Azevedo obteve um 5.º e um 6.º lugar e um homem saído a emigração portuguesa para o Luxemburgo, Acácio Silva, teve também participações honrosíssimas, sendo, aliás, o único português a ter usado a "camisola amarela" de liderança do Tour.

Mas o caso de Joaquim Agostinho foi muito diferente. Como ontem me lembrava alguém que por aqui anda há muitos anos, a presença de Agostinho e os seus êxitos foram um sopro de orgulho para os portugueses que andavam emigrados por esta Europa. No seu estilo rude mas simples, na expressão da sua força e teimosa determinação, Agostinho era "a cara" desses homens que os tempos difíceis em Portugal tinham atirado para a nobre aventura da emigração. Eles reviam-se em Agostinho e os seus feitos ajudavam a compensar as dificuldades do seu quotidiano e a servir de moeda de troca face às discriminações preconceituosas que muitos sofriam.

Ao tempo, em Portugal, as crónicas de Bruno Santos e Carlos Miranda, na "Bola", contavam-nos o dia-a-dia das peripécias de Agostinho em terras de França, nesses Tours onde conquistou várias etapas mas onde nunca obteve a vitória final, em luta perante a fina-flor do ciclismo mundial. A jornada épica do Alpe d'Houez, no ano em que terminou em 3º classificado, mas igualmente os momentos do Tourmalet, de l'Aubisque, do Galibier ou do Balon d'Alsace, bem como a chegada ao Puy de Dôme, fazem parte do meu imaginário de desportista de sofá. E estou certo que isso será comum a muitos portugueses.

Neste dia em que mais um Tour se inicia por aqui, é um grande gosto para o embaixador de Portugal em França lembrar a honrada figura de Joaquim Agostinho.

sexta-feira, julho 03, 2009

Credenciais

A apresentação por um embaixador das suas cartas credenciais, perante um chefe de Estado estrangeiro, é um acto simbólico que, com os tempos e em alguns locais, foi perdendo muita da solenidade de que se revestia. Noutros, porém, mantém-se ainda rodeado de um certo formalismo protocolar, em especial nas monarquias. O acto é, em si mesmo, a simples entrega de uma carta, na qual o chefe do Estado do país de onde provém o embaixador dá conhecimento ao seu homólogo, no país onde esse diplomata vai trabalhar, da decisão de o nomear como seu representante.

Quando apresentei as minhas credenciais ao presidente Nicolas Sarkozy, não pude deixar de lembrar-me daquela que terá sido a mais épica das cerimónias do género em que esteve envolvido um embaixador português, curiosamente alguém que também já chefiou a Embaixada portuguesa em França.

A história data do início dos anos 80. Esse meu colega prestava serviço num país do Oriente e competia-lhe apresentar as suas cartas credenciais num outro Estado, uma pequena monarquia vizinha, na qualidade de embaixador não-residente. Não obstante diversas tentativas, tinham-se passado já largos meses sem que conseguisse obter uma data para a cerimónia perante o rei desse país. Um dia, depois de bastantes insistências, lá lhe explicaram que havia um problema de muito difícil solução: é que, de acordo com os sábios locais, ele estaria em conjugação astral negativa com Sua Majestade, pelo que o encontro entre os dois poderia ter repercussões trágicas, presume-se que para o rei.

Recordo-me da noite, em Luanda, em que esse meu colega, de passagem por Angola, me contava a situação que vivera, comentando: "Eu já nem sabia o que dizer a Lisboa, mas, como deves imaginar, não me arriscava a colocar, numa comunicação escrita ao nosso Ministério, que não conseguia apresentar as credenciais, por estar em "conjugação astral negativa" com o rei. Seria um gozo geral..."

Como era uma pessoa muito obstinada, acabou por obter um compromisso, que permitia a realização do acto de entrega, embora com algumas limitações: ele não se aproximaria do rei, ficando apenas à entrada da sala, havendo um portador que levaria as suas cartas credenciais a Sua Majestade.

O dia da cerimónia lá chegou, mas o meu colega, que achava aquilo tudo uma "chinesice" sem sentido, sentiu-se, de repente, tentado a não respeitar o acordo. E, chegado ao salão protocolar, avançou em direcção ao rei. A sala entrou numa agitação frenética, embora sempre num total silêncio. À medida que se aproximava do rei, levantavam-se mãos atrás do soberano, intimando-o a recuar. As caras dos cortesãos estavam lívidas de terror, mas o nosso homem lá levou a sua avante: entregou as suas credenciais, cumprimentou o rei e com ele teve uma pequena conversa. Aparentemente, o soberano desconheceria o "perigo" que o embaixador português representava para o equilíbrio da sua situação astral e ter-se-á comportado com majestática normalidade.

