quinta-feira, outubro 02, 2014

Uma síntese

Um dia poderemos falar do "revisionismo" que por aí anda sobre a ditadura a que o 25 de abril pôs termo. E dos nomes de uma geração de historiadores que, com jeito e subliminar técnica, pacientemente se dedicam a dulcificar ou relativizar o caráter sinistro do Estado Novo.
 
A técnica é simples: reconhecem-se alguns factos impossíveis de negar sobre o Estado Novo (às vezes com algumas adaptações semânticas, para não contribuir para a "narrativa" oposicionista tradicional) e, depois, relativiza-se essa realidade com imediata referência aos acontecimentos do período da I República. Este período é também quase sempre usado para absolver o autoritarismo dos últimos anos da monarquia, por cuja turbulência, aliás, os republicanos são tidos como os principais responsáveis. Porém, este percurso justificativo não leva a sua lógica até ao fim, isto é, não explica, por exemplo, que a agitação monárquica foi responsável por muita da instabilidade dos primeiros anos da nova República e que o golpismo premonitório do 28 de maio de 1926 muito contribuiu para a sua desestruturação e declínio. Outra "técnica" complementar é usar pontuais abusos ocorridos no período revolucionário de 1974/75 (prisões, sevícias, etc.) como exemplos de que, afinal, as coisas não haviam sido assim tão diferentes na época imediatamente anterior.   
 
Às vezes, quem muito escreve sobre estes assuntos é obrigado a sínteses. Foi o que aconteceu hoje a um prolífico historiador moderno, talvez o mais proeminente exemplo da historiografia conservadora, Rui Ramos. Talvez ele não aprecie que esta sua frase seja retirada do contexto, mas eu acho-a tão exemplar que não resisto a citá-la: "O Estado Novo foi uma ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu, torturou e matou oposicionistas". Ele não escreveu apenas isto, mas é só isto que dele me apetece citar. E elogiar. 

Alternativas

 
Na tarde do próximo sábado, dia 4 de outubro, participarei numa mesa redonda no âmbito do "Congresso Democrático das Alternativas", a ter lugar no liceu Camões, em Lisboa.
 
O tema será "A dívida, a União europeia e a soberania". No debate, moderado por José Castro Caldas, participarão ainda João Ferreira do Amaral, José Gomes Canotilho, Marisa Matias e Octávio Teixeira.

Às vezes por uma rosa

 
Ontem à tarde. Era um café de bairro, muito pequeno, com duas mesas apenas, daqueles que servem refeições rápidas. Eu era o único cliente, para uma bica. Dentro do balcão, dois homens, claramente sócios. Discutiam como se eu não estivesse por ali. A relação entre os dois tinha algo de estranho, como se houvesse uma afetividade já ferida pelo desgaste de uma difícil vida em comum, que visivelmente não se resumia àquele confinado espaço. Um deles, um pouco mais velho, queixava-se de que o outro não colaborava como devia, que algo que lhe competiria fazer nunca aparecia feito. O outro, barba de três dias, esquálido, de olhar vidrado, mostrava um estado de tensão cada vez menos contida. "Já ouvi. Acabou! Não digas mais nada!". O primeiro insistia, mais sereno na aparência, o que sugeria uma espécie de assumida autoridade. "Já te disse que isto assim não pode continuar". A minha bica, praticamente sem que qualquer deles me olhasse, lá surgiu. "Vais-te arrepender, se não te calares", disse o admoestado, num crescendo de raiva. Estranhamente para os costumes, as suas vozes não subiam muito. Pelo contrário, soavam a remoques que a sua proximidade física, atrás do balcão, transformava numa coreografia teatral bizarra. "Eu digo o que quiser! Tenho razão!", insistia o primeiro, em jeito de persistir em esgravatar no mal-estar. Foi então que, comigo sempre "ausente", vi a faca surgir na mão do outro. Separava-os nem um metro. Com a voz a tremer, apontando-a junto à cintura, saiu-lhe: "Já faltou mais para te espetar isto nas tripas!" Um sorriso amarelo surgiu na face do primeiro, que, no entanto, ousou ainda a provocação: "Não tens coragem!". Vi então uma chispa no olhar do da faca e não me contive: "Meus senhores! Calma!". A faca foi pousada sobre o balcão. Tive a sensação de que o mais novo, que me servira a bica, só então olhou para mim, de forma fixa, bem no fundo dos olhos. "Quer pagar o café?". Paguei e saí. 

