sábado, maio 16, 2009

Ainda o "Le Monde"

Ontem, revelei a minha ligação afectiva ao jornal "Le Monde". Mas tenho uma história que prova bem que essa afectividade não é um exclusivo meu.

Estávamos em 1976. Surgira em S. Tomé e Príncipe uma greve dos professores cooperantes portugueses... por cuja pré-selecção eu próprio tinha sido responsável, pouco tempo antes. Aparentemente, os nossos docentes sentiam estar a haver alguma discrepância entre as condições que lhes haviam sido prometidas, antes de partirem de Portugal, e a realidade local com que então se defrontavam. A coisa parecia séria, as aulas estavam suspensas e a "batata quente" foi passada para as minhas mãos, porque eu fora o elo de ligação com as autoridades santomenses. E aí fui eu despachado de Lisboa, viajando através de Paris e de Libreville, no Gabão, para o cumprimento da minha primeira missão externa. Cinco meses depois de entrar para o MNE, imaginem!

Chegado a S. Tomé, o embaixador português, Amândio Pinto, homem simpatiquíssimo, sem dar mostras de qualquer agastamento por terem mandado um "miúdo" para resolver um problema diplomático, perguntou-me logo se eu queria encontrar... o primeiro-ministro, Miguel Trovoada, que era também responsável pela pasta da Cooperação. "O primeiro-ministro!?", inquiriu o recém-admitido adido de embaixada que eu era. "Claro, não há qualquer problema", disse o embaixador. E, com a maior naturalidade, pegou no telefone e ligou ao primeiro-ministro. Para meu espanto, de neófito, meia hora depois, lá estávamos no respectivo gabinete.

Ao cumprimentar o chefe do Governo de S. Tomé, que veio depois a ser presidente da República, dei-me conta de que, sobre a sua secretária, tinha um exemplar do jornal português "O Século". E, pelo título de uma notícia, percebi que aquele jornal teria, pelo menos, duas semanas. Aí, não resisti: "Vejo que está a ler um Século antigo. O senhor primeiro-ministro quer o Monde de ontem?". Trovoada fez um olhar surpreendido: "Mas como é que você tem o Le Monde ontem?". Expliquei-lhe que saíra de Paris na tarde da antevéspera, já com o Monde desse dia (aliás, com a data do dia seguinte) debaixo do braço. Miguel Trovoada, homem que muito frequentara a França, sorriu, encantado com a possibilidade de ter notícias frescas da Europa, e, logo ali, disse que mandaria um carro à nossa Embaixada, para recolher a novidade informativa. O nosso embaixador prontificou-se a ser ele a mandar entregar-lhe o jornal, de imediato.

Para a pequena história, assinale-se que o governo santomense fez algumas concessões que permitiram acomodar as reivindicações dos nossos professores e me deram ensejo de com eles negociar o fim da greve. E que o jovem adido de embaixada que eu era regressou, impante, a Lisboa, com a missão bem cumprida.

Será que o "Le Monde" teve alguma coisa a ver com isso?

4 comentários:

Fenêtre du Portugal disse...

Eh, Eh :-)

Muitas liçoes nesta anedocta, que alias é mais realidade que anedocta.

- Os "miúdos" nao devem ser desconsiderados por outrem. (visto que atijem metas como qualquer outro). E ao contrario, nao se devem sentir inferiorizados em qualquer circunstancia.

- Ou 5 meses no MNE é uma experiencia suficiente para se poder levar a cabo um conflito... Ou certas pessoas têm uma optima faculdade de adaptaçao às circunstancias e às suas novas tarefas :-)

- Em caso de "impressao de inferioridade" devido a um contexto qualquer, existe sempre "um Zorro" que cai do céu, e que nos vem salvar, ou trazer a "arma" adequanda e necessaria para que as coisas se tornem mais favoraveis.

... Nesse caso, o "Zorro" foi o jornal "le Monde", que pelo visto criou de inicio as condiçoes favoraveis para uma boa disposiçao entre os protagonistas. E ainda bem :-)


Mario

NB. Nao lhe agradeço o primeiro artigo sobre a "probabilidade" de existir uma relaçao / noçao afectiva entre um leitor e um jornal. O facto impediu-me de dormir, e até me levou-me a chamar cerca de 20 pessoas acerca do "assunto". Muitissimo tempo portanto perdido com este "caso grave". :-)

Para informaçao : O segmento "da populaçao questionada" é especifico, pelo facto de evoluirem (ou terem evoluido) nos meios empresario, diplomatico, ou em mundos intimamente ligados pelos media. Mas cheguei à conclusao que sim, é de facto muito provavel que exista uma componente importante de afetividade, mesmo que nao seja imediatamente perceptivel ou consciente, entre muitos leitores e o(s) seu(s) jornal(ais) preferido(s).

(60% deste enquérito improvisado e sem pretençao cientifica, mais significativo).

Eis uma noçao que me espanta e que nunca antes me tinha passado pela cabeça. :-)
(e que tem muito mais importancia para mim, que a aparente importancia relativa que se pode dar ao caso).

Portanto, "brinco" quando nego o meu agradecimento pelo artigo, e ao contrario : obrigadissimo. :-)

Anónimo disse...

Na minha "humilde" opinião,também, mas essencialmente a operacionalização do espirito diplomático genuino na hora certa no sítio certo, nalguns contextos o sentido de oportunidade quando surge a reciprocidade implicita em qualquer afinidade.

Isabel Seixas

Paulo Correia disse...

Por vezes a solução de um conflito resulta de um acaso fortuito.

Nem o "Le Monde" soube da sua contribuição na luta dos cooperantes portugueses em S. Tomé...

Anónimo disse...

Concordo

Davos

Deve ter graça estar em Davos, por estes dias. Os maluquinhos das teorias da conspiração, os mesmo que acham que Bilderberg tem qualquer imp...