A complexa situação política que resultou das eleições
legislativas deixa mais evidente a importância das próximas eleições
presidenciais. O papel do chefe do Estado como árbitro institucional da
República pode vir a ter, nos tempos que aí vêm, uma relevância ainda mais
significativa.
A última década mostrou, à evidência, que uma chefia da
República progressivamente enviesada, cúmplice de uma prática governativa que
diariamente testou e provocou os limites das regras constitucionais, converteu
a Presidência numas das parcelas da equação conservadora que se abateu sobre o
país. E não contribuiu para dignificar a instituição.
A delicada situação que Portugal viveu durante a presença da
“troika”, com uma tutela internacional sobre as nossas políticas públicas,
facilitada por um executivo entusiasta e criativo, perante as receitas radicais
que eram impostas ao país, teria justificado que o Presidente da República se
tivesse erigido como uma espécie de provedor do interesse dos cidadãos, como um
escudo protetor da Constituição que jurara cumprir e fazer cumprir, transformada
então na última trincheira de defesa dos direitos coletivos das populações.
O extremismo celerado de algumas das medidas aplicadas ou
tentadas por esse tempo sombrio, que trouxe um incontável sofrimento à grande
maioria dos portugueses, só foi travado pela coragem e independência do
Tribunal Constitucional. Essa instituição foi então atacada e vilipendiada, até
no plano internacional, sob estímulo do próprio governo.
Ouviu-se então, da parte do atual ocupante de Belém, uma
palavra institucional e política de solidariedade com a corte defensora do
diploma fundamental da República? Foi o chefe de Estado capaz de trazer a
público a sua voz, exigindo respeito pela separação de poderes e pelo Tribunal
Constitucional? Nem por uma vez. Esse imenso silêncio ficou como umas das
marcas menos nobres do exercício de funções do atual titular, mesmo num
catálogo de omissões ou atitudes dessa natureza onde a escolha não é fácil.
Em claro contraste, cerca de metade do atual período
constitucional português havia assistido, na cadeira presidencial, a duas
figuras socialistas representarem, com inigualável prestígio, essa mais elevada
função do Estado. Mário Soares e Jorge Sampaio encarnaram, cada um a seu modo,
uma forma exemplar de exercer o cargo, suscitando confiança nos cidadãos,
assegurando uma atenção escrupulosa pelos valores constitucionais e, o que não
é menos relevante, projetando com elevação, cultura e respeito o país na ordem
internacional.
É assim necessário garantir uma unidade objetiva de vontades
que procure assegurar que o próximo Presidente da República recupere a bandeira
de independência e dignidade dessas duas presidências exemplares. Tudo deve ser
feito para evitar que as forças conservadoras prolonguem, eventualmente num
registo apenas mais “animado”, o ciclo que agora acaba, de forma bem penosa.
O Partido Socialista decidiu, e bem, que não tomaria posição
oficial por qualquer das candidaturas que entretanto surgiram na sua área
política, todas elas tendo já suscitado apoios por parte de figuras do partido.
As candidaturas presidenciais são atos de iniciativa
individual. Nenhum presidente será eleito apenas pelos militantes de um
partido, quer ele seja seu militante, quer seja uma personalidade com vincada
expressão na sua área política. Os candidatos devem conseguir demonstrar que
conseguem alargar a sua base de apoio, conquistando apoios num círculo mais vasto,
passando barreiras ideológicas, credibilizando a sua personalidade como
merecedora de confiança, mostrando estar à altura de tempos complexos em que o
país necessite da sua firmeza de convicções, da sua capacidade de interpretar o
interesse coletivo, respeitando o jogo partidário mas situando-se acima dele.
A primeira volta das eleições presidenciais deve assim
funcionar como uma espécie de eleições primárias onde a existência de
excelentes opções prova que a área da esquerda democrática continua a ser o
terreno onde é possível encontrar figuras capazes de dignificar a magistratura
suprema do país.
Pelas razões que referi no início deste texto, seria de
grave irresponsabilidade se os militantes socialistas viessem a alhear-se deste
combate. Do seu resultado muito dependerão as condições de governabilidade do
país no futuro próximo, bem como a criação de um ambiente de respeito pelos
direitos coletivos dos cidadãos, no respeito escrupuloso pelo equilíbrio
interinstitucional e pelos princípios da Constituição da República.
(Artigo que hoje publico no "Acção Socialista")