Lembrei-me então de Manuel Alegre:

Aqui viviam morriam. Tinham suas mulheres
suas tabernas seus adros
seus ódios e seus amores.
Aqui às vezes matavam.
Por uma vaca. Uma galinha. Água. Desespero.
Por uma coisa de nada:
às vezes por uma vaca
às vezes por uma rosa.

Naquele caso, seria mais pela rosa do que pelas mulheres.

Este país anda muito nervoso. 

quarta-feira, outubro 01, 2014

Eduardo Ferro Rodrigues

Uma amizade de quatro décadas é um "disclaimer" que não escondo, mas a presença de Eduardo Ferro Rodrigues à frente do grupo parlamentar socialista é, para mim, a primeira boa notícia da nova gestão de António Costa.
 
Ferro Rodrigues é um dos mais sérios políticos portugueses, um homem de princípios como conheço poucos, uma figura que honra a nossa democracia. Em todos os lugares que ocupou deixou uma rara marca de rigor, de competência e de dedicação à causa pública.

"The last king of Portugal"

Posso estar enganado, mas não me parece que Paula Rego, com a sua nova exposição "The last king of Portugal", vá grangear novos fãs em certos amigos meus...

A consideração


As más relações entre aquele embaixador e o ministro dos Negócios Estrangeiros eram conhecidas. Um conflito entre os dois desencadeara uma "guerra" surda que se mantinha já há alguns meses, com alguma repercussão pública. O ministro suportava o diplomata porque, por um conjunto variado de razões, era-lhe conjunturalmente impossível "ver-se livre" dele. Mas, sempre que podia, não deixava de atuar de modo a tornar difícil a vida do embaixador. E este, quase sempre, respondia da mesma moeda e, nas suas respostas, roçava frequentemente a insolência. O ministério, deliciado, esperava para ver quem seria o primeiro a "quebrar".
 
Um dia, o embaixador decidiu protestar por escrito, a propósito de uma qualquer decisão de Lisboa que entendeu errada. Como era seu hábito nesse tempo de confrontação com o ministro, usou um tom agreste na comunicação. A atitude terá desagradado ao chefe da diplomacia, que decidiu responder-lhe de uma forma ríspida, dizendo-lhe que não admitia comunicações formuladas naquele tom. Usou, para tal, um modelo de comunicação muito raro nas tradições da "casa", isto é, assinando ele próprio o "telegrama" ao embaixador, subscrevendo-o como "Ministro". Em regra, todas as comunicações enviadas de Lisboa para os postos aparecem assinadas por "Nestrangeiros", uma designação coletiva que representa o MNE. Dessa vez, o ministro optara pela fórmula de exceção, seguramente para marcar bem a pessoalização do "ralhete", que logo circulou pelos claustros.
 
O embaixador "dormiu sobre o telegrama", como se diz na linguagem tradicional do MNE. Só no dia seguinte respondeu, enviando um curto telegrama em que fazia uma indireta alusão ao facto de ter sido o próprio ministro a subscrever o texto: "Telegrama de V. Exa. nº "tal" foi lido por mim com a atenção que a sua origem justificava e com a consideração que o seu conteúdo merecia".
 
Conhecidas as relações entre os dois subscritores, ficava claro o que a "consideração" expressa pelo embaixador significava. Porém, no plano estritamente formal, o texto estava "blindado", isto é, dele não se poderia, necessariamente, inferir qualquer propósito menos respeitoso. De qualquer forma, vários diplomatas mais antigos, conhecedores do rigor dos humores do ministro, ficaram à espera de ver surgir, como reação, o conhecido texto que indicia a retirada do embaixador do local de trabalho: "É Vexa chamado em serviço, sem regresso ao posto".

Porém, nada aconteceu. O embaixador continuou em funções. O ministro não terá tido a coragem ou, o que é mais provável, continuava a não ter a possibilidade de se "ver livre" dele. Tempos depois, viria a acontecer precisamente o contrário: o ministro viria a abandonar o lugar, sem honra nem glória. E foi o embaixador quem se "viu livre" do ministro. É a vida!

terça-feira, setembro 30, 2014

Salário mínimo

A Comissão Europeia está desagradada com o novo salário mínimo em Portugal. Acha demais!
 