O que se passou depois, foi pouco simpático, embora compreensível. Até à sua saída do país, as autoridades do protocolo trataram-no com uma aberta hostilidade e, ao que soube, o frustrado negociador, com quem ele se comprometera, ter-se-á evaporado.

Nada sei do curso imediato das relações de Portugal com aquele pequeno país oriental, mas imagino que, por algum tempo, também terão ficado algo afectadas...

Curiosidade

Ontem, durante uma cerimónia de atribuição de um doutoramento honorário na Universidade do Havre, o "padrinho" de um dos agraciados considerou, no seu discurso, que as ciências se dividem em "humanas" e "inumanas". A sala agitou-se, embora sem sururu de maior por parte dos "inumanos" presentes.

No final, apurei que o autor da distinção se chamava Pierre Thorez. Nada mais nada menos, filho de Maurice Thorez, o legendário secretário-geral do Partido Comunista Francês.

quinta-feira, julho 02, 2009

Rui Paula

Foi ontem à tarde, na Comédie Française. Rui Paula, o "chef" duriense que tem feito a glória do seu restaurante DOC, na estrada entre a Régua e o Pinhão, recebeu o prémio "O Melhor Primeiro Livro de Cozinha", durante o "Gourmand World Cook Books Awards'09".

O livro premiado foi "Rui Paula - Uma Cozinha no Douro", com textos de Celeste Pereira e fotos de Nelson Garrido, obra que foi igualmente seleccionada para a "short list" do prémio "Melhor Fotografia".

Note-se que o responsável pelos prémios, Édouard Cointreau, expressou publicamente na cerimónia que, na sua opinião pessoal, considerava o DOC "o melhor restaurante do Norte de Portugal".

Parabéns à equipa portuguesa, que esteve em peso no palco da Comédie Française, com o apoio moral do embaixador de Portugal na assistência.

Ah! Resta dizer que o livro traz um artigo da minha autoria, que pode ser ligo aqui.

quarta-feira, julho 01, 2009

Airbus

Há dias, tive a interessante oportunidade de ver voar, no Salon du Bourget, os quatro modelos do Airbus. Aí estiveram, em exibição aérea, um A310 igual ao que anteontem caiu nas Comores, um A340 igual a outro em que, há semanas, atravessei o Atlântico, um A330 similar ao que caiu, nesse mesmo Atlântico e nesse mesmo dia, bem como o A380, o novo gigante dos ares, que pode levar até 853 passageiros.

As viagens aéreas continuam a ser das formas mais seguras de deslocação. Mas a ocorrência de acidentes sequentes com aparelhos da mesma marca tem um impacto psicológico iniludível. Assim, os tempos não estão nada fáceis para a Airbus.

Mangabeira

Demitiu-se do governo brasileiro o ministro para os Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger. Foi sempre uma figura com contornos algo polémicos no seio da classe política brasileira, onde tinha um forte e dissonante recorte intelectual no discurso público. Professor de Harvard, com uma pronúncia de português onde nunca deixaram de ressoar os efeitos da sua longa permanência nos Estados Unidos, introduziu no debate público brasileiro algumas curiosas propostas de natureza prospectiva, muitas delas com um cariz de ruptura com o statu quo, a principal das quais disse respeito à sensível questão da Amazónia.

Conheci pessoalmente Mangabeira Unger numa semana de reflexão política realizada na Grécia, nos idos de 90. Na ocasião, ao saber que havia um brasileiro no grupo, tive a imediata tentação, por um vulgar tropismo lusófono, de ir ter com ele. A surpresa foi imensa: deparei-me com um brasileiro que falava um português "macarrónico", muito mais à vontade em inglês, e que estava a anos-luz do esteriótipo do brasileiro "cordial" com que vulgarmente nos confrontamos. As suas teses, na área da ciência política, impressionaram-me então mais do que me convenceram, mas revelaram-me estar perante um intelectual de mérito. Isso mesmo confirmei, anos mais tarde, quando estive em Harvard, ao encontrar a estante de uma livraria recheada de obras de Unger.

Após chegar ao Brasil, em 2005, verifiquei que Mangabeira escrevia regularmente, na "Folha de S. Paulo", artigos fortemente críticos do presidente Lula. Foi, por isso, com alguma surpresa que o vi entrar no segundo Governo do Presidente brasileiro. Voltámos a encontrar-nos, e a recordar os dias comuns na Grécia, já em Brasília, quando pude tê-lo como convidado na Embaixada.

Mangabeira Unger regressa agora a Harvard. No futuro, pode vir a ser curioso ler o que terá recolhido deste seu efémero mergulho na política real.

