terça-feira, maio 31, 2016

A vingança de um transmontano


Estávamos no belo e espaçoso jardim em volta daquela nossa embaixada, num país da África Oriental. Recordo-me de estar a beber um Pimm's, a bebida mais adequada para o cenário pós-britânico em que nos encontrávamos, nesse final de tarde, com uma temperatura deliciosa, descansando depois de muitas horas de "jeep" a atravessar um deserto, vindos de outro país, onde havíamos participado numa reunião internacional.

O embaixador português e a sua mulher, pessoas muito agradáveis e educadas, haviam insistido para que parte da delegação que acompanhava o membro do governo português ficasse instalada com ele na residência, fugindo ao ambiente inóspito do hotel.

A conversa ia boa e solta. Já não sei bem porquê, falou-se de música e, de repente, dei comigo a elaborar, de forma muito crítica, sobre as letras das canções de alguns dos mais conhecidos intérpretes da nossa praça, atacando o seu sentido "popularucho" e a sua frequente deriva para o facilitismo. O meu discurso aproximava-se, a passos largos, do inevitável "name-dropping" quando comecei a notar, na cara do meu colega António Monteiro, uns esgares um tanto estranhos, que não me pareciam derivados do sabor do Pimm's. Outro diplomata presente, o João Salgueiro, fazia-me sinais crípticos. O Manuel Lopes da Costa, sempre imperial na sua barba branca, arregalava-me os olhos. Só o membro do governo se mantinha, como o estatuto porventura exigia, numa serena e impenetrável impassibilidade. O embaixador, esse, sorria.

Foi então que a embaixatriz, delicada e inteligente, com um tato superior, atalhou: "Você tem toda a razão. Esses cantores e compositores, às vezes, vão por caminhos um tanto ridículos. Tenho avisado disso, para que procure evitar esses erros, o meu irmão, o José Cid. Acha que ele caiu nesse pecadilho?".

Escondi-me atrás da palhinha do Pimm's, porque, infelizmente, aquele imenso jardim não tinha um buraco para eu me meter...

(a propósito da atualidade, apeteceu-me repetir isto)

segunda-feira, maio 30, 2016

Blues

Respondi-lhe com rispidez. Nem sei bem porquê. Ou melhor, sei. Ele estava a merecê-las e, às vezes, falar pelo telefone ajuda, evita as coreografias e protege-nos das fraquezas. Mas acho que fui um pouco longe demais. Ele, do lado de lá, "encolheu-se". Eu, deste lado, arrependi-me. Às tantas, o meu estado de espírito tem a ver com o facto de ter dormido mal na noite passada. Eu tinha acordado "aos "solavancos", achei que o despertador já tinha tocado e, afinal, faltavam quase duas horas. Fiquei furioso com essas horas perdidas, porque muito poucas já eram as de sono. Andei o dia todo irritado, o que acho que não é muito de mim ("Tu é que tens a mania de que tens bom feitio!", disse-me um dia uma amiga, acrescentando: "Não te vês!"). A única "coisa boa" do dia foi uma espantosa frase ouvida a alguém numa reunião, logo de manhã, numa reação a um comentário de outrem: "eu não sei do que estás a falar, mas não me parece que estejas a dizer coisas certas".

Portugal no mundo nos próximos 20 anos"


No âmbito da "Semana da Investigação" do ISCTE, estarei amanhã, dia 31, 3ª feira, pelas 17.30 h, numa mesa redonda (Edifício II, Auditório B203) sobre o tema "Portugal no mundo nos próximos 20 anos" com João Vieira Borges, General, José Manuel Felix Ribeiro, Economista, Ana Mónica Fonseca, Investigadora universitária, e Sando Mendonça, investigador universitário. A moderação estará a cargo de José Paulo Esperança. diretor da ISCTE Business School

União Bancária

Um "grupo de reflexão" de que faço parte com, sete amigos, preparou um documento sobre "Portugal e a União Bancária", que surgiu no "Público", na sexta-feira, dia 27 de maio.

É um texto algo longo, mas trata-se de um tema em que é importante refletir, pelas consequências que acarreta para o país, como o recente caso do Banif o prova.

Pode consultar esse e outros textos do grupo aqui.

domingo, maio 29, 2016

Histórias


Estou a meio de um " calhamaço" de capa dura, com quase 600 páginas, escrito por Maria de Fátima Bonifácio sobre António Barreto, um misto de conversa e leitura do pensamento do sociólogo.

