Tenho pena que o aeroporto de Tempelhof, aqui em Berlim, onde estou hoje, tenha acabado . E parece que não estou sozinho. Até Angela Merkel terá votado, sem sucesso, contra o fim daquele símbolo da Guerra Fria, um belíssimo edifício do tempo nazi que, desde há alguns anos, permanece sem préstimo, com as pistas transformadas em jardins. As imagens da ponte aérea dos anos 60 do século passado vinham-me sempre à imaginação, nas várias vezes que tive de apanhar aviões em Tempelhof. Por que diabo não tirei uma fotografia de um desses momentos?
Mas não era sobre os aviões a aterrar em Berlim que eu hoje queria aqui falar. Era sobre aviões de papel. A sério!
Entre 1997 e 1999, coube-me coordenar, por Portugal, sob a orientação do primeiro-ministro António Guterres, as negociações financeiras do orçamento comunitário, que viria a vigorar entre 2000 e 2006. Foi um trabalho interessantíssimo, em que Guterres e Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, se foram progressivamente envolvendo, à medida o processo saiu do terreno técnico e passou a estar no domínio das decisões políticas. A conclusão dessa negociação iria caber à Alemanha, durante a sua presidência da União Europeia, no primeiro semestre 1999. (Sendo o principal financiador da União - também o maior ganhador, há que lembrar - é sempre "confortável" ver a Alemanha a assinar os cheques...) A administração alemã fazia, por esse tempo, a sua transição entre a antiga capital, Bona, e Berlim.
Recordo-me de, nesses escassos meses, ter feito várias viagens a ambas as cidades alemãs. Os meus interlocutores foram variando, nesse período em que a nova coligação no poder, entre o SPD e os Verde, revelava fortes dificuldades de coordenação entre si.
Nunca esqueci uma tarde, em Bona, em que, saído da Chancelaria Federal, onde tinha ido falar com um colaborador de topo do primeiro-ministro Gehrard Schroeder, recebi um telefonema de um alto responsável do ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, estrutura que tinha sido afastado dessa fase na negociação, pretendendo saber ... o que me tinha sido dito na sede da chefia do governo do seu país! E ainda dizemos nós que somos descordenados!
Mas voltemos ao avião de papel.
Gunther Verheugen, o ministro adjunto para os Assuntos Europeus, passou, na fase derradeira da negociação, a ser o meu contraparte quase diário. A sua relação com o seu ministro "verde" Joshka Fischer não era das melhores, mas o primeiro-ministro Schroeder, como ele socialista do SPD, tinha-o por colaborador direto. E a palavra de Verheugen, a partir de certa altura, era "his master's voice". E isso, para nós, era o essencial.
A negociação tinha uma multiplicidade de vetores, desde as políticas estruturais às questões agrícolas. Foram muitos meses de trabalho, porque partíamos de uma muito má proposta da Comissão Europeia, que foi necessário retificar, quase ponto por ponto. A presidência alemã, depois de um início bastante hesitante, percebeu bem o nosso problema e ajudou-nos, muito graças ao modo construtivo como António Guterres se comportou - procurando identificar e promover os interesses dos outros parceiros que não fossem contraditórios com os nossos.
Os dias finais de Berlim - em Conselho Europeu muito "dramático" - foram muito complexos. Pela nossa parte, tentávamos obter verbas para diversos setores (do leite ao trigo duro e muitos outros produtos, cuja produção nacional desejávamos que fosse apoiada financeiramente). A soma final era importante, até porque seria sempre comparada com o período anterior - e isso não era indiferente politicamente, como se compreenderá.
Portugal tinha aquilo que Guterres considerava ser um "número mágico" (que não revelávamos) - nosso objetivo ideal. Mas, chegados a Berlim, uma SMS que recebi de Verheugen não nos sossegava. O número que a presidência alemã nos dedicava estava ainda distante do nosso. Recordo ter-lhe respondido, com uma adaptação da frase do Marquês de Sade, na "Filosofia de Alcova": "Alemans, encore un éffort!". Nunca cuidei em saber se ele percebeu a graça...
No dia seguinte à nossa chegada, para a reunião decisiva dos líderes, Guterres, Gama e eu reunimos com Schroeder, Fischer e Verheugen. Verheugen ficou à minha frente na mesa. A conversa era em inglês, entre Guterres e Schroeder, com este a entrecortar com frases em alemão, traduzidas já não sei por quem.
A certo passo, vi Verheugen pegar numa folha branca de A4 e começar a fazer o que me pareceu ser um avião de papel. E era. Ninguém notara, a não ser eu, que olhava para a cara risonha do meu contraparte, entretido no processo construtivo, com aqueles óculos muito grossos que eram a sua imagem de marca. No final, o "avião" cruzou, baixo, a nossa mesa, aterrando à minha frente. Fiquei com a ideia de que todo o lado alemão não notou. Vi que Guterres ficou curioso, mas não mais do que eu, que, estudadamente, sem qualquer pressa, abri o avião. Lá dentro, havia um número, com dois algarismos: melhor do que o que ele me enviar na véspera, quase igual ao nosso objetivo máximo.
Olhei para o meu amigo Gunther Verheugen e, com um sorriso, fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça. A tática a isso obrigava. Guterres, à minha direita, continuava curioso. Antes de lhe passar o papel, com o número, recomendei, sussurrando: "Faça uma cara descontente". Guterres olhou para Vereugen, também sorriu e fez um discretíssimo "não". Puxei o papel para mim. Do outro lado de Guterres, vi surgir o rosto impassível de Jaime Gama: naturalmentr, queria saber o que era aquela semiologia. Por detrás de Guterres, passei-lhe o número. Não reagiu. Do lado alemão, atento às palavras de Schroeder, ninguém parecia ter notado o avião de papel de Verheugen. Ou talvez eu esteja errado.
A negociação só terminaria já muito dentro da madrugada do dia seguinte. Para a pequena história, vale a pena registar que conseguimos algo mais do que o nosso "número mágico", um número acima do montante que "aterrara" no avião de papel que Gunther Verheugen me enviara.
De toda a forma, para mim, Berlim ficou para sempre muito ligado à memória de aviões. E agora, se me permitem, vou imprimir os cartões de embarque para o regresso à pátria.