quinta-feira, outubro 11, 2012

O livro

Não recordo o seu nome e, mesmo se dele me lembrasse, não o diria aqui. Era um homem muito simples, na casa dos 50 anos, que me contava belas histórias da sua infância em João Pessoa, na Paraíba, terra de que sentia saudades que a melhor vida que tinha em São Paulo não conseguia atenuar. Era o meu motorista habitual quando tinha de me deslocar a São Paulo, ido de Brasília, o que ocorria com alguma frequência, nesses quatro anos em que vivi no Brasil. 

Entre o aeroporto e os compromissos, ou nos intervalos entre eles, eu tinha por invariável hábito passar pela fabulosa Livraria Cultura, na avenida Paulista, de longe o mais completo e bem arrumado lugar de venda de livros em língua portuguesa, em todo o mundo. Por necessidade, por tentação ou por simples vício, nunca de lá saía sem um saco, mais ou menos recheado, de edições brasileiras.

Numa das muitas vezes em que eu acomodava no carro as novas aquisições, esse meu motorista inquiriu:

- O senhor consegue ler todos esses livros que compra?

Expliquei-lhe que não, longe disso!, mas que eu fazia parte de um grupo de pessoas, bastante vulgar, que compra sempre muitos mais livros do que aqueles que alguma vez conseguiria ler, mas que, nem pelo facto de disso ter plena consciência, era capaz de deixar de o fazer. Era uma espécie de "doença", algo dispendiosa mas incurável. Sem surpresa, fiquei com a impressão de não foi sensível a esta minha irónica explicação.

Segundos volvidos, disse-me: 

- Eu também já li um livro.

Aceitei com discreta delicadeza a sua singular revelação e inquiri que livro era.

- Era um livro sobre religião, escrito por um americano, um livro muito bom. Gostava de lê-lo outra vez. Mas emprestei-o a um conhecido que foi para João Pessoa e nunca mais consegui voltar a lê-lo. Já falei com gente de lá, para lho pedirem, mas não mo devolve. Para o ano, quando fôr à Paraíba, vou ter com ele e vai ter de mo devolver. A bem ou a mal.

- Mas há tantos livros! Porque é que não lê outro livro? Por exemplo, a pessoa que escreveu o livro que leu até pode ter escrito outros, tão bons ou melhores do que esse. Sabe o nome da pessoa que escreveu o livro?

- Não sei, não me lembro, mas também não me interessa. Eu só quero voltar a ler esse livro. Não quero ler outros livros.

E calou-se, numa tristeza evidente.

Nunca cheguei a saber como se chamava o livro que o meu simpático motorista tinha lido, nem quem era o americano que o tinha escrito. E para sempre senti imensa pena daquele homem, não pelo facto de não querer ler mais livros, mas porque percebo muito bem a angústia de alguém perder aquela que era toda a sua biblioteca. 

21 comentários:

Isabel Seixas disse...

Tenho a sensação que há livros que nos permitem o diálogo intrapessoal mais satisfatório pela displicência confortável com que nos induz o pensamento sem esforço ...

Ler novamente determinado livro ou sentir-lhe a presença é um regresso ao oásis dos nossos desertos.


Anónimo disse...

Senhor Embaixador, espantoso remate.

Maria Helena

C.e.C disse...

Todos teremos, certamente, um livro ou mais especiais. Já para não falar da convicta noção de quão arriscado é 'emprestar' um livro.

A modesta "biblioteca" que o Sr. tinha, imagino que torne toda a situação ainda mais crassa.

LUIS MIGUEL CORREIA disse...

Um encanto esta sua história. Também sou viciado, com a crise tenho moderado as minhas aquisições mas estou desde ontem a fazer uma lista de livros a pedir a uma livraria que teve a boa ideia de aceitar uma permuta com os meus: voltei a ter todos os meus títulos à venda em Inglaterra e recebo outros livros que estão a fazer imensa falta. Será que os vou ler todos?

OS MEUS LIVROS

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador,

Que história tão bonita. Também tenho o vicio dos livros, embora tenha lido todos os livros que tenho em casa. Sou incapaz de comprar um livro e não o começar a ler de imediato. Sou daqueles que só compra o próximo depois de ler o ultimo que comprei.

Anónimo disse...

Cada um de nós tem "o Livro" que é o seu, aquele que foi escrito só para nós mas impresso numa qualquer tiragem de milhares de exemplares...

Não sei se feliz ou infeliz quem encontrou o seu à primeira.

Nuno 361111

ARD disse...


"Timeo vírus unaus libri".
"Temo o homem de um só livro", disse São Tomás de Aquino.
Ele sabia do que falava.
Todos os fundamentalistas são "homens de um só livro".

Helena Sacadura Cabral disse...

