Ontem, no final chuvoso e já frio da tarde do Porto, ao aguardar em Campanhã o comboio que me havia de trazer de volta a Lisboa, surgiu-me à memória o tempo da infância em que as estações de caminho de ferro constituiam, para mim, um fator de ansiedade e alguma angústia.
As viagens em família faziam-se a partir de Vila Real, onde vivíamos. Íamos ao Porto, frequentemente a Viana do Castelo e, apenas raramente, a Lisboa. Os meus pais, durante anos, não tinham automóvel, pelo que se viajava quase sempre de comboio: de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, dali até ao Porto, de onde se derivava para os restantes destinos. Ao todo, na vida, o meu Portugal ferroviário, salvo duas idas no Sud a caminho de Paris, um salto, numa tarde, a Cascais e umas viagens na linha de Sintra, esgota-se praticamente aí.
O meu pai era funcionário público, nesse tempo dos anos 50 em que a profissão não admitia o menor laxismo ou “balda”. Viajávamos nos fins de semana ou “queimando” um dia das férias do meu pai, que as contava ciosamente, para poder estar o máximo possível de tempo possível com a minha velha avó, que vivia em Viana.
Era muita a gente que também viajava nesses dias. O meu pai fazia questão de nos comprar “primeira classe”, mas, mesmo assim, as carruagens iam quase sempre apinhadas e os lugares sentados escasseavam.
Conseguir a proeza de não perder a ligação dos diversos comboios devia complicado, nesses períodos confusos e de enchentes de Natal, Páscoa ou “férias grandes”. Às vezes, ficava-se bastante tempo nas estações da Régua ou do Porto, num mundo de barulho e apitos, com o fumo e o vapor das máquinas a encher o ambiente, sem lugares nas salas de espera, sentados nas malas que eram então de uma útil dureza, a ver passar gente em correrias.
Esse ambiente agitado e de pressa contida, sempre com o cuidado com as bagagens, tinha duas faces contrastantes: por um lado, o sentido, quase cosmopolita, do “glamour” de uma viagem (particularmente para quem, como eu, vinha de Vila Real); por outro, a noção, algo inquietante, de que não se conhecia ninguém à nossa volta, o receio face ao que era estranho.
Absorvido pela tensão que me rodeava, fazia minhas o que achava serem as preocupações maiores do meu pai, que via a mirar constantemente o relógio e uns horários artesanais em papel quadriculado, que sempre elaborava de véspera, e que trazia cuidadosamente dactilografados (partidas a vermelho, chegadas a azul, lembro bem), tentando perceber se o acesso à linha do Minho se faria na estação de origem ou se já só íamos a tempo de “apanhar a ligação em Ermesinde”.
Por muito tempo, posso hoje confessar, a própria palavra Ermesinde fazia soar em mim uma ideia de correria, de risco de perder um comboio, da angústia de poder ficar em terra. Há meia dúzia de anos anos, acreditem, parei uma tarde o carro em frente à estação de Ermesinde e passeei-me por ali com calma, como que a tentar esconjurar esses demónios de infância.
De outra vez, fiz exatamente o mesmo na estação do Tamel. Onde é o Tamel? É uma estação recôndita, perto de Barcelos, na linha do Minho, que tem, logo ao lado, um túnel. Ora eu, desde miúdo, odeio túneis ferroviários. Nada causava maior temor à criança que eu era do que entrar naqueles buracos negros, numa época em que o fumo das máquinas a carvão se entranhava no ar que se respirava nas carruagens, onde, durante a travessia, só sobrevivia uma escassíssima luz lúgubre, que me deixava em imenso sobressalto.
Mas porquê o Tamel, em particular? Porque um dia, era eu um pirralho já não sei com que idade, o comboio em que íamos para Viana estacou, sabe-se lá porquê, no meio do túnel do Tamel. E por ali ficou uns minutos que me terão parecido horas, com a minha mãe a colocar-me um lenço para eu poder respirar melhor. Várias vezes ouvi os meus pais evocarem esse episódio, com uma estranha naturalidade, sem, pelos vistos, terem medido o efeito que em mim isso provocou.
Os comboios nunca me sossegaram! Nem os TGV europeus nem os Amtrak americanos me fizeram reconciliar com aquelas memórias algo traumáticas de infância - embora o leitor já deva ter notado que anda por aqui, por este texto, muito exagero de estilo, para dar alguma cor à banalidade da vida. Mas uma estação de caminho de ferro continua a ser, para mim, o início de uma viagem algo angustiada, que não deixa de ser irónica para comigo mesmo, àquele meu passado. Não há nada a fazer! Ou melhor, há: é ir de automóvel!