Sinto pena pelo facto de uma historiadora de valia como é aquela autora, que nos deixou retratos muito interessantes sobre o século XIX, se deixe cair num discurso ideologicamente enviezado, numa espécie de ajuste de contas com quem não pensa como ela, denegrindo tudo quanto possa relacionar-se com a esquerda, caricaturando ideias, amesquinhando uns e promovendo outros. Até um elogio ao "Observador" se permitiu no livro...

Maria de Fátima Bonifácio é apenas um triste exemplo, entre outros, de uma deriva da nossa historiografia contemporânea, raptada nos dias de hoje por agendas ideológicas muito marcadas - não apenas à direita mas igualmente à esquerda, que fique claro!

Posso estar equivocado, mas creio que é o facto dos historiadores andarem por aí afadigados a comentar o presente que lhes retira muita da distância crítica necessária para uma abordagem científica e equilibrada do passado, em especial do mais recente. 

sábado, maio 28, 2016

Cantona


Éric Cantona continua a ser uma lenda no Manchester United, que Mourinho vai agora treinar. Fez por lá exibições memoráveis, vestindo a mítica camisola 7. Também ali protagonizou uma cena que ficou na história do pior futebol: uma entrada violenta, a pontapé, sobre um adepto da equipa adversária que estava sentado numa bancada e que o terá provocado. Nada que fosse inconforme com o seu feitio brigão e indisciplinado. Suspenso, afastado da seleção, arrumou as botas há já quase duas décadas.

Em Paris, via-o com alguma frequência na Stella, a "brasserie" preferida do nosso novo ministro da Cultura. Há semanas, cruzei-me com Cantona num avião da TAP, a caminho de Lisboa. Pensei que viesse em férias. Acabo de ler que vive em Lisboa.

"Soyez le bienvenu, M. Cantona"! Mas nada de zaragatas, está bem?  

Um país frágil


Portugal atravessa, com grande probabilidade, um dos momentos em que a capacidade autónoma para decidir o seu futuro está mais limitada. Esta posição resultou de opções institucionais, bem como da evolução de conjunturas que não conseguimos nem controlar nem influenciar de forma minimamente eficaz. As partilhas de soberania que concedemos no passado, não só na União Europeia, foram feitas no pressuposto das vantagens decorrentes da pertença a essas instituições, mas igualmente na convicção de que conseguiríamos intervir na sua gestão. Ora isso, na prática, não acontece.
Por um variado conjunto de razões, o nosso país não tem hoje um mínimo de influência significativa em instâncias onde, sob uma vontade maioritária que não nos representa, são ditadas regras que condicionam quase em absoluto o nosso quotidiano.
A nossa posição face a Bruxelas/Frankfurt (leia-se, muitas vezes, Berlim) é de permanente “demandeur”. Somos dialogantes porque aprendemos as lições gregas, usamos a voz para nos não confundirmos com o triste Portugal, “atento, venerador e obrigado”, de um passado recente. Testamos identidades com quem possa ter agendas pontualmente coincidentes com a nossa, embora ironicamente cada um persista em mostrar-se “diferente” do outro, mas estamos ainda longe de conseguir gerar plataformas com real eficácia.
Na prática, por estes dias, apenas somos responsáveis pelos nossos erros. O que vier a correr bem, na Europa e no mundo, pode vir a beneficiar-nos, mas temos uma imensa exposição a tudo quanto possa vir a desregrar-se no exterior. Chama-se a isto ser um país frágil.
“Fechamos para obras”? Não. Já aqui andamos há quase 900 anos e atravessámos crises bem piores, até existenciais, convém lembrar aos mais tremendistas. Na História, todos os becos têm saídas, só que, às vezes, não são as mais felizes.
Portugal vive hoje no fio da navalha orçamental, tendo de esperar que a “lei de Murphy” não se lhe aplique – o que pode correr mal, corre mal. Devo dizer que, não tendo sido um entusiasta desta solução governativa, cujos riscos continuo a achar elevados, tenho hoje uma imensa admiração pelo trabalho que António Costa está a desenvolver. Acho notável o seu esforço patriótico de tentar aliviar marginalmente o sofrimento provocado por políticas que agravaram a pobreza e o desemprego.
Sempre entendi que a leitura comparada dos resultados previstos no “MoU” da Troika com as estatísticas reais devia ser obrigatória no Eurogrupo e em algumas faculdades de Economia que por aí se titulam em inglês. Só uma cegueira de burocratas europeus e de académicos obstinados em ter a razão dos números contra as pessoas é que parece não entender o que podem significar algumas décimas temporárias de flexibilidade, com efeitos na sustentabilidade de políticas públicas de um país sem “safety nets” para os mais carenciados, cuja evolução macroeconómica – seja ela qual for! - nunca afetará minimamente a estabilidade do euro.
O que se passa entre Portugal e as instâncias europeias não é uma querela económico-financeira, como muitos querem fazer crer, é uma questão puramente política. E é assim que deve ser tratada.
Não sei como isto irá acabar. Veremos se o acordo grego apazigua os mercados, se a irresponsabilidade do referendo de Cameron nos não sai cara a todos. E, claro, se Trump vier por aí, então o caso muda de figura e não vão chegar os coletes salva-vidas.
(Artigo que ontem publiquei no "Jornal de Negócios")