Talvez alguém devesse inquirir qual é o salário mínimo pago pela Comissão aos seus funcionários. E, de caminho, qual é o salário mais elevado que paga, esclarecendo os benefícios complementares de que usufruem os funcionários das instituições europeias.
 
Não se trata de suscitar nenhuma "inveja" particular sobre os rendimentos de quem, honradamente, cumpre as suas funções nas instituições de Bruxelas. Trata-se apenas de realçar esta espantosa insensibilidade de instituições cujo pessoal não é atingido pelo desemprego, pela pobreza, pelos cortes nos apoios de saúde e educação e que - vale a pena sublinhar - também são pagas pelo nosso orçamento nacional.

Alpoim Calvão

Morreu Alpoim Calvão. No dia 25 de abril de 1974, foi a sua estranha e nunca bem explicada deslocação matinal às instalações da Direção Geral de Segurança (ex-PIDE), na rua António Maria Cardoso, que deu alento aos respetivos agentes, os levou a optar pela resistência e permitiu que tivessem tempo para destruir importante documentação. Mais tarde, Calvão viria a ser um dos mais decisivos operacionais do MDLP, o movimento com que Spínola pretendeu reverter o curso do processo político e que ficou ligado a vários atentados, alguns mortais, no norte do país. O momento da desaparição de Alpoim Calvão não pode branquear este seu passado.

Alpoim Calvão havia sido, ao tempo da guerra colonial, um militar valoroso, titular da mais alta condecoração portuguesa, a Torre e Espada, sendo, até hoje, o mais condecorado militar da Armada portuguesa. A sua coragem era lendária e, em alguns meios, era conhecido como o "007 português". Em 1970, comandou a chamada "Operação Mar Verde", um golpe de mão ordenado por Spínola, dentro da República da Guiné, que tinha como objetivo central prender Amílcar Cabral. A ação provocou morte e destruição em Conacri, não cumpriu o objetivo essencial* e transformou-se num imenso embaraço para as autoridades portuguesas.

Soube agora que Alpoim Calvão escreveu três livros. O único que li, "De Conacry ao MDLP", é um relato essencial, pelo que diz e pelo que deixa implícito, para se entender melhor o ambiente do desastre colonial e uma certa perspetiva do período revolucionário.

* Em tempo: relevo um erro. Com efeito, o objetivo de libertar prisioneiros portugueses que estavam nas mãos do PAIGC foi plenamente atingido na operação.

Brasil

Qual dos candidatos às eleições presidenciais brasileiras poderá, à partida, ser mais favorável aos interesses que a Portugal compete defender nas suas relações com aquele país? A recondução de Dilma Roussef será preferível à hipótese de eleição de Marina Silva ou à escolha, agora cada vez mais improvável, de Aécio Neves? Este exercício é apenas teórico, porquanto o bom senso recomenda que não nos imiscuamos numa compita que, sendo profundamente democrática, terá como resultante final a vontade  de um país que, em qualquer circunstância, permanecerá no quadro da nossa atenção próxima.
 
Mas nem sempre foi assim. Durante muitos anos, a vida política interna brasileira, podendo ocupar o interesse de alguns, estava longe de constituir, entre nós, um motivo para a mobilização de opiniões. A razão por que isso mudou é interessante de ser observada.
 
Data de há cerca de duas décadas o início de um novo ciclo de intensificação das relações entre Portugal e o Brasil. No plano económico, radica na presença de capitais portugueses no processo brasileiro de privatizações. A partir daí, verifica-se também uma crescente retoma dos fluxos comerciais bilaterais. No mesmo sentido, uma "moda" brasileira instalou-se, por algum tempo, nos hábitos turísticos portugueses.
 
Depois, foram as pessoas. Portugal encheu-se de um Brasil indiferenciado, em busca de trabalho, que nos trouxe um país que as imagens das novelas nos tinha levado a pensar que conhecíamos. Uma efémera afloração de riqueza encheu entretanto de portugueses o Nordeste brasileiro, com outros a acreditarem que pelo Brasil podiam encontrar o "ouro" nos negócios fáceis. Nessas aventuras de um lado e de outro, houve coisas que correram bem, outras nem por isso. Passámos a entender melhor as nossas qualidades e os nossos defeitos mútuos. Caímos "na real", como se diz no Brasil.
 
