O "Diário da Assembleia da República" (que até ao 25 de abril se chamou "Diário das Sessões") é um dos menos difundidos jornais portugueses. Nele se relatam, em pormenor, os debates ocorridos no nosso parlamento, com registo de alguns apartes (infelizmente, não todos) e interrupções. Se se olhar para uma fotografia do plenário verificar-se-á que, no espaço entre os deputados e a tribuna, há sempre duas pessoas que tomam notas numa pequena mesa, que se revezam ao fim de alguns minutos. A sua tarefa parece ser anotar aquilo que a gravação da sessão possa não ter deixado claro, como a autoria dos apartes e outros pormenores que o "Diário" tem obrigação de registar. Sempre que alguém faz uma intervenção escrita, invariavelmente esses funcionários solicitam-na discretamente ao orador, para aferição do texto com a gravação. Uma tarefa discreta, mas essencial.
Um dia dos anos 90, numa das tardes em que, pelo governo, ia à Assembleia, e porque o humor é parte da política, resolvi "lançar a confusão" nas hostes do executivo, testando o "calo" de um dos seus membros. No gabinete do ministro dos Assuntos parlamentares, onde o primeiro-ministro e os membros do governo que iam a debate se reuniam um pouco antes, lancei, em jeito de confidência, para um ingénuo e recente secretário de Estado, "maçarico" nas lides governativas e sem nenhuma experiência parlamentar:
- Parece que o primeiro ministro está furibundo com o Almeida Santos! Dizem que ele não desiste da ideia de, a partir da próxima semana, fazer um pequeno "editorial" em cada edição do "Diário da Assembleia da República".
O meu querido amigo Almeida Santos era então presidente da Assembleia da República e o seu gosto pela escrita era bem conhecido. Mas a ideia era de total implausibilidade.
- A sério? Mas isso tem sentido? A oposição é capaz de "saltar"!, disse-me o meu colega, com ar já preocupado.
- Pois é, mas ninguém trava o homem! Até já ouvi dizer que o assunto vai a "conferência de líderes".
- O Guterres tem razão, não achas? Isso pode vir a dar uma "bernarda" das antigas, comentou o meu colega, ciente de que já bem nos bastavam as crises que a vida política, à época, nos trazia.
Afastei-me e deixei o jovem governante a aboborar a angústia. Minutos depois, dei-me conta de que passava a "notícia" a outros membros do governo, que o ouviam com ar divertido. Pelos olhares oblíquos que me eram dirigidos, percebi que o meu nome, como veículo do boato, começava a circular. Temi mesmo que acabasse por chegar a António Guterres, que estava num canto da sala (que fora o antigo gabinete de Oliveira Salazar).
O debate parlamentar iniciou-se, entretanto, com Almeida Santos a presidir aos trabalhos. A meio dessa tarde, um contínuo aproximou-se de mim, na bancada do governo, com um bilhete: "Meu caro amigo, está convidado, quando quiser, para publicar alguns artigos no "Diário da Assembleia da República", que aproveitarei para os dias em que eu não tiver inspiração para os meus editoriais".
Fiquei preocupado. Afinal, até ao próprio António de Almeida Santos tinha chegado a minha graçola. O tom do bilhete era muito irónico. Estaria ofendido? Durante uma hora mais, enquanto o debate continuava, remoí algum arrependimento. Em que diabo de brincadeira eu me tinha metido! À saída da sessão de perguntas ao governo, encaminhei-me para a tribuna da presidência, a fim de lhe dar uma explicação. Nessa altura, fui travado por um ministro que, sorridente, me disse: "Não vás! Fui eu quem te escreveu... "pelo" Almeida Santos".
Fui buscar lã e saí tosquiado!
Fiquei preocupado. Afinal, até ao próprio António de Almeida Santos tinha chegado a minha graçola. O tom do bilhete era muito irónico. Estaria ofendido? Durante uma hora mais, enquanto o debate continuava, remoí algum arrependimento. Em que diabo de brincadeira eu me tinha metido! À saída da sessão de perguntas ao governo, encaminhei-me para a tribuna da presidência, a fim de lhe dar uma explicação. Nessa altura, fui travado por um ministro que, sorridente, me disse: "Não vás! Fui eu quem te escreveu... "pelo" Almeida Santos".
Fui buscar lã e saí tosquiado!
10 comentários:
Deliciosa memória.
SXucede a todos, e repete-se, porque caímos reiteradamente nas armadilhas do nosso espírito humorístico.
Mas enquanto subsistir a boa vontade alheia, nem tudo está perdido.
Esse colega superou-o. Chapeau!
Humor com humor se paga...
Senhor Embaixador: preste uma homenagem ao seu Colega divulgando o seu nome. Ele merece!
"Fui buscar lã e fiquei tosquiado".
Em francês: "l'arroseur, arrosé".
Mas viva o humor!
José Barros
Pena não ter sido o Doutor Almeida Santos a tosquiá-lo, pois isso depois seria incluido naqueles seus desabafos que redundam num livro...
Anônimo disse...
Senhor Embaixador: preste uma homenagem ao seu Colega divulgando o seu nome. Ele merece!
23 de outubro de 2012 02:17
Sem dúvida ....
Nuno 361111
Que bom quando o humor sabe aterrar na política! Agora é esta que nos aterra...
Caros Anónimos: claro que não divulgo o nome do meu ingénuo colega, hoje alto responsável numa grande empresa privada. Bem bastou o que lhe fiz!
creio que no sec 19 o diário das sessões ou talvez o do governo durante a monarquia publicava artigos como queria almeida santos e foi motivo de brincadeira para um colega de fsc. boa historia.
Senhor Embaixador,
Referia-me ao do falso Almeida Santos, que de ingénuo pouco terá.
Na sua expressão: o nome de quem lhe ficou com a lã?!
Nuno 361111
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