domingo, julho 21, 2019

O poder na Europa


As eleições europeias não confirmaram as previsões de alguns, segundo as quais o Parlamento Europeu iria ser invadido por uma onda de extrema-direita e eurocéticos (as duas coisas não sendo, necessariamente, sinónimos), que iria bloquear a operacionalidade de uma instituição a que os tratados têm vindo a conferir crescentes poderes.

O que se constatou foi a emergência de uma realidade que, tudo indica, veio para ficar: a quebra do poder relativo dos dois grandes grupos políticos que dominaram as instituições comunitárias desde a sua criação – social-democratas e conservadores –, com a clara atenuação, nestes últimos, da matriz democrata-cristã.

Uma maior fragmentação política é o que, a partir de agora, mais notoriamente se observa naquele parlamento, desde logo pela emergência, com progressiva capacidade de disputa de poder, dos grupos liberal (que tem pouco a ver, note-se, com o que, sob esse rótulo, tem aparecido em Portugal) e ecologista. Alguns dirão, não sem razão, que esta nova realidade é mais democrática, garantindo uma maior representatividade ao parlamento. Outros, que também têm a sua razão, acharão que a crescente diversidade funciona em detrimento da boa governação da coisa europeia, tornando-a menos eficaz, reduzindo dessa forma o prestígio da União aos olhos dos cidadãos.

A Europa está hoje bem mais difícil de gerir, mas isso não deve ser surpresa para ninguém. O aumento da diversidade política, provocado pelos últimos alargamentos, alguma realpolitik que, por jogos de proselitismo de poder, baixou a guarda ética e tende a flexibilizar princípios e valores, bem como uma extensão de competências que alguns veem já como conflituais com uma união de Estados com soberanias constitucionalmente distintas – tudo isso dá da máquina comunitária, a muitos, a imagem de um “monstro” que afeta a transparência dos seus métodos e assusta bastantes dos seus cidadãos.

A Europa criadora de soluções é hoje vista por muitos como a Europa fautora dos seus problemas. Se a isso somarmos as notórias clivagens internas, nomeadamente na reação aos efeitos assimétricos das crises coletivas, os imponderáveis efeitos do Brexit e a orfandade geopolítica criada pelo afastamento “afetivo” dos Estados Unidos, conviremos que está criada uma imagem de crise endémica que, até ver, não augura nada de bom.

O debate em torno dos lugares de chefia europeia revelou também uma realidade que muitos teimam em ignorar: os Estados, isto é, para o que importa, os governos, por muita simpatia que possam afirmar face à ânsia de poder do Parlamento Europeu, revelam-se fortemente interessados, em última instância, em reservar para si a última palavra decisória. Por mero “egoísmo”? Também, mas igualmente porque sabem que respondem perante os parlamentos dos seus países e que, por mais que se procure que uma ficção otimista se sobreponha à realidade, continua a existir uma subliminar competição entre estes e o areópago de Bruxelas e Estrasburgo. Afinal, o Brexit não é também isso?

sábado, julho 20, 2019

A síndroma de agosto

Estávamos em Agosto de 1979. Era a primeira vez que eu assumia, interinamente, a chefia da Embaixada em Oslo. Tinha pouco mais de três meses de experiência no exterior e as férias do embaixador a isso obrigavam.

À época, o "sangue na guelra" e a inexperiência levaram-me a ser tentado a trabalhar nesse mês de substituição do embaixador como se tivesse sido ungido como "embaixador substituto". Daí que fosse afetado, sem o saber, pela "síndroma de Agosto" - esse "chico-espertismo" que faz com que os "encarregados de negócios" mais jovens, aproveitando as férias dos chefes de missão, se ponham em pontas de pés perante Lisboa, enviando correspondência em abundância, mostrando-se à tutela. Esquecendo que, nesse mês de Agosto, o Palácio das Necessidades está também deserto e quase ninguém os lê. Quase...

Assim, e a propósito de uma qualquer notícia surgida na imprensa, preparei um longo telegrama (nome que damos às comunicações urgentes, com distribuição prioritária - ao tempo enviadas por telex), creio que de quatro páginas, sobre a questão das dissidências entre a então URSS e a Noruega, a propósito da exploração de recursos do arquipélago de Svalbard. O tema era altamente especioso, implicava contextualização histórico-jurídica, pelo que era de muito duvidoso interesse para o MNE, para mais num tempo em que a nossa diplomacia tinha uma agenda de preocupações algo limitada. Gastar com o assunto quatro páginas, numa comunicação telegráfica, tipo de correspondência que devia ser guardada para coisas urgentes, era, manifestamente, revelação de imaturidade. 