sexta-feira, maio 27, 2016

As conversas e a educação

Uma das regras de ouro que quem é recebido por uma figura de Estado sabe que deve respeitar - se for educado e estiver de boa fé - é, à saída, não se permitir dar a sua versão do que terá ouvido da parte dessa figura, a menos que tenha sido expressamente autorizado a tal. Quem pede uma audiência apenas pode, legitimamente, referir em público aquilo que lá foi dizer.

O movimento das escolas com contratos de associação foi recebido pelo Presidente da República. Depois da audiência, relataram à comunicação social a sua versão do que o chefe de Estado lhes teria dito. Pouco depois, a Presidência da República, em comunicado, desmentiu-os. Teriam evitado este vexame, que deixa uma nota triste sobre o seu grau de seriedade, se, com um mínimo de contenção e respeito, tivessem provado que, naquelas escolas, também há educação.

O preço do telegrama


Foi nos anos 80 ou 90 do século passado.

O embaixador leu o texto que o seu colaborador lhe apresentara. Era uma proposta de "telegrama" para o Ministério dos Negócios Estrangeiros - designada no dia-a-dia como "Secretaria de Estado", na liturgia da carreira. 

A importância do assunto não justificava uma comunicação com a dimensão que era proposta. O jovem colaborador não tinha ainda a experiência necessária para adequar os textos à real relevância dos temas. Por excesso de zelo ou entusiasmo, fizera um longo projeto de telegrama que, naturalmente, não poderia seguir assim para Lisboa. Caberia ao embaixador reduzi-lo ao essencial. Até porque seria o embaixador a assiná-lo, como é regra, não obstante ter sido elaborado pelo seu colaborador. E a "Secretaria de Estado", onde não há muito tempo a perder para leituras desnecessárias, estranharia que ele enviasse aquele "pastelão"

(Na carreira, há uma graça segundo a qual alguns diplomatas passam metade da carreira a escrever os textos que outros assinam e a outra metade a assinar aquilo que os outros escrevem...)

- Você sabe por que razão, na carreira diplomática, chamamos "telegramas" às nossas comunicações?, perguntou ao rapaz, que, de pé na sua frente, parecia um pouco desiludido pelo facto do chefe se mostrar decidido a "estragar" a obra que tanto trabalho lhe dera, procedendo a uma redução do texto.

- Bom, creio que é uma designação bastante antiga, mas não sei bem a razão...

- É muito simples, meu caro: diz-se "telegramas" pelo facto de, no início das comunicações diplomáticas, não haver meios técnicos de ligação entre os postos e Lisboa. Os telexes ou os faxes não existiam. Nesse tempo, nas situações urgentes, utilizavam-se os serviços dos correios, através de um vulgar telegrama, onde se escreviam as mensagens, muitas vezes em linguagem cifrada.

- Não sabia, senhor embaixador.

- Mas sabe como se mede o preço de um telegrama enviado pelos correios?

- Creio que se paga um xis por palavra, não é?

- Exatamente. Por essa razão, há uma regra não escrita na carreira, quando se prepara um telegrama: devemos pensar que somos nós a pagá-lo... 

