Vejo muita gente, com a maior sinceridade, dizer que o 25 de abril de 1974 foi o dia mais feliz das suas vidas. Embora me ficasse bem dizê-lo, não se passou assim comigo.
Passei toda essa manhã angustiado. Lembro-me de mim, nervoso, na parada da Escola Prática de Administração Militar, aconselhando, com escasso sucesso, os soldados-cadetes, nesse dia sem instrução, a manterem-se nas casernas. Porquê? Sei lá! Porque sim, porque na tropa as razões não têm necessariamente de ser justificadas.
Por essa altura, não sabíamos se o golpe tinha tido sucesso, apenas íamos ouvindo os comunicados do “posto de comando” - uma falsidade, porque o posto de comando (viémos depois a saber) estava na Pontinha e aquilo era lido do Rádio Clube, na Sampaio e Pina.
O nosso pessoal, chefiado pelo capitão Bento e pelo alferes Geraldes, com o aspirante António Reis a dar o toque “político” às hostes, estava, desde as primeira horas da madrugada, a ocupar a RTP, não muito longe dali, também na Alameda das Linhas de Torres. A nossa unidade fora a primeira a avançar na Revolução. Também só me apercebi disso dias depois.
A certa altura, inesperadamente, surgiu na parada o comandante da unidade, o coronel Fidalgo, vindo da sua residência adjacente. Já me fartei de contar a história, quase caricata, de como tivemos de o deter, vencendo grandes hesitações por parte dos militares profissionais. Depois, mandámo-lo para casa.
Ainda o assunto estava em curso de resolução, quando surgiu o segundo-comandante, o major Nogueira da Silva. Lembro-me de dar uns berros a dois soldados que começaram a insultá-lo. Uma revolução não dispensa a manutenção da disciplina hierárquica, se não passa a ser uma bandalheira. Afinal, o Nogueira da Silva, que era um “chicalhão” (sinónimo de militarão), viria a revelar-se um democrata.
A meio da manhã, chegou Marcelino Marques, um coronel antifascista, afastado pela ditadura, que vinha assumir o comando. Era um homem agradável e talvez estivesse à espera de que também o fôssemos.
Ora no dia seguinte, na biblioteca da unidade, ele iria ter de aturar uma arenga minha e do Teixeira, em nome dos oficiais milicianos, sobre a “tibieza” daquilo que era anunciado sobre a política colonial. Semanas depois, chamar-me-ia ao seu gabinete, para mostrar o seu desagrado com um meu discurso público, no juramento de bandeira, em que eu havia denunciado a postura repressiva do MFA numa greve, que tinha originado a detenção dos nossos colegas Anjos e Marvão. O meu “divórcio” com Marcelino Marques, uma jóia de pessoa, teria lugar não muito tempo depois, comigo a ser simpaticamente convidado a afastar-me da unidade, por “incompatibilidades com a hierarquia interna”, pelo facto de eu me ter recusado a solidarizar-me com uma punição a um soldado-cadete, que só me recordo chamar-se Loff. Mas eu e Marcelino Marques ficámos para sempre com uma excelente relação pessoal.
O resto do meu dia 25 de abril seria passado na RTP. Chegavam notícias de que as coisas estavam a correr bem pelo país. Pela rádio, íamos seguindo o que se passava no Carmo, onde o nome de um tal Salgueiro Maia era referido, sabendo-se que Caetano estava prestes a cair. Depois, foi uma longa espera. Primeiro, para conseguir pôr a antena de Monsanto a funcionar, operação por muito tempo boicotada por um “patriota” renitente. Mais tarde, foi o aguardar da Junta de Salvação Nacional, junto às antigas bombas de gasolina, antes do início da rampa que levava aos estúdios do Lumiar.
A escolha de Spínola para chefiar a Junta não me agradava minimamente. Vê-lo chegar, com Costa Gomes e os outros, era, contudo, o anúncio de um tempo que, fosse ele o que viesse a ser, seria sempre muito diferente. Lembro-me de ter seguido com eles pela ladeira acima. Fiquei depois atrás das câmaras, a ouvir a proclamação. Que, pelo tom, não me agradou nada. Eu, no meu radicalismo, estava já de pé atrás.
A minha noite acabou tarde. Nunca consegui perceber onde dormi, apenas me recordo de mim, logo de manhã, de novo a coordenar o piquete de soldados, junto às bombas de gasolina, na tal entrada para a RTP. Passou um autocarro e lembro-me de ter dito adeus ao Eduardo Prado Coelho que ia nele, e que eu esperava que já me tivesse perdoado pelo facto de, quatro anos antes, com o Nuno Júdice, lhe ter invadido uma aula na Faculdade de Letras.
Regressei à unidade e fui entregar a pequena metralhadora FBP com que tinha andado nas últimas 48 horas. O sargento armeiro que a recebeu deu uma gargalhada: eu tinha levado um carregador errado, que era de uma metralhadora Vigneron. Se eu quisesse ter dado um tiro, durante todo o dia 25 de abril, não tinha conseguido. Às tantas, foi melhor assim. Ser oficial de Ação Psicológica não me tinha dado uma grande preparação operacional. E o dia 26 avançava já, comigo a manter-me politicamente inquieto. Ser radical raramente é sinónimo de se ser feliz.
Assim, que me recorde, o 25 de abril esteve longe de ser o dia mais feliz da minha vida. Ou talvez eu tivesse sido bem feliz nesse dia e, afinal, não sabia.