- Então você quer que paguemos mais para a União Europeia?
Jaime Gama fez a pergunta com um largo e irónico sorriso, no momento em que eu entrei no Falcon, onde ele já estava sentado há uns minutos, pouco antes de uma deslocação que íamos fazer, creio que ao Luxemburgo. Não percebi a que é que se estava a referir. Foi então que o ministro dos Negócios estrangeiros me passou para a mão um exemplar de "O Diabo", o título hiperconservador que, depois de ter sido, nos anos 40 do século XX, um órgão que veiculava posições próximas do PCP, passou, após o 25 de abril, a ser uma voz da direita radical, inicialmente sob a direção de Vera Lagoa.
O título na capa de "O Diabo" era inequívoco (e cito de cor): "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia". Uma larga foto minha, identificado como responsável governativo pelos Assuntos europeus, não deixava a menor dúvida sobre o autor da frase.
Imagino a reação do cidadão comum ao entrar numa tabacaria, ao passar uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais do dia e ao deparar com aquela insólita "tirada". Um responsável do nosso país, um Estado que passava o tempo a tentar explorar todos os possíveis "nichos de saque" das instituições europeias, no sentido de recolher financiamentos para compensar o atraso do seu desenvolvimento, tinha a "lata" de afirmar que deveríamos "pagar mais" para a Europa? "O tipo passou-se, pela certa!", devia ser o sentimento comum. Se eu estivesse no lugar do cidadão, era o que pensaria.
"O Diabo" era um jornal ao qual nunca me tinha passado pela cabeça dar uma entrevista. A sua agressividade contra o governo socialista, de que eu então fazia parte, era conhecida, não havia edição do semanário em que o executivo de António Guterres não fosse zurzido, acusado de "vende-pátrias", quase filo-comunista, de incompetente e irresponsável.
Um dia, porém, uma jornalista por quem eu tinha bastante respeito sondou-me sobre a minha possível abertura para dar uma entrevista a "O Diabo". Garantia-me um diálogo com um jornalista equilibrado, profissionalmente capaz, sem uma agenda despropositadamente agressiva. Achei que era um ensejo interessante para "meter a foice em seara alheia", que não devia desperdiçar. Preparei-me para o que desse e viesse, sem grandes preocupações: tinha plena confiança na minha capacidade de dizer só aquilo que queria. A entrevista correu muito bem. O interlocutor preparara-se convenientemente, foi rigoroso e sem concessões, mas manteve-se num registo muito decente. Esperava um bom texto.
Naquela manhã, a caminho do Falcon, esqueci-me de adquirir "O Diabo". Jaime Gama, a quem nada escapava, era um leitor completo de tudo quanto a "media" portuguesa (e não só) publicava, de jornais a revistas. "O Diabo" não lhe escapara e, nele, claro!, a minha entrevista.
Mas, afinal, eu afirmara ou não que "Portugal gostaria de pagar mais para a União Europeia"?
A pergunta do jornalista fora: "Portugal não paga demasiado para a UE?". Ora cada Estado membro da União paga, para suportar o funcionamento da organização, uma contribuição anual que depende diretamente da sua riqueza, isto é, todos pagam mas os países mais ricos pagam mais que os mais pobres. A minha frase era irónica: queria exprimir que até gostaríamos de pagar mais, porque isso significaria que éramos um país mais rico. Era apenas isto que eu pretendera dizer, nada mais. Porém, as ironias não "passam", necessariamente, nos textos. O paginador da capa de "O Diabo" deve ter-se desunhado para descortinar, na minha entrevista, uma frase sonante, que servisse de título. Eu fora especialmente cuidadoso, sabedor "do que a casa gasta". Ao ler o texto, o responsável pela paginação ter-se-á então apercebido que salientar essa minha frase criava uma "caixa" interessante, funcionando de forma negativa para o membro do odiado governo socialista, a que imprudentemente abrira as suas colunas. E não hesitou.
António Guterres explicou-me um dia que, nas entrevistas que concedamos, a nossa pior frase será sempre chamada para título. A minha frase não estava errada, tinha apenas sido dita num tom que não "passou"...
Mas a que propósito veio isto hoje? É que deparei, há pouco, num jornal diário, com uma fotografia minha, numa intervenção pública em Lisboa, complementada com um título onde figura algo que eu disse, embora não complementado com uma contextualização que eu próprio tivera o cuidado de precisar. Outra "simplificação", de natureza similar, descortinei ontem noutra nota, desta vez informática, atribuindo-me uma expressão que, de facto, eu utilizei na mesma sessão, mas que havia complementado com a frase "como alguns gostam de dizer, num conceito que hoje é muito contestado". Em ambos os casos, creio que não estamos perante qualquer atitude de má fé. Trata-se apenas do problema de criar um título, que, por definição, terá de ser curto e sintético. E redutor. É a vida...