Na política, muito dependeu sempre do modo como os dirigentes de ambos os lados se articularam. Historicamente, havia sido nos conservadores brasileiros que Portugal podia contar com os seus maiores amigos. Mas iria ser Lula da Silva, homem oriundo de outro setor, a revelar-se o nosso mais sólido apoio e a concretizar gestos de grande afetividade por nós. Daí decorreu, por exemplo, um impulso importante para o interesse empresarial brasileiro por Portugal ou um estímulo à ação da TAP, que hoje nos enche o país de turistas a falar a língua do gerúndio.
 
Mas, não nos iludamos, há muitos problemas que subsistem. Com África de permeio e a Europa em fundo, demos já passos interessantes para um melhor trabalho em conjunto, nomeadamente em torno da língua que nos junta. Mas a CPLP titubeia pela dificuldade de acomodar o gigantismo brasileiro numa estrutura luso-centrada.

Por tudo isso, não nos é indiferente quem venha a titular a voz do Brasil nos próximos tempos. Temos um candidato? Claro que sim. O nosso candidato é aquele que confira mais estabilidade, que lhe induza maior crescimento e bem-estar e que seja capaz de garantir um reforço do estatuto internacional do país. Esse é o candidato que nos interessa. Deixamos que sejam os brasileiros a escolhê-lo.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, setembro 29, 2014

O Butão

Na passada sexta-feira, num colóquio em que participei, alguém referiu, a título caricatural de exemplo, as "nossas relações com o Butão".

Pude então esclarecer, também por curiosidade, que o reino do Butão continua a ser - se não estou errado - o único país membro das Nações Unidas com o qual Portugal não mantém relações diplomáticas, com a possibilidade de aí acreditar um embaixador sediado noutra capital. Porquê? Porque o Butão tem uma política muito restritiva nesse domínio, como eu próprio tive ocasião de constatar quando, sobre o assunto, desenvolvi diligências ao tempo em que trabalhava junto da ONU. Talvez os leitores deste blogue que exerceram e exercem funções como embaixadores em Nova Deli (que seria a embaixada acreditada no Butão) possam deixar, nos comentários, uma melhor explicação sobre estas reticências butanesas.

Mas a que propósito vem hoje isto? Muito simplesmente pelo facto de ontem este blogue ter tido, pela primeira vez na sua modesta história, um visitante do Butão (ver à direita, no "Flagcounter"). Seria um acaso informático ou terá sido a minha amiga Cláudia Estrela, uma arquiteta brasileira que visita às vezes o Butão, que deu um ar da sua graça? De qualquer forma, bem vindo, leitor/a do Butão!

Para que tudo fique claro

Deixo aqui esta pérola, "roubada" ao Facebook do Paulo Dentinho. Tudo fica assim mais claro, não é?

Uma grande vitória

A vitória expressiva de António Costa nas eleições primárias do PS provou, à evidência, que existia um divórcio acentuado entre o "povo socialista" e a liderança cessante do partido. E que a decisão de lançar um repto a António José Seguro, longe de constituir um gesto de deslealdade de Costa, como Seguro argumentava, constituiu para ele um imperativo, em face de um grande movimento de opinião que a tal o impulsionou. Ficou assim muito claro que o modo como António José Seguro protagonizou a oposição ao governo não estava a agradar a uma grande maioria, não apenas de militantes, mas igualmente da massa eleitoral que usualmente se congrega à volta do PS. E que a figura de António Costa representa hoje, aos olhos desses cidadãos, uma nova e muito concreta esperança. O que significa também que, a cerca de um ano das eleições legislativas, o PS escolhe uma liderança que está em forte sintonia com a sua tradicional base de apoio. E isso não é indiferente para garantir uma boa mobilização para 2015.

O facto da vitória de António Costa assentar numa expressão numérica tão flagrante tem, por outro lado, a virtualidade de desfazer a ideia de que o PS fica, depois deste processo, um partido "dividido ao meio", como muitos auguravam. Pelo contrário, creio que o PS, através da mobilização obtida nestas eleições, pode vir a conseguir transformar o seu próximo Congresso numa grande alavanca política, capaz gerar um movimento forte de oposição ao governo, que hoje não tem a menor razão para estar a passar uma noite tranquila. Julgo mesmo que a "novidade" Costa tem, aliás, melhores condições para reunificar o PS do que teria sido uma mera solução de continuidade, no caso de uma eventual vitória de Seguro.