Nós e a Catalunha


Daqui a dias, terá lugar em Lisboa um debate sobre a Catalunha, naturalmente centrado nas ambições independentistas que atravessam aquela autonomia espanhola. Como é sabido, com especial incidência nos últimos anos, uma vontade catalã de caminhar para a um Estado próprio tem vindo a ser afirmada com grande vigor, embora se saiba subsistirem grandes divisões internas sobre o tema.

As razões históricas da Catalunha, bem como a questão da incompatibilidade do secessionismo com o ordenamento político espanhol, são matéria de intensa polémica em toda a Espanha. Em escala diversa, essa discussão não deixa de tocar setores de outras autonomias históricas, onde, contudo, o tropismo para uma independência surge muito menos afirmado, salvo em agendas radicais minoritárias.

De há muito que entendo que, enquanto país, não nos compete assumir qualquer posição sobre o futuro constitucional da Espanha. Os cidadãos portugueses são, bem entendido, plenamente livres de se exprimirem sobre o tema, mas o Estado português, enquanto tal, tem obrigação de assumir uma absoluta neutralidade face ao modo como o nosso único vizinho terrestre define o seu futuro. Porquê? Porque Portugal terá sempre de conviver com esse futuro, seja ele o que vier a ser, pelo que constitui uma ingerência nos assuntos internos espanhóis proceder de forma diferente, como o seria Madrid vocalizar opiniões sobre uma independência da Madeira ou dos Açores. Isso inclui, naturalmente, não nos colocarmos ao lado do governo espanhol contra o separatismo catalão, contrariamente ao que, erradamente, vimos Passos Coelho fazer, em 2015.

Por isso, é apenas enquanto mero observador exterior que defendo não ser do interesse português uma independência da Catalunha, como o não seria a de qualquer outra região da atual Espanha, fosse ela o País Basco ou a Galiza. Entendo altamente perigosa uma “balcanização” da Espanha, país com cuja dimensão, na sua atual unidade, convivemos muito bem, de forma harmoniosa e amiga.

Sei que pode germinar em alguns espíritos lusos a estratégia saloia de enfraquecer a Espanha através da sua divisão. Esta leitura aljubarroteana converge com a dos que entendem que devemos à Catalunha a “distração” que, em 1640, permitiu a recuperação da nossa própria independência, pelo que essa “gratidão” deveria agora ser retribuída. Tais visões não ponderam as pulsões disruptoras que isso seguramente iria induzir em Espanha, gerando efeitos de sentido imprevisível, e por isso indesejáveis, nos atuais equilíbrios peninsulares.

Entre dois sentimentos legítimos – a simpatia de alguns pelo direito dos catalães à autodeterminação da sua região e a preservação de uma estabilidade regional que entendo que melhor protege os nossos interesses no espaço peninsular – não tenho a menor hesitação.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias") 

quinta-feira, maio 26, 2016

O mundo e a América que aí vem


Nas eleições americanas, o debate sobre política externa não costuma ser muito sofisticado. Em regra, as posições assumidas pelos candidatos têm algo de caricatural, como se houvesse necessidade de simplificar o discurso para um universo de eleitores que concentra nas questões internas as razões essenciais para a sua escolha. É na retificação das alegadas insuficiências da posição dos EUA no mundo, durante os mandatos anteriores, que se situa o eixo das propostas dos candidatos.

Obama não deixa um mundo mais seguro do que aquele que encontrou. Pode dizer-se que se confrontou com uma desastrosa herança de George W. Bush, que teve de defrontar um Congresso hostil e que tentou desenhar uma agenda internacional de retificação da imagem intrusiva e irresponsável que o seu antecessor titulara. Outros dirão que não se pode criticar Obama por ter mostrado uma atitude menos intervencionista quando, precisamente, o mundo havia criticado Bush por assumir uma agenda oposta.

Não subscrevo esta tese desculpabilizante. Obama é presidente de um país que se arroga o direito de intervir onde e quando julga útil, através do mundo, para defesa do que entende ser o direito à sua segurança, que sempre procura que seja identificada com o interesse global. Um país que assim atua tem de ser responsabilizado pelos efeitos que as políticas que desencadeia acabaram por produzir. Ao mundo que as sofre, para o mal ou para o bem, é indiferente o nome do ocupante da Casa Branca.

Pode colocar-se a crédito de Obama (e de John Kerry) a diplomacia persistente que levou ao acordo nuclear com o Irão, a distensão incompleta com Cuba, mas pouco mais, a menos que queiramos incluir como feitos o seu fabuloso discurso do Cairo e a recente e inspiradora intervenção em Hannover.