Imagino que, logo que enviado o texto, depois do que deve ter sido uma sua cuidadosa elaboração, ter-me-ei sentido satisfeito comigo mesmo. De facto, eu acabara de apresentar a Lisboa uma densa exposição sobre uma problemática importante para a política externa norueguesa. Não detetara, nos arquivos, que a Embaixada se tivesse dedicado com profundidade ao tema. Lisboa iria apreciar, pela certa.

Ora não foi bem assim. Dois dias depois, recebo um telegrama do MNE que dizia mais ou menos isto: "Telegrama nº tal não se justifica. Vossa Senhoria poderia perfeitamente ter informado sobre o assunto por ofício". (O "ofício", no jargão da casa, é um texto que segue semanalmente na mala diplomática, pelo correio). Na linha seguinte estava o pior, a assinatura desta "rabecada": "Ministro". (Noto que o "Vossa Senhoria" é a fórmula consagrada que o Ministério historicamente utilizava - não sei se ainda utiliza - para se dirigir a quem não tem estatuto de embaixador).

Alguém receber um telegrama assinado pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros é uma coisa que rarissimamente acontece na nossa profissão. E, com uma mensagem tão seca e negativa, a excecionalidade tornava-se trágica. Posso imaginar como me devo ter sentido, pensando estar em face do início do fim da minha carreira. O meu ritmo de "produção" telegráfica deve ter levado, a partir daí, um corte substancial, resumindo-me ao essencial, para evitar atiçar ainda mais as iras lisboetas. No regresso de férias, o embaixador, em tom de algum desagrado, deixou cair que "ouvira nos corredores" a história do meu telegrama e da resposta do ministro. Não fora, de facto, uma brilhante estreia como "encarregado de negócios".

Mas não houve mais consequências e tudo acabou apenas por ser uma bela lição. Aprendi que, nas chefias interinas, os substitutos devem ser discretos e proceder exatamente da forma como imaginam que os substituídos gostariam que as coisas se passassem na sua ausência. Nem mais, nem menos. Foi o que passei a fazer a partir de então.

Contei esta história, há dois dias, a um jovem diplomata que vai partir para o seu primeiro posto no exterior. Espero que outros a leiam. 

Ponto

O grupo de trabalho criado na Assembleia da República, em 2017, para avaliar o impacto da aplicação do Acordo Ortográfico, terminou ontem sem consenso quanto à proposta de eventuais alterações a esse acordo. E o governo português já informou que não tenciona tomar qualquer iniciativa nesse sentido: “Uma das qualidades que (Portugal) tem é honrar os compromissos que assume e, portanto, cumprir os tratados e acordos que livremente subscreve, incluindo o Acordo Ortográfico de 1990”, disse ontem em Cabo Verde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. 

sexta-feira, julho 19, 2019

Necessidades


O termo da legislatura convoca, com naturalidade, a tentação de avaliar as tendências mais marcantes da política externa seguida pelo Governo do Partido Socialista, ao longo destes quatro tão atípicos anos na vida portuguesa.

Aquando da formação do Governo, o anterior Presidente da República colocou um conjunto de "condições", em termos de compromissos externos, para aceitar empossá-lo. Nelas se incluíam, sem surpresa, as relações com a Europa, a ligação à NATO e ao mundo lusófono, com a diáspora associada. A presença do PCP e do BE na maioria parlamentar para viabilizar o novo executivo ter-lhe-á criado o temor de que daí pudesse resultar alguma deriva nociva à postura internacional do país. Mas não só a ele.

À época, o embaixador americano em Lisboa, Robert Shearman, na forma com que alguns diplomatas de Washington se permitem comentar a vida política dos países que os acolhem, deixou também alertas sobre as preocupações dos EUA na mudança do curso governativo em Portugal. Posso imaginar o que teria sucedido se, um ano depois, o nosso embaixador em Washington tivesse manifestado publicamente a inquietação portuguesa sobre os riscos para o mundo da eleição de Trump...

Respondi-lhe num artigo que publiquei no Diário de Notícias intitulado "Durma bem, Bob!", embora confessasse não ser, à época, "um entusiasta desta possível solução governativa", deixei claro que não alimentava "a mais leve dúvida de que, aconteça o que acontecer, um eventual governo socialista se manterá fiel a todo os compromissos internacionais de Portugal, da NATO à UE [...]. O PS tem um historial de responsabilidade no quadro internacional que não aceita lições de ninguém, de dentro ou de fora". Eu estava certo, o diplomata americano estava, como se viu, bem errado.