António José Seguro, que, a meu ver, não esteve bem nos debates e na condução da campanha, como ontem aqui assinalei, saiu com dignidade, cumprindo com o que tinha dito. E pode levar consigo a consciência de que, ao impor as eleições primárias, introduziu na vida política portuguesa uma nova - e, no futuro, provavelmente incontornável - forma de auscultar a vontade do eleitorado. As eleições primárias têm um "preço", pelo ambiente de tensão que induzem na máquina política e por alguma fragilização que trazem ao quotidiano do partido, debilitante da sua função de oposição, durante um tempo demasiado largo. Mas a legitimidade do líder que delas emerge é muito maior do que a que resultaria de um simples processo decisório interno.

António Costa saiu do exercício de ontem muito mais forte do que se tivesse, simplesmente, sido eleito num Congresso. Essa seria uma razão mais que o deveria ter levado, no seu discurso de vitória, a ter a generosidade de uma palavra simples para com o seu adversário, para com António José Seguro, como é da praxe e como Seguro, aliás, não deixou de fazer. Há coisas de que "não há necessidade"...

domingo, setembro 28, 2014

Caro António José Seguro

Escrevo-lhe no dia das eleições primárias do PS.

Recordo bem as conversas que fomos tendo ao longo de meses, o estímulo que dei para o seu esforço em construir uma oposição, simultaneamente eficaz e responsável, à triste governação que nos saiu em rifa. Tenho presente a confiança que em mim colocou, ao ter-me formulado honrosos convites, que nunca pude aceitar, com exceção da pontual colaboração na dimensão europeia do "Novo Rumo", uma iniciativa em que tive uma grande honra em participar e de cujo resultado me orgulho. Pela razão que sempre lhe disse: estou, em definitivo, indisponível para qualquer atividade política ativa. E esse é também o motivo pelo qual, com total liberdade, posso hoje dizer abertamente o que penso.
 
Desde logo, quero deixar claro que a sua tarefa, ao longo destes mais de três anos, foi sempre muito difícil. Você fez opções corajosas, com o objetivo de credibilizar a imagem internacional do PS, ao não obstaculizar o orçamento de 2012 e ao votar favoravelmente o Tratado Orçamental. Nenhum líder socialista responsável teria procedido de forma diferente, tenho absoluta certeza. E foi você, na solidão do lugar onde se encontrava, que teve de tomar a decisão. E fê-lo da forma certa, por muito que agora, com a comodidade da distância, alguns achem que isso não deveria ter sido feito. 
 
O seu espaço de manobra, ao longo de todo esse tempo, com um presidente da República que agora se revela em pleno, foi sempre muito reduzido: caminhar entre um "memorando" que o país político tinha aceite maioritariamente a contragosto, sob um estado de necessidade, e um governo que, dia após dia, surgia incensado por Merkel & quejandos, numa espiral de elogios que parecia diretamente proporcional ao desastre que ia provocando no país. Dir-se-á que, aqui ou ali, poderia ter procedido de forma diferente: talvez, mas você não era um líder populista, lesto a cavalgar "a rua", e tinha a estrita obrigação de cuidar a imagem histórica de responsabilidade do partido que o escolheu. E isso de se dizer que você comprou cedo a "narrativa" do governo sobre a crise é muito fácil de afirmar agora, num tempo em que as pessoas parece já terem esquecido o ambiente político-mediático, cá dentro e lá fora, sob o qual Portugal vivia. A memória é curta, meu caro.  
 
Mas nem só fora do PS estiveram as suas dificuldades. Estavam também no seio do grupo parlamentar socialista, onde você nunca pôde contar com um núcleo importante de deputados, que sempre o combateram. Por três razões: alguns porque nunca aceitaram a sua vitória e não se subordinaram democraticamente à sua liderança, outros porque você não se soube mostrar solidário com muitos aspetos positivos da governação socialista anterior (um importante erro seu!) e, finalmente, com outros que você decidiu não cooptar para a ação política de primeira linha (e fez mal!). Hoje, toda essa gente está com António Costa, alguns deles, há que dizê-lo, por terem entretanto percebido que você lhes não renovaria o mandato em 2015. Houve, de facto, muito sectarismo dentro do PS, mas você, meu caro António José Seguro, também não está isento de culpas nesse domínio. 
 