Obama decidiu manter os EUA fora dos conflitos que não traziam uma ameaça direta à segurança americana e, não abandonando uma prática vetusta, optou pela ação multilateral quando com ela podia garantir os interesses americanos, mas não hesitou em usar a ação unilateral quando entendeu necessário para os mesmos fins. Pelo caminho, não cumpriu o que prometera sobre o fecho da prisão de Guantanamo, ajudou (com Hillary Clinton) a incendiar a Líbia, manteve uma estratégia errática para o Iraque e para a Síria (o que facilitou a criação do ISIS) e deixa o Afeganistão num caos, com o Paquistão nuclear com danoi colateral. A questão israelo-palestiniana não deve a Obama nenhum avanço e, no Golfo, criou aos seus aliados tradicionais uma inédita orfandade estratégica.

A opção pelo Pacífico alertou a China e reforçou as suas tentações armamentistas, ao mesmo tempo que criou à Europa uma sensação de abandono. Na NATO e com a “nova Europa”, acabou por ser co-responsável pela desastrosa política para a Ucrânia, que deram à Rússia pretextos de segurança, “metendo no bolso” a Crimeia e sentindo-se à vontade para intervir militarmente na Síria.

Por muita simpatia que o cidadão Barack Obama nos mereça, pelas fantásticas lições de humanidade que nos deu, a sua política externa, vista de fora, foi simplesmente medíocre.

E depois de Obama? Que farão os “presidentes” Trump e Clinton?

Por entre o “bullying” discursivo de Donald Trump não se consegue detetar uma linha clara do que faria, se eleito. Para além da ideia de restaurar a “paz global”, reconstruir o poderio militar americano e “destruir o ISIS”, o programa de Trump inclui “sair” (!) da NATO, se acaso os seus aliados não partilharem melhor as responsabilidades. Recusa ainda promover o “nation building”, limitando-se os EUA a “instituir estabilidade”. Convenhamos que é pouco e longe da qualidade habitual da agenda tradicional republicana. Claro que, com o tempo, o programa será refinado, mas, por ora, é um mundo de confusões.

A “presidente” Clinton tem outras ambições, muitas delas assentes numa clara retificação das políticas de Obama, de quem, convém não esquecer, foi o primeiro chefe da diplomacia.

Com ela, a América não caminhará para o modelo relativamente isolacionista de Trump, mas para uma afirmação de liderança americana à escala global. Desde logo, contrariando as intenções russas, com um reforço militar substancial junto aos aliados no leste europeu. Os sinais vão no sentido de fazer presumir que uma administração Clinton utilizaria a Turquia como instrumento de contenção regional, em especial na Síria, num modelo novo que pode provocar uma reação russa. Fala-se da possibilidade de um investimento forte na reconstrução da Líbia, o que seriam muito boas notícias para a Europa e poderia ajudar a travar o islamismo no Sahel.

Clinton será, ao que tudo indica, uma presidente “republicana”, com uma agenda seguramente bastante tensa com Moscovo. Quer isto dizer que, com ela, o continente europeu pode sofrer tensões internas, que a “nova Europa” de que falava Rumsfelt, poderá ressurgir como o “amigo americano” europeu preferencial. Nada de novo: para quem não se lembrar, Clinton votou ao lado de George W. Bush em favor da invasão unilateral no Iraque.

(Artigo publicado hoje na edição "online" da "Sábado")

quarta-feira, maio 25, 2016

Mas isto é tão simples...

A Constituição da República determina que o ensino público obrigatório seja laico e, naturalmente, gratuito. Se o Estado, não tendo pontualmente possibilidade de facultar o direito ao ensino gratuito na rede de ensino público (onde o princípio da laicidade é sempre rigorosamente observado), tiver necessidade de subcontratar supletivamente algum ensino privado, só o poderá fazer através de escolas que preservem a laicidade imanente ao ensino público. Entregar crianças que, por lei, deveriam ter um ensino laico a escolas que observam rituais religiosos (católicos ou outros) configura um grave infringimento de uma importante liberdade constitucional, um dos fundamentos basilares da ética republicana. Por isso me pergunto se o Ministério da Educação estará atualmente a cumprir a lei. 

Como é óbvio, as escolas com matriz religiosa devem ter pleno direito de existência, por corresponderem a outro importante direito que a Constituição republicana protege - a liberdade religiosa. Muitos pais portugueses entendem que os seus filhos devem ter um ensino religioso. Quem assim entende, deve pagar para isso, da mesma forma que outros pais recorrem a ensino laico privado, também pago. Nada disto se deve confundir, contudo, com o ensino público. 

Isto parece-me tão simples e óbvio que não entendo onde pode haver dúvidas.

Portos


A escolha de Lídia Sequeira para dirigir o porto de Lisboa foi uma excelente decisão. A gestora, que já fez uma obra notável no porto de Sines, é um nome de qualidade indiscutível, que merece toda a confiança. Conheci-a, há três anos, num trabalho conjunto e deixou-me a melhor impressão em matéria de competência.

Porém, e para além disso, a tensão em torno da greve dos estivadores introduz alguma dificuldade na conjugação de apoios que sustenta o governo. Num contexto diferente, o executivo estaria de mãos mais livres para promover soluções duras e confrontacionais, à altura daquilo que os estivadores necessitariam, tendo em conta os elevados custos do seu boicote à economia nacional. Nas atuais circunstâncias, embora o PCP não tenha ilusões de que o governo venha alguma vez a alinhar com o seu seguidismo face aos sindicatos, é óbvio que António Costa não tem as mãos completamente livres para uma intervenção musculada no conflito. E é pena! É esse o preço inevitável da "geringonça"...

terça-feira, maio 24, 2016

As dúvidas liberais

Os liberais do burgo defendem o princípio do subsídio público a (algum) ensino privado.

Mas respeita a filosofia liberal haver negócios privados que, pelos vistos, só têm sucesso se pagos pelo dinheiro dos contribuintes?

Verifica-se que, na lista dos estabelecimentos de ensino privado aos quais o Estado subcontrata os serviços, pelas carências pontuais no serviço público, surgem instituições que sujeitam os alunos a práticas religiosas diárias, que a laicidade determinada pela Constituição da República não admite no ensino público.

Estará o Ministério da Educação a respeitar a Constituição ao estabelecer contratos com este tipo de escolas? Admite fazê-lo com estabelecimentos das seitas Mormon? E neste caso, onde estão os nossos liberais? Não se indignam contra este ataque à livre escolha no ensino?

segunda-feira, maio 23, 2016

Portugal e o Atlântico

Hoje, no quadro do V Encontro "Triângulo Estratégico América Latina - Europa - África", organizado pelo IPDAL, na Culturgest, a partir das 17.30 h, debaterei o alinhamento atlântico de Portugal com Paulo Portas, Bernardo Pires de Lima e Luís Marques Mendes.

domingo, maio 22, 2016

As voltas ao circuito


- Quantos circuitos poupamos com o túnel?

A pergunta, feita na madrugada de ontem, entre dois vilarrealenses, deixou perplexo o passageiro que ia no banco de trás do automóvel naquela travessia do Túnel do Marão, numa viagem entre o Porto e Vila Real.

- O que é que vocês querem dizer com isso?

Lá tivemos que explicar...

Uma certa geração de Vila Real tem na memória o percurso antigo do circuito automóvel da cidade (substancialmente diferente do atual). Eram 6,925 km, razão pela qual a distância de 7 km se tornou familiar para muitos de nós e, mais do que isso, passou a ser uma espécie de referencial de medida. Várias vezes, por exemplo, ao ver uma placa com indicação de 35 km, dou por mim a pensar que "já só faltam cinco voltas ao circuito".

Já agora: o túnel do Marão "tira-nos" mais de duas voltas ao circuito...

sábado, maio 21, 2016

O mistério constitucional do Brasil



O Brasil tem um regime presidencialista. O governo do país é dirigido pelo presidente da República, eleito com base num programa sufragado pelo voto popular. A última eleição teve lugar em finais de 2014, tendo Dilma Rousseff sido eleita maioritariamente contra a linha proposta pelo seu opositor conservador.

No modelo presidencialista brasileiro (tal como nos EUA), os candidatos à presidência apresentam-se com um vice-presidente, para uma eventual necessidade de substituição. O vice-presidente não tem um programa próprio, isto é, sendo eleito conjuntamente, compete-lhe aplicar o programa na base do qual foi eleito o presidente - a pessoa em quem os eleitores efectivamente votaram.

Para aprovar medidas de natureza legislativa, mas não para a gestão política corrente, o presidente brasileiro necessita de ter apoio no Congresso – constituído pela Câmara de deputados e pelo Senado. Contudo, a sobrevivência do governo não depende da confiança parlamentar. Em teoria, o governo não necessitaria sequer de incluir parlamentares, mas, naturalmente, o presidente segue esse princípio, para garantir uma constante base de apoio para processo legislativo.

A presidente Dilma Rousseff encontra-se suspensa das suas funções (em teoria, apenas por 180 dias), face a acusações de que teria infringido alguns dos seus deveres constitucionais. Os defensores da presidente entendem que as razões invocadas para o seu afastamento não têm um fundamento que justifique a destituição e que todo o processo não passa de um "golpe", que gritam pelas ruas. Como dizem os juristas, a doutrina sobre este tema divide-se, pelo que não quero chamar essa polémica para aqui.

Na pendência do esclarecimento das questões que envolvem a presidente, o vice-presidente da República assumiu o seu cargo. Em tese, se o Senado brasileiro concluir pela inocência da presidente, esta poderá regressar ao cargo e o vice-presidente deixará as funções que interinamente está a desempenhar. Porém, se a presidente for afastada, e o vice-presidente assumir em plenitude o cargo até ao fim do mandato, que programa está este obrigado a aplicar ? Naturalmente aquele sob o qual foi eleito, isto é, o programa cuja aprovação popular lhe permite estar ocupar o cargo.

É que, entretanto, não houve novas eleições, pelo que só pode prevalecer a vontade maioritária expressa nas urnas da última vez que os cidadãos foram chamados a tal. Mas, perguntará o leitor, e a vontade do parlamento, o sentimento anti-Dilma evidenciado ? O regime braseleiro não é parlamentar, não escolhe o governo e este não responde constitucional e programaticamente perante o Congresso.

Assim, um vice-presidente da República que assume a presidência desta forma tem legitimidade para modificar a orientação política sob a qual foi eleito? Pode um presidente nestas condições aplicar um programa que não só é decalcado do programa derrotado nas últimas eleições presidenciais como vai muito mais longe no seu afastamento face ao programa eleito?

Na realidade, se acaso há um "golpe" político no Brasil, é este.

(Artigo hoje no jornal "Público")

sexta-feira, maio 20, 2016

Venezuela



A Venezuela é uma tragédia anunciada, desde há vários meses O governo populista de Nicolás Maduro, uma espécie de “genérico” de Hugo Chavez, conduz o país a um beco que só tem saída através de uma rutura, cujo formato prático ainda está por clarificar.

Chavez era um demagogo com carisma, que  aproveitou a riqueza do petróleo, que a Venezuela tem a rodos, para lançar generosas políticas sociais que lhe grangearam apoio de setores muito fustigados pelas profundas desigualdades que sempre marcaram o país. Porque a democracia, tal como a conhecemos nas nossas sociedades, não estava nas suas prioridadades, Chavez instituiu um modelo político que fraturou progressivamente a sociedade, hostilizando quem se opunha ao meu megalómano projeto de instituir um “remake” da mitologia gloriosa de Bolívar. De caminho, viciou o país à monocultura petrolífera, que pagava as importações maciças e dispensava tudo o resto.

Chavez morreu. Sucedeu-lhe Maduro, que foi confrontado com a queda do preço do petróleo, ficando sem recursos para suportar as políticas públicas assentes num Estado pletórico, que diabolizara a iniciativa privada a arruinara o tecido económico. Sem o menor diálogo com a oposição política, Maduro optou pela bravata, acusando o “imperialismo” e os seus supostos aliados internos de todos os males do país. O passado já provou que a direita venezuelana não é “flor que se cheire”, mas a verdade é que o principal problema é a insustentabilidade prática do modelo chavista.

Esta crise política poderia ser idêntica a tantas outras que o mundo tem, não fosse o caso de viver na Venezuela uma muito importante comunidade portuguesa, maioritariamente desafeta ao atual regime, que se teme possa vir a ser apanhada no fogo cruzado que um desfecho violento venha a originar. Há muito pouco que autonomamente possamos fazer, para além de monitorizar a situação, lado a lado com outros parceiros, nomeadamente europeus, agora que o Brasil perdeu conjunturalmente qualquer “leverage” no processo.

Há quem, retroativamente, aproveite para criticar o impulso dado por anteriores governos portugueses ao reforço dos laços económicos com a Venezuela de Chavez, realçando alguns negócios que a crise petrolífera não deixou que fossem para diante. É um erro pensar assim. Os dirigentes políticos, de Sócrates a Passos Coelho, fizeram o que deveriam ter feito: garantir às empresas contratos, que criaram aqui empregos e lucros, mesmo com os naturais riscos, ao mesmo tempo que procuraram sustentar o melhor ambiente político possível de diálogo com um país que acolhia largas dezenas de milhar de portugueses. Ou alguém já pensou no que, entretanto, poderia ter acontecido se acaso Lisboa tivesse atuado de outra forma?


Migrações e refugiados


As repercussões políticas, sociais e económicas dos fluxos migratórios, ligados a crises humanitárias, é um tema que preocupa hoje crescentes setores da sociedade portuguesa, os quais procuram acompanhar e analisar as diferenciadas respostas surgidas no contexto europeu e, muito em particular, refletir sobre a atitude portuguesa face a este fenómeno, olhando o futuro. Nos diversos fóruns de debate em que tenho participado nos últimos anos (políticos, económico-financeiros, culturais e sociais), noto que estas novas dimensões da crise emergem cada vez mais como relevantes nas preocupações das pessoas, que cada vez mais se dão conta de que, no contexto europeu onde tudo isto converge, como dizia Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado".

Na 4a. feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, com a secretária de Estado Margarida Marques e Rui Pereira, debati a "Ambivalência da Europa perante o drama dos Refugiados", com moderação do jornalista Ricardo Alexandre.

Ontem, no Centro Nacional de Cultura, com o general Martins Branco e com José Manuel Felix-Ribeiro, sob moderação de Rui Vilar, abordei o "Êxodo para a Europa, em especial o modo como aquela realidade afetou o projeto europeu, procurando trabalhar algumas respostas.

Em ambas as ocasiões, entre outras considerações, exprimi a opinião de que se está a pedir à Europa respostas muito complexas, talvez demasiado ambiciosas para o seu atual grau de integração, que se situa aquém do forte tecido de políticas que seria exigível, face à gravidade de uma situação que se repercute de forma diferenciada nas agendas nacionais. A Europa que hoje temos estava apenas preparada para uma "gestão corrente" mas, claramente, não tem dimensão institucional que lhe permita responder a crises graves, em especial se estas surgirem, como estão a surgir, de forma cumulativa, provocando fortes tensões numa rede de políticas incompletas, onde se cruzam responsabilidades europeias com reservas nacionais de competência soberana. Isto é válido para os refugiados como o é para a crise do euro ou as tensões securitárias em torno de Schengen, entre outras coisas.

Uma questão que abordei nos dois debates prende-se com as responsabilidades portuguesas, para deixar uma palavra de orgulho pela atitude do nosso país, desde as entidades oficiais à sociedade civil. Embora saibamos que algumas condições particulares colocam Portugal ao abrigo de alguns dos efeitos mais dramáticos nesta crise, a posição assumida pelo nosso país desde a primeira hora, com uma reação em uníssono do espetro partidário, conferem-nos autoridades para podermos reclamar uma clara e prestigiante posição de "benchmark" no contexto europeu.

Alguns dirão que tudo isto não passa de palavras trocadas, não entendendo o caráter pedagógico deste tipo de ações, desprezando a formação de redes ativas de atenção perante os problemas e as suas sequelas, multiplicadoras do sentido de um sentido de responsabilidade solidária que importa estimular. A estes arautos de sofá, que esgrimem cinismo e crítica fácil, eu pergunto, muito simplesmente: estão a fazer melhor? 

quinta-feira, maio 19, 2016

Os desastres e as tragédias

O desaparecimento sobre o Mediterrâneo de um avião da Egyptair que fazia o voo entre Paris e o Cairo (fiz essa viagem num voo da mesma companhia, há poucos anos) é um desastre mais para a história da aviação mas é uma tragédia humana para quem dele é vítima, bem como para as respetivas famílias.

Desta vez, a tragédia abateu-se sobre um qualificado colega com fortes responsabilidades numa empresa de cuja equipa de gestão faço parte. Para os seus familares deixo aqui uma mensagem amiga de simpatia e pesar.

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...