Augusto Santos Silva não era uma escolha óbvia para as Necessidades. Embora com uma prestação anterior positiva num ministério de soberania como é o da Defesa Nacional, somada a larga experiência noutras pastas, carregava consigo a imagem de um tempo mediático tenso, em que funcionou como firme contraponto oposicionista ao radicalismo da governação conservadora. Muitos sobrolhos se carregaram ao verem surgir o seu nome na chefia da diplomacia portuguesa. Mas foi sol de pouca dura. Santos Silva, um político de imensa qualidade intelectual e com elevado sentido de Estado, rapidamente se adaptou à nova função, transmitindo uma forte dose de confiança a uma casa que tem uma grande sensibilidade, não apenas para perceber quem a respeita, mas igualmente quem defende o património de interesse nacional que constitui a razão da sua existência. Santos Silva consagrou-se como um excelente ministro dos Negócios Estrangeiros e, no executivo, foi uma frente segura que muito facilitou o trabalho internacional de António Costa.

Aprendi que não há boa política externa sem uma boa política interna. Não é possível sustentar, lá fora, uma voz com uma mínima audição sem que tenhamos a "casa arrumada". Foi a evolução favorável das nossas contas, pela gestão de Mário Centeno, que deu espaço para António Costa se afirmar no plano europeu, muito para além da família socialista. Santos Silva cumulou isso com uma gestão muito rigorosa dos restantes dossiês externos - e é também justo creditar aqui a forte ajuda que Marcelo Rebelo de Sousa deu a toda esta operação de conjunto, em favor dos interesses portugueses.

Num mundo em rara turbulência, Portugal esteve muito bem, nesta legislatura, na ordem europeia e internacional. Relembro, a título de breves, e longe de exaustivos, exemplos, a essencial ajuda dada à eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU e de António Vitorino para diretor-geral da OIM, o perfil europeu elevado demonstrado, a gestão da delicada questão venezuelana, a atenção nos passos bilaterais com Angola, China ou Índia, a vitalidade imprimida na área das Comunidades Portuguesas, a atenção às parcerias internacionais na cooperação para o desenvolvimento, a ação na política da língua, os esforços continuados e bem-sucedidos na internacionalização da nossa economia. A diplomacia portuguesa está sólida e coerente, o que revela que é muito bem orientada.

quinta-feira, julho 18, 2019

O soufflé


Era num desses países onde a tradição manda que o dono da casa, no início dos jantares formais, diga sempre umas palavras sobre cada um dos convidados, sem nenhuma excepção, mesmo os cônjuges. O exercício parece fácil mas, para um embaixador estrangeiro, para quem muitas das pessoas presentes são conhecimentos recentes, alguns com nomes bizarros, a tarefa torna-se bastante complicada. O recurso a uma cábula, discretamente colocada em frente do anfitrião, é a solução natural.

Aquele meu embaixador - porque é de um embaixador português que falo -, pouco tempo após a sua chegada àquela capital onde eu também estava colocado, passando a trabalhar sob as suas ordens, começou a perder a paciência para seguir sempre, nos seus jantares, o protocolo local. Ele que era um profissional consciencioso nos seus deveres de representação social, oferecendo frequentes refeições a convidados estrangeiros.

Um dia, teve uma ideia e decidiu-se por um expediente, que considerou ser uma imbatível “trouvaille”. No início da refeição, disse: "Eu tinha a intenção de saudar cada um dos presentes, como aqui é de regra, mas acabo de saber de um impedimento que, julgo, todos compreenderão: a entrada é um soufflé! Ora um soufflé, como é sabido, não pode esperar, deixa de ter graça se passar o tempo, e sou agora avisado, da cozinha, que ele já está pronto a ser servido. Assim, com as minhas desculpas, peço que todos se considerem cumprimentados... e desejo-lhes apenas bom apetite!"

Os convidados entenderam perfeitamente a pressa do embaixador e o jantar decorreu da melhor forma. Tudo estaria muito bem se o nosso diplomata não tivesse decidido enveredar, em jantares seguintes, e quase sistematicamente, pela repetição do "truque" que lhe permitia evitar o discurso. E, a partir de certa altura, não se deu conta de que alguns dos convidados eram “repetidos” e que, por isso, já tinham ouvido a estafada história do soufflé mais de uma vez. A qual acabou por se tornar famosa no corpo diplomático local...

Há uns anos, regressei a essa cidade e jantei com um desses convivas, que me perguntou: "Que é feito daquele simpático embaixador português que, durante anos, para evitar fazer discursos, dava sempre soufflé como entrada?"

Diplomatas


“Diplomats are masters of the dark arts of the late-night drink. For reasons I’ve never quite understood, regardless of the culture, the country, or the government, experts, politicians, military officers, and bureaucrats (my God, especially bureaucrats) are almost sexually thrilled to gossip with a foreign diplomat. It represents, I suppose, some sort of holy transgression, triggering a rush of endorphins that will literally make their hands shake with giddiness as they naughtily describe their leader’s last temper tantrum, or reveal which general is sleeping with his boss’s wife. As a result, foreign diplomats frequently know more about what is going on in their host country than the local government does.”

quarta-feira, julho 17, 2019

Benjamim Formigo


Abro o iPad e recebo, de chofre, a notícia: morreu o Benjamim Formigo! Não o pensava doente (afinal, estava e eu não sabia!). Há bem menos de um mês, passei perto da sua casa, na Igrejinha, ali ao lado de Évora, e pensei ir dar-lhe um abraço e um beijo à Alexandra. Mas, como o meu tempo era escasso - e lembrei-me do trabalho que sempre por ali dava apanhar os cães da quinta - decidi que ficaria para outra vez. Que já não haverá! Agora, estou furibundo comigo mesmo.

Há quanto tempo nos conhecíamos? Sei lá. Creio que foi o Zé Manel Costa Neves, o general do MFA com quem trabalhei nos idos de 1974/75, e de quem ele era grande amigo, quem nos apresentou, no palácio da Cova da Moura, nesses “anos da brasa”. Bem mais tarde, lembro-me de termos estado juntos a jantar na minha casa, em Luanda, e, no meu regresso a Portugal, já com ele a dirigir o “Internacional” do “Expresso”, o que fez por uma memorável década, muitas longas conversas tivemos. E tornámo-nos amigos. Recordo bem ter sido seu interlocutor “oficial” em momentos delicados, no final dos anos 80, quando a lógica secretista das Necessidades, que me cabia defender, se opunha à curiosidade do seu jornal sobre a nossa intervenção na crise interna angolana. Quase nos íamos zangando! 

Quando fui para Londres - agora já se pode dizer! - fui, a seu convite, o cronista “Mark Kraëlsky”, da “Universidade de Londres”, que às vezes escrevia no “Expresso” sobre temas internacionais. Foi um segredo bem guardado, tanto quanto o foi o do comentador de temas africanos, “João Urbano”. Não sei como é que o Benjamim explicava no seu jornal a identidade desses estranhos escribas...

O Benjamim Formigo tinha uma “costela” angolana muito forte, quase tão forte como a sua vocação militar, sobre temas da Força Aérea, onde me dava lições. Na minha casa do Campo Pequeno, ou na sua, primeiro em Linda-a-Velha, depois no seu “Vale de Lobos”, na Igrejinha, muitas horas tivemos de conversa, com amigos que se tornaram comuns, ele com a sua bigodeira forte com ar de oficial “das Índias” e um inseparável cachimbo, sempre com o sorriso e a voz cava da Alexandra por perto. 

Há pouco mais de um ano, ao comemorar uma data redonda da minha vida, a idade que ele agora tinha, obriguei a Alexandra e o Benjamim a virem a Lisboa para a festa, porque os queria ao meu lado a celebrá-la. Tal como eu tinha ido a outras festas na casa onde moravam e onde agora passa a morar a saudade do Benjamim.

Ontem, ao final da tarde, fui surpreendido com a notícia de que um outro querido amigo, que tive em casa a almoçar há poucos meses, está às portas da morte. Hoje, recebo esta bofetada que é a desaparição inesperada do meu velho Benjamim Formigo. A sorte é eu não ser religioso. É que, se o fosse, estaria agora a bradar aos céus.

Deixo um beijo à Alexandra e a expressão do nosso imenso pesar a toda a família.

As roscas


Aos anos que eu as procurava e, afinal, elas ali estavam, à mão de semear, em Monção! São as roscas. Andava distraído e só agora dei por elas, no concurso de doçaria regional da RTP. É para isto, afinal, que existe um serviço público!

Vou explicar melhor. Quando eu era pequeno e ia de férias grandes para Viana do Castelo, a minha avó paterna, uma senhora que sempre conheci velhinha e que assim morreu aos 93 anos, comigo ainda criança, tinha no seu quarto um grande armário do qual, em momentos que recordo felizes, fazia sair uma caixa paralelipipédica, uma lata vermelha.

Dela emergiam então, com a parcimónia das coisas verdadeiramente importantes, para alimento da minha eterna memória gustativa, as roscas. Os netos - imagino que os outros netos também, embora a equidade no racionamento dessa doçaria fosse, confesso, a minha última preocupação - tinham então direito a uma dose de roscas: duas ou três. “Não comas muitas roscas!” é uma advertência dos meus pais que me ficou no ouvido e cuja pertinência meço na avaliação semestral da minha taxa de glicémia.

As roscas eram umas argolas de massa doce, com uma textura que recordo menos crocante e mais macia, revestidas, no exterior, por “manchas” de açúcar. As roscas eram boas quando estavam frescas, perdiam graça quando humedeciam a camada do açúcar ou quando secavam, tornando-se borrachosas. Sei imenso de roscas, conheço-lhes o sabor ao pormenor e, contudo, não como uma rosca aí há 55 anos, acreditem!