O PS, consigo, ganhou duas eleições? É verdade. Mas, sejamos francos, nas recentes europeias, o resultado conseguido ficou muito aquém daquilo que seria expectável que o principal partido da oposição pudesse ter conseguido, perante um descalabro da (antiga) maioria e um sentimento de revolta e desânimo que atravessa o país. A distância virtual entre o resultado obtido pelo PS e aquele que se pode computar ao PSD no seio da coligação é quase de 10 pontos? Também é verdade. Só que 72% dos eleitores mostraram o seu desagrado com a ação do governo e, dentre esses, o PS só conseguiu representar 32%. Isto é, 40% do país revoltado escapou-lhe de mão. E isto é um facto, mesmo com a atenuante da especificidade das europeias (mas, se formos por esse caminho, também o resultado das autárquicas pode ser lido como uma opção personalizada pelos candidatos e não uma ação virtuosa do PS central).
 
Como eu, com toda a franqueza, lhe referi logo após as eleições, muitos socialistas (e muita gente que vota PS) não se reviram no seu deslocado discurso da noite eleitoral. Foi um mau resultado e, como também então lhe disse, esse resultado e a forma como você o interpretou abriram o caminho natural à candidatura de António Costa. Não tem qualquer sentido você insistir em dizer que foi uma deslealdade o surgimento desse desafio: foi a resposta polarizadora de um sentimento que atravessava muita gente. Gente muito diversa, desde aqueles que, dentro e fora do PS, nunca acreditaram politicamente em si e a quem o seu estilo de liderança nunca convenceu, até outros que, mantendo por si simpatia e respeito - pela sua seriedade, pelo seu empenhamento, pela sua dedicação - chegaram à conclusão que não podiam arriscar-se a ver o destino do PS, numas futuras eleições legislativas, colado à escassez das vitórias que você lhes prometia. E que, com todo o direito, entenderam apoiar um outro candidato, que consideraram poder vir a protagonizar uma oposição mais eficaz à maioria cessante. 
 
Nessa altura, colocava-se um problema formal e você resolveu-o com inesperada maestria. Não prescindindo - e fez bem! - da legitimidade que os estatutos lhe conferiam (isto é, não se demitindo e convocando congresso e eleições diretas), tomou a decisão sábia de "resolver" o desafio pelo recurso a estas eleições primárias. Provou assim que não fugia à disputa e, mesmo para além disso, abriu-a para além do "aparelho", que o acusavam de ter "na mão".

Tudo estaria mais ou menos bem se o debate, a partir daí desencadeado, se tivesse processado com elevação. E aqui, meu caro António José Seguro, quero dizer-lhe que você esteve muito longe daquilo que eu esperaria de si. E, confesso, desiludiu-me muito. Foi você o primeiro a abrir as hostilidades com acusações de caráter ao seu adversário (como que esquecendo que ele era, antes de tudo, um seu camarada), a espalhar insinuações populistas sem rosto e a desenvolver uma campanha "ad hominem". E isso manchou, em definitivo, a sua imagem. Espero que hoje tenha plena consciência disso. 

Reconheço sem dificuldade que, do outro lado da barricada, alguns agitados prosélitos de António Costa - nos blogues, no facebook, no twitter, nos jornais e nas televisões - colocaram-se, desde cedo, ao mesmo nível a que você fez cair a campanha. Lamentei muito não ver a voz de António Costa a tentar travar essa deriva, mas há que reconhecer que, neste particular, nas intervenções que ele próprio fez, esteve bastante melhor que você. Se acaso ele ganhar, cedo vai perceber que, se quer que um PS sob a sua liderança seja tomado a sério, terá de se afastar de muita dessa "ganga" de "talibãs" de conversa económica radical - uma espécie de émulos, do outro lado do espelho, da "rapaziada" neoliberal que hoje enxameia os corredores do poder. Uma campanha pode ser conduzida assim, o Estado não.
 
Nos debates televisivos, devo dizer que não encontrei o António José Seguro que eu conhecia, o homem sereno, equilibrado, com sentido de defesa dos interesses do seu partido, colocando as ideias - e você construiu um "banco" de ideias que são património de "qualquer" PS - à frente da chicana. Posso estar enganado, mas quem vi por ali foi um homem ferido, amargo, com uma agressividade deslocada e não construtiva. Alguém que teimou em "deitar sal" sobre as feridas, como se, com essa atitude, quisesse consagrar uma vingança pessoal. Não gostei nada do que vi. E, por isso, meu caro António José Seