sexta-feira, maio 15, 2009

Le Monde

O jornal Le Monde chega hoje ao seu nº 20.000. Para quem gosta das coisas da política internacional, o Monde é uma companhia indispensável de vida. Bem antes da escolha profissional me ter conduzido pelos caminhos da diplomacia, comprar o "Monde" era, para mim, o gesto rotineiro, logo que cruzava a fronteira francesa. Era o meu primeiro "banho de Europa", após ter saído de um Portugal abafado e de imprensa triste. O "Monde" era, para muitos da minha geração, a cara do mundo exterior.

Recordo, nos tempos pré-Abril, como trocávamos informações sobre o que, segundo constava, "vem hoje no Monde" e que a polícia não deixara passar para os quiosques. E, no auge da agitação de 74, lembro-me de conversas com Marcel Niedergang, apresentado pelo José Rebelo (correspondente do Monde em Lisboa), no bar do Hotel Mundial, tentando decifrar-lhe as bizarrias da complexa política doméstica.

Habituei-me ao Monde ainda sem fotografias, com uma publicidade muito escassa, com textos densos e, por vezes, de leitura difícil, mas sempre bastante rigorosos. Nele aprendi coisas sobre temáticas pouco comuns, através dele fui alertado para opiniões diversas e divergentes, em especial sobre a vida política interna francesa. Lembro-me bem dos célebres editoriais de Beuve-Méry, dito Sirius, e tenho saudades das pequenas e deliciosas "caixas" na primeira página de Robert Escarpit. Assisti a diversas reformas gráficas e acompanhei as suas crises e polémicas internas. E no Monde tive a honra de ser publicado, quando a ocasião se proporcionou.

Não me conheço interessado sobre questões internacionais sem ter o Monde à minha frente. Durante décadas, visitei centenas de bancas de jornais, em aeroportos ou hotéis, por esse mundo fora, sempre em busca do último Monde. Sou fiel ao Herald Tribune, gosto muito do Financial Times, faz-me falta o Economist. Mas - e sei que esta opinião é hoje minoritária -, se tivesse que escolher um único jornal para ler, ele seria o Monde, embora reconheça que é talvez uma atitude que tem algo de sentimental. Por isso, todas as tardes, espero-o como se espera um amigo que sabemos que nos visita em cada dia. Embora, neste caso, sempre anunciado com a data do dia seguinte...

2 comentários:

Fenêtre du Portugal disse...

Uma simples nota...

Acho interessante o facto de se "seguir" um jornal (talvez um pouco) devido a aspectos sentimentais.

"Por isso, todas as tardes, espero-o como se espera um amigo que sabemos que nos visita em cada dia".

Interessantissimo, mesmo.

Mario

Paulo Roberto de Almeida disse...

Afinidades eletivas com o Le Monde é o que todo mundo que viveu em ditadura sente, inapelavelmente, posto que se tratava -- e ainda deve se tratar -- do jornal que mais cobertura deu, e deve continuar a dar, aos atentandos aos direitos humanos, às violências de toda ordem contra a ordem democrática e às liberdades.
Nunca tinha visto um Le Monde antes de sair do Brasil em 1970, em plena ditadura militar, mas muito já tinha ouvido falar do jornal, pela repercussão que suas matérias -- inclusive sobre a ditadura militar brasileira -- tinham na imprensa e no próprio governo brasileiro de então. Creio que seu correspondente no Rio chegou a ser preso pelo aparato de repressão do regime militar, apenas por relatar a verdade das torturas que então ocorriam nos porões da ditadura. Alguns jornais brasileiras referiam-se a essas matérias, posto que poucos ousavam desafiar os cânones da censura oficial para montar matérias próprias sobre essas questões.
Só comecei a ler regularmente o Le Monde em outra ditadura, na Tchecoslováquia pós-golpe soviético de 1968, mais exatamente em Praga, em 1971, para onde me tinha dirigido depois de sair do Brasil.
Lembro-me perfeitamente que era a única maneira de me informar corretamente sobre a situação do mundo, literalmente, não apenas da América Latina, mas também da própria Europa oriental, então sob dominação soviética. As primeiras greves em Gdnyia e Gdansk (Dantzig) já comandados pelo núcleo de sindicalistas independentes que depois deveria constituti o Solidarnosc eram reportadas pelo Le Monde, já que absolutamente nada sabia na imprensa local.
Depois, ao "emigrar" para a Bélgica, trÊs meses depois, continuei a ler o meu Le Monde quotidiano, religiosamente, se ouso dizer em relação a um jornal laico e orgulhoso de sê-lo. Também passei a ler o Le Monde Diplomatique, essencial na minha formação intelectual, para depois prestar o concurso de ingresso no serviço diplomático brasileiro.
Atualmente, considero o Le Monde um bom jornal, mas insuficiente para informação e debate cultural, necessitando ser complementado pelos demais grandes jornais mundiais (que leio geralmente na intenet): New York Times, Washington Post, Financial Times, Herald Tribune.
E se eu tivesse de escolher um unico veiculo de informação, debate e cultura, hoje, não mais escolheria o Le Monde, e sim o The Economist, reconhecidamente a melhor imprensa escrita (e que também ouço pelo meu iPod) do mundo, apenas e simplesmente.
Mas, o Le Monde permanece, obviamente, no canto sentimental do veiculo de juventude.

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