Para quem, como eu, chegava para férias, as roscas que a minha avó de Viana me dava eram a delícia do mundo. Claro que, lá por Vila Real, na Gomes ou no Lapão, havia doces magníficos. Mas as coisas, em férias, tinham (têm) outro sabor. E então as roscas!

Sei lá bem porquê, cultivo a tese, que ninguém me confirma, de que as roscas que havia em casa da minha avó eram adquiridas numa confeitaria na esquina da Avenida (em Viana, aliás como em Vila Real, quando se diz “a Avenida”, ninguém precisa de esclarecimento toponímico) com a rua dos Manjovos, uma casa que entretanto mudou de nome e alargou o objeto comercial. Muita gente me diz que não, que eram compradas no Natário (no Manuel, não no Zé), em frente ao Laranjeira, onde a minha avó mandava a Arménia, filha da empregada lá de casa, a Senhora Conceição. Outros, acham que, tal como o pão, era no Dantas, na rua de S. Sebastião, nome que o meu pai sempre deu à rua Manuel Espregueira. Eu continuo a pensar que não, que só eu é que tenho razão, mas a tragédia dos anos é que, em definitivo, já perdemos há muito quem nos possa dar conforto à teimosia das nossas caturreiras.

Daqui a semanas, lá vou eu a Monção comer roscas. Isso é que me importa!

Hortográfico


Parece que hoje, na Assembleia da República, há quem queira mudar, outra vez, o Acordo Hortográfico.

Camões e coisas assim


Pela insistência, obsessiva e deslumbrada, com que não cessa de fazer referência a esse seu momento de efémera glória, fica a ideia de que o autor do discurso do último 10 de junho terá saído daquela cerimónia, em definitivo, aos ombros de si próprio.

Bonda


Parece que o próximo James Bond vai ser uma mulher, negra. Nada a objetar, com duas condições: que o Martini continue a ser “shaken, not stirred” e que o namorico como Moneypenny se não perca.

O discurso sobre o Estado

Ouvido a alguém, insuspeito de simpatias pela esquerda: "Recomendo sempre aos meus amigos políticos que moderem o seu discurso contra o Estado. Eles não percebem que a maioria do eleitorado tem ligações ao setor público, por via profissional, familiar ou outra dependência, pelo que suscitam nessas pessoas a ideia de que, se chegados ao poder, irão pôr em causa os seus direitos e interesses".

A moda liberal que por cá emergiu, nos últimos anos, explora a dualidade artificial entre o cidadão e o Estado, colocando este como maléfico esbanjador dos recursos gerados pela sociedade dita civil. Isso é evidente em grupúsculos que ora tentam penetrar no espaço de representação institucional, com apoios empresariais e mediáticos, que têm por agenda diminuir o peso do Estado e do funcionalismo público, reduzir ao mínimo as funções estatais e, de caminho, proceder a umas propaladas "reformas estruturais".

O tempo da troika, sob prevalência obsessiva dessa ideologia, pareceu a alguns ser o momento certo para pôr em prática essa receita. Colocar a tutela do Estado nas mãos de quem o detesta teve, contudo, as consequências trágicas que se viram. E, quando alguém procurou desmontar o "bluff", percebeu-se que o rei ia nu: o célebre "Guião para a Reforma do Estado", uma peça de involuntário humor caricato, aí ficou como a prova provada da vacuidade ideológica que suportava o preconceito.

Não sei se o Estado é grande ou pequeno em Portugal. Provavelmente, precisaríamos de o diminuir aqui ou ali, reforçando-a noutras áreas. Temos de estar abertos ao debate, fazendo-o apenas sob juízos de racionalidade e eficácia. E há, claro, a obrigação de termos de ser muito exigentes quanto aos serviços pagos pelos nossos impostos, tanto mais que eles não podem continuar a ser capturados pela lógica egoísta das corporações, quase esquecendo os seus objetivos: fala-se mais de professores do que do ensino, das greves dos médicos e enfermeiros do que dos serviços que estes prestam.

Tenho uma certeza: num país com largos setores populacionais que ainda padecem de grande fragilidade, o Estado continua a ser essencial para sustentar políticas que promovam uma solidariedade que o mercado, pela sua natureza, não pode assegurar.

Quando se observa que o afã guloso pelos financiamentos públicos, nomeadamente os fundos estruturais, surge frequentemente naqueles que mais diabolizam o Estado, fico a pensar se o lema dessa gente, afinal, não será: "Menos Estado, melhor Estado e o que sobrar que seja para nós..."

terça-feira, julho 16, 2019

Circuitos


Durante uma longa reunião que teve lugar em Genebra, nos anos 80, eu costumava alugar um carro, aos fins de semana, para passear pela Suíça. Num deles, convidei três colegas da delegação para um passeio mais curto, fora da cidade.