Maria João Pires

Foi já no dia 24 de Junho. Não pude ir, porque tinha um outro compromisso inadiável. Mas - diz-me quem esteve - o espectáculo que Maria João Pires apresentou em Paris, no Théâtre des Champs Elysées, terá constituído um enorme sucesso.

Chopin e Liszt foram os compositores escolhidos nesta apresentação da pianista portuguesa, actualmente residente no Brasil.

Maria João Pires, por razões que não cabe aqui referir e sobre as quais não me compete a mim elaborar, terá uma espécie de contencioso afectivo com um certo Portugal. É pena mas, no que se refere à Embaixada de Portugal em Paris, poderá sempre contar com todo o apoio que considerar útil da nossa parte. Para além de ter, no próprio embaixador, um fã incondicional.

Em tempo: Leio agora que Maria João Pires afirmou a um repórter português que vai renunciar à nacionalidade portuguesa. É pena, mas eu acho que o contrário não é verdade: os portugueses não vão renunciar a Maria João Pires

Crise

Teve ontem lugar na Embaixada de Portugal em Paris um seminário sobre as consequências da crise económico-financeira para a empresas de capital português em França.

A organização deste evento, que resultou de uma sugestão que eu próprio fiz à Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa, presidida por Carlos Vinhas Pereira, teve o economista Christian de Boissieu na coordenação do debate, o qual envolveu bastantes empresários, com a participação da AICEP.

A continuidade desta "aliança" entre a Embaixada e a Câmara, iniciada pelo meu antecessor, é, a meu ver, um ponto essencial para garantir uma estratégia coordenada para a nossa presença em França.

Madoff

Mais do que os 150 anos de cadeia que o sistema judiciário americano aplicou ao escroque Madoff, surpreende-me a rapidez com que o processo decorreu.

A celeridade também define a qualidade da Justiça de um país. E a morosidade também.

Muitos não saberão, mas uma das piores imagens que Portugal projecta de si próprio no estrangeiro, com largos efeitos no investimento estrangeiro e na fiabilidade dos processos de contratação, liga-se à conhecida lentidão do seu sistema judicial.

La Lys

A foto mostra a casa onde esteve instalado o Quartel-General do Corpo Expedicionário Português (CEP), em Saint-Venant, perto de La Lys. É uma propriedade excelentemente cuidada, com um magnífico jardim e lago, onde existe um turismo de habitação e se preserva com carinho a memória da presença portuguesa. Assumindo, sem complexos, a publicidade, aqui fica uma sugestão de hospedagem para quem quiser fazer uma romagem completa a La Lys, que deve incluir ainda o Cemitério militar português de Richbourg e o monumento evocativo em La Couture, da autoria de Teixeira Lopes.

Acompanhado do Adido de Defesa e da Conselheira Cultural da Embaixada, estive ontem em Saint Venant a estudar com os proprietários do antigo Quartel-General, a família Rousseau, as possibilidades de reforçarem os traços desse singular tempo militar de Portugal em França e de ajudar a transformar o local num traço de união cultural futura franco-portuguesa.

Aproveitando uma indicação dada pelo proprietário da casa, Didier Rousseau, deixo aqui a ligação para um interessante site francês que rememora a Batalha de La Lys.

terça-feira, junho 30, 2009

Honduras

No mundo internacional, ninguém parece ter dúvidas de que o presidente Manuel Zelaya, das Honduras, afastado do país por um movimento militar, e posteriormente substituído na chefia do Estado, continua a ter toda a legitimidade constitucional para se manter à frente do país.

Sem pôr isso em causa e sem pretender ser mais papista que o Papa, pergunto-me, contudo, se não seria prudente a essa mesma comunidade internacional deixar cair uma palavra sobre a importância de ser dado, de uma vez por todas, o direito aos povos da América Latina de não serem confrontados, quando isso dá jeito aos seus líderes, com propostas para o prolongamento ou renovação de mandatos, através da alteração das constituições. Como Zelaya pretendia fazer.

É claro que sempre se dirá que, se as mudanças constitucionais se fizerem nos termos dos próprios textos ou por referendo livre, estará salvaguardada a legalidade do acto e garantida uma cobertura de legitimidade democrática para o mesmo. Mas já começa a ser tempo de as lideranças latino-americanas se conformarem com essa coisa simples que é saberem viver com a limitação temporal do poder prevista nas constituições à luz das quais foram eleitas.

O exemplo de Lula da Silva, no Brasil, recusando a hipótese de um terceiro mandato, quando tem mais de 70% de aprovação popular, é um caso que deve ser exibido como exemplar.

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...