Belo texto, Senhor Embaixador, com uma sombra de perda em pano de fundo.
Perder, perder algo ou alguém, não tem reparação possível. Apenas se pode tentar graduar o desconsolo das várias perdas que vamos tendo na vida...

Anónimo disse...

Lindo! Lindo! E mais numa altura em que as pessoas estão a deixar de cheirar a livros e de lhes tocar. Parece que andam a meter "um cheirinho" a papel na net e e por aí fora para ver se dão às maquinetas as sensações dos livros. Mas como? Se eles vão deixar de nos desarrumar a casa?

Helena Oneto disse...

Senhor Embaixador,

Tudo neste post é bonito: o texto, a fotografia e os comentarios:)!

Bom fim de semana a todos!
Helena

Anónimo disse...

Nos anos oitenta, um Assistente (comissionista que entregava livros ao domicilio) do Circulo de Leitores contou-me uma história interessante sobre um viciado na compra de livros.
Era um cliente “gold”. Todos os trimestres comprava uma palete de livros. Até que um dia, o Assistente, começou a reparar que a cada trimestre, o cliente reduzia, de uma forma drástica, a encomenda de livros.
Tal situação criou-lhe a necessidade de indagar, se seria por sua culpa que tal se estava a acontecer. Que não, respondeu-lhe o ex-cliente ‘gold’.
O que se passava era que não tinha mais espaço nas prateleiras do móvel novo, que tinha comprado para a sala de estar.

Helena Sacadura Cabral disse...

Senhor Embaixador já reparou nas suas três fieis Helenas?!
Não deve haver outro Embaixador - haverá? - que possa gabar-se de tal!
Desculpe a ousadia, mas hoje apeteceu-me meter-me consigo e com as outras duas fiéis representantes helénicas! :-))

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Dra. Helena Sacadura Cabral: eu noto sempre, com grande prazer, a fidelidade deste grupo de senhoras que acompanha, com notável paciência, aquilo que por aqui vou publicando. Às vezes, penitencio-me por não poder responder aos comentários, mas a verdade é que há dias em que isso é, de todo, impossível.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro José Tomaz Mello Breyner: que inveja tenho de si! Olho para estas estantes e para as pilhas de livralhadas que andam à volta de mim e gostaria de ter várias vidas para ler tudo isto.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro ARD: seria o meu amável condutor um venerador do santo? Mas não tinha nada a temer deste, podemos crer. Mas percebo a ideia da frase e não deixo de concordar com ela.

Helena Oneto disse...

Carissimo Senhor Embaixador,
A elegância da sua resposta ao comentario da nossa amiga, e sua grande admiradora, Helena Sacadura Cabral, deixou-me embevecidissima:):):)

Querida Helena,
Vous avez un charme fou!

Bien à vous (deux)

patricio branco disse...

que recupere o seu livro, "toda a sua biblioteca", para novamente o ler, são osa nossos votos

Anónimo disse...

Caros ARD e FSC
A velha senhora - que, em seu tempo, estudou latim, e o cultivou, com um tio padre - não concorda com a tradução dessa frase atribuída a Tomás de Aquino - 'timeo virus uni libri' ('uni' e não 'unaus', como foi escrito, certamente por lapso) - e propõe outra(s): 'temo o vírus (sumo/veneno) de um livro (se for o) único'.
A ideia, diz a senhora, até será a mesma: o perigo de fundamentalismos que a crença em um só livro (em um pensamento único) acarreta para qualquer mortal.
Por mim e com toda a consideração que a minha velha amiga-inimiga me merece, confesso não confiar demais nos seus conhecimentos que não sejam os de natureza médica - porque lá excelente profissional ela (ainda?) é.
Se algum(a) latinista e/ou tomista, que porventura me leia, quiser dirimir a questão… ('vexata quaestio'?)

Anónimo disse...

Em complemento do comentário anterior, a velha senhora cita-me o seu amado Pessoa:

"Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior?" (Revista Portuguesa, de 13.10.1923)

…e rimalha:

homem de um só livro de uma só fé?
pode caber-lhe alguma simpatia
mas já pessoa o disse e o escrevia:
um português não é.

Anónimo disse...

Dr. FSC,
Ainda que não seja propriamente fã de Garcia Márquez, dei por mim a imaginar o que ele faria com essa história...
José Paulo Fafe

Gilrikardo disse...

Prezado Senhor Francisco

Cheguei até teus escritos graças à internet e às minhas leituras no blog do professor Paulo Roberto de Almeida. É assim que venho navegando há tempos, em cada blog um porto de chegada e ponto de partida para novas aventuras, digo leituras.

Transcrevi em meu blog o texto “O livro”, com as devidas referências.

Cordialmente,

Ricardo Francisco Gil
Joinville SC

Seminário