Íamos no caminho entre Genebra e Nyon, à borda do lago, quando a conversa derivou para o trajeto sinuoso da estrada em que rodávamos, através de localidades. Certas partes do percurso eram mesmo bastante perigosas, comentávamos entre nós. Foi então que um dos membros do grupo se saiu com esta: "E, no entanto, faz-se aqui uma prova automobilística de grande importância...".

Nenhum dos comparsas de viagem fazia a menor ideia de que havia uma prova automobilística que passava por ali, pelo que pensámos que o nosso interlocutor se estaria a referir a algum rally. E, claro, pretendemos ser esclarecidos sobre o evento a que se referia.

O nosso homem - porque era um homem... - assumiu então um tom de connaisseur e, com ar de quem nos ia esmagar com a humilhante exposição do nosso tão óbvio desconhecimento, avançou: "Então vocês não sabem que passam por aqui as “24 horas de Le Mans” “?

Um ou dois segundos, para "digestão" mental da revelação, mediaram entre a frase e o coro de gargalhadas dos restantes viajantes. O lago à volta do qual passeávamos era o lago Léman, mas o nosso interlocutor estava plenamente convencido que era nas estradas à volta desse lago que se disputavam as "24 horas de Le Mans". Ora Le Mans é uma localidade francesa a sudoeste de Paris...

Até ao final da viagem, o nosso homem embatucou. Que será feito dele?

segunda-feira, julho 15, 2019

Racismo e preconceito

Por detrás do conceito cumulativo austeniano, ficou muito evidente persistir por aí um mundo sinistro, de que agora começa a falar-se um pouco mais, em parte graças ao “infamous” artigo de Fátima Bonifácio. Feitas as contas, a publicação do texto acabou por ter algumas virtualidades. Desde logo, porque provocou o “outing” de um certo reacionarismo cavernícola, que logo acorreu a desculpabilizar a senhora e a colar-se-lhe à diatribe, alguns com o expectável “não, mas”, não fosse alguém confundi-los com o outro lado da barricada. E, claro, deu imenso gozo ver a hipocrisia de alguma dessa gente a levá-la a agarrar-se à liberdade de expressão como âncora argumentativa, como se fosse essa a preocupação maior de quem tem o autoritarismo como linha de vida e a democracia como mero empecilho conjuntural. Mas o mais interessante - de verdade! - foi assistir ao incómodo que o artigo de Bonifácio provocou em algumas áreas de direita que, nem por o serem, deixam de estar legitimamente preocupadas com os valores e os princípios que uma meridiana decência obriga a cultivar. Quero com isto dizer que DB, isto é, Depois de Bonifácio, confesso que acabei por ficar com muito melhor impressão de alguns setores conservadores, que se sentiram obrigados a vir a terreiro distanciar-se daquela barbaridade em forma de artigo. A tolerância é um valor global, que, em gente de bem, é transversal às ideologias.

Os gritos


Por detrás de belas casas do centro de Londres, construídas nos séculos XVIII ou XIX, situam-se os "mews", espaços de antigas cavalariças ou de guarda de carros de cavalos, hoje, muitas vezes, transformados em luxuosos apartamentos, com um discreto acesso por ruas laterais.

A caminho do pátio das traseiras da residência da Embaixada de Portugal em Londres, em Belgrave Square, existem requintados "mews", habitações de gente abastada, a avaliar pela qualidade dos automóveis que por lá se acolhem e pelos preços que se sabe serem praticados na área.

Um dia, o Gabriel, cozinheiro do embaixador, procurou-me, na minha qualidade de “número dois” da embaixada, dando-me nota de uma “coisa desagradável" que se passava num dos "mews" adjacente ao nosso prédio: em algumas manhãs, uma senhora dava berros terríveis, “guinchos” que se ouviam por toda a vizinhança. Ele vivia num pequeno apartamento nas traseiras da residência e os “ruídos” da senhora acordavam a sua criança e infernizavam-lhe o início do dia. Contudo, ao que me disse, os factos tinham lugar aperiodicamente; havia semanas com muita “gritaria”, intervaladas com tempos completamente silenciosos. Ele até já tinha pensado chamar a polícia, mas preferiu dar-me conta pessoal do sucedido.

Como não me voluntariei para testemunhar matinalmente os factos, nem o próprio embaixador me falara do assunto, procurei saber junto dos restantes ocupantes do anexo da residência se os confirmavam. Todos anuíram, embora, por estarem mais distantes, as suas queixas fossem bastante mais limitadas.

Fiquei intrigado e, confesso, cheguei a suspeitar de vícios ocultos de alguma vizinha, numa qualquer pouco comum e errática prática matinal. Até que alguém, já não sei bem como, me resolveu o mistério: a tal vizinha dos “gritos” era, nem mais nem menos, a fabulosa soprano americana Jessye Norman, que ensaiava a sua voz aos alvores dos dias em que passava por Londres, no curso das suas tournées. A casa dos “mews” adjacente à nossa residência pertencia-lhe, sendo o seu “pied-à-terre” naquela cidade.

Imaginem que tínhamos chamado a polícia ou eu tinha pedido para que ela se calasse...

domingo, julho 14, 2019

Neste blogue, faz hoje 10 anos



Há já uns bons anos, na década de 90, cheguei à noite a Paris, ido de comboio de Bruxelas, no 14 de Julho, a festa nacional francesa. Não me tinha apercebido da data. Devia sair cedo para o aeroporto, logo na manhã seguinte, para apanhar um voo para outro continente. Tinha tentado reservar um hotel próximo do "Périphérique", mas isso havia-se revelado impossível, pelo que tive de optar pelo único que tinha lugares disponíveis: o Raphael, na Avenue Kléber, perto do Arco do Triunfo. O preço era o que vigorava antes da remodelação, esclareço...

O motorista que me aguardava na Gare du Nord foi-me dizendo que não ia ser fácil atravessar a Étoile. Tinha razão. O trânsito estava impossível e, chegados ao Arco do Triunfo, foi preciso parlamentar longamente com uns polícias para atravessar a praça. O homem invocou mesmo o meu estatuto político, para conseguir “furar”. Mas lá conseguimos arribar ao destino.

O homem tinha-me entretanto chamado a atenção para o interesse em não perder o fogo de artifício dessa noite, o maior e mais imponente que se projeta nos céus de Paris. Desde sempre, desde as festas da Senhora da Agonia em Viana do Castelo, passando pelo "4 de Julho" em Manhattan, sempre fui um fã das sessões de fogo de artifício, essa maravilhosa arte efémera que alegra as noites de verão.

Com a sugestão ainda no ouvido, mas consciente de que a hora do espectáculo se aproximava, perguntei na recepção do hotel se me aconselhavam algum local de onde ainda pudesse ver o espectáculo. A reacção do rececionista foi de uma snobeira tipicamente parisiense. Depois de me dar a chave do quarto, olhou para o relógio e adiantou, num tom algo displicente: "As pessoas acham que o terraço do nosso hotel é, com toda a certeza, o melhor local de Paris para ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Aliás, o espetáculo desta noite começa daqui a 15 minutos e vamos servir champanhe no terraço, aos nossos hóspedes, dentro de... 3 minutos".

Foi uma noite memorável, com técnicas de pirotecnia que então não imaginava possíveis. Presumo que, de lá para cá, tudo esteja ainda mais requintado no fogo da festa parisiense, tanto mais que, este ano, a Torre Eiffel, que comemora os seus 120 anos, será ainda mais o centro principal do evento. Ainda não sei onde vou, logo à noite, ver o fogo de artifício do 14 de Julho. Mas não excluo, em absoluto, tentar-me fazer convidado para o terraço do Raphael...”


Pela minha memória, acabei a passear a pé pelas ruas...

sábado, julho 13, 2019

Raio & companhia


Há muitos anos, fui almoçar a Sintra com uma amiga. Estávamos numa esplanada em frente do palácio da vila e metemos conversa com o dono do restaurante. No final, ele apresentou-se-nos: chamava-se Raio. Por curiosidade, perguntei-lhe se era parente do homónimo jogador de hóquei em patins, que tinha integrado a seleção nacional da modalidade que tantas alegrias tinha dado ao país. “Sou eu”, respondeu, com um sorriso. 

O Raio tinha sido uma grande figura do hóquei em patins do seu tempo, oriundo da importante “escola” de Sintra, de onde saiu também o imenso (também no porte) Edgar. Ter um encontro com a história não é o termo vulgar de um almoço.

Faço parte de uma geração para a qual o hóquei em patins teve uma grande importância, como única expressão, por muitos anos consecutivos, de poder desportivo português no plano internacional. Lembro-me de como se lamentava então o facto do hóquei não fazer parte das modalidades olímpicas, onde o nosso país só ia apanhando umas medalhas “quando o rei faz anos”.

Não sei como esmoreceu o interesse por uma modalidade que já teve o país a seus pés e, confesso, não cuido hoje se saber o nome de nenhum dos nossos atuais jogadores - eu que, a certa altura, para além naturalmente de algumas equipas nacionais, sabia “debitar” de cor toda a seleção espanhola nossa adversária: Zabalia, Orpinelli, Boronat, Puigbó e Gallen!

Prova provada disto é que, ontem à noite, não me levantei uma única vez da Mesa Dois do Procópio, onde estava com amigos a brindar (talvez) ao início do fim de semana, para ir ao pequeno aparelho de televisão ver a evolução do resultado do Espanha-Portugal em hóquei em patins. O Carlos, por detrás do balcão, e o Luís, no apoio às mesas, iam-me informando sobre o que acabou por ser a “derrota de Castela”... na Catalunha. Fiquei contente, mas não fiquei eufórico como me sentiria no passado.

Bolsonaro

Bolsonaro tirou um dente e foi aconselhado a manter-se três dias sem falar. 

Recordo-me de uma figura política portuguesa, bem conhecida e já há muito desaparecida, de quem alguém um dia, disse: “Se não abrisse a boca, passava por um estadista”. 

Não creio que, neste caso, o conselho se aplicasse.

sexta-feira, julho 12, 2019

Memória do “Estadão”


Faz hoje 46 anos. O jornal “Estado de S. Paulo”, reagindo à censura da ditadura militar, então no “auge” por virtude do sinistro Ato Institucional nº 5, que havia eliminado várias notícias das suas páginas, inundou o jornal de estrofes de “Os Lusíadas”. Foi um exemplar momento na história da luta pela liberdade de imprensa no Brasil, que é muitas vezes citado.

O “Estadão”, como o jornal é popularmente conhecido, teve também uma grande importância para os oposicionistas portugueses que tinham fugido do regime ditatorial e se haviam refugiado no Brasil. 

Em 2008, num artigo que, como embaixador de Portugal, publiquei no jornal, reagindo (com forte ironia) contra um ridículo ataque feito na véspera a Pêro Vaz de Caminha, lembrei esse facto. E escrevi, a certo passo:

Nos longos anos em que, em Portugal, a liberdade não passava de uma miragem que se mantinha no horizonte longínquo, o Brasil acolheu, com imensa generosidade, muitas figuras que a ditadura salazarista alienava da vida cívica portuguesa. Nesse tempo, o "Estado de S. Paulo" destacou-se como porto de abrigo para algumas dessas personalidades, as quais, frequentemente, eram menos bem acolhidas por alguns compatriotas, aqui residentes, que não partilhavam ou rejeitavam mesmo o progressismo das suas ideias, porque haviam optado por se manterem próximos do regime que vigorava em Portugal.

Foi o "Estado de S. Paulo", foi a figura honrada de Júlio de Mesquita Filho quem deu então uma mão solidária a vários profissionais exilados da imprensa portuguesa, bem como a outras figuras da Oposição ao salazarismo, oferecendo-lhes emprego, ajudando-os a reconstituir a sua vida e a sustentar o seu quotidiano. Nada disso era feito por adesão ideológica ou doutrinária, por qualquer interesse ou favoritismo, mas simplesmente por um sentimento de simpatia e pela partilha de uma magnífica e rara ética de solidariedade. Nomes como Vítor Cunha Rego, Miguel Urbano Rodrigues, João Alves das Neves, Carlos Maria de Araújo, João Santana Mota ou mesmo Henrique Galvão, puderam encontrar no "Estadão" um apoio essencial, nesse tempo de turbulência de suas vidas.”

quinta-feira, julho 11, 2019

Luis Moita


Não sei há quanto tempo conheço o Luís Moita. Há muito, pela certa. Habituei-me a admirá-lo, ainda à distância, nas suas andanças pelo catolicismo crítico, pelos caminhos da luta anti-colonial, na procura obsessiva da nossa liberdade coletiva. Vejo-o depois no filme eterno do 25 de abril, com o seu sorriso bom, entre quantos então sairam da prisão de Caxias. 

O Luís passou então, brevemente, por um governo, mas manteve-se essencialmente ativo nas atividades cívicas da sociedade dita civil. E dedicou-se em pleno à universidade, onde, nos últimos anos, tive com ele o gosto de privar com regularidade. As surtidas pela política, que as foi tendo, foram sempre à margem do óbvio, eram investimentos na esperança, com aquela pontinha de aventura, quase adolescente, que todos sabemos que lhe marca o íntimo.

O Luís Moita, que o calendário nos diz que faz 80 anos, é uma figura serena, doce, compreensiva, atenta aos outros como ninguém, com o entusiasmo de uma juventude que nunca lhe abandonou o espírito. O Luís Moita é meu amigo e eu tenho um grande orgulho nisso.

A matemática das bolachas

Quase todas as madrugadas, pé-ante-pé, para não suscitar críticas caseiras, deslizo até à cozinha em busca de um sustento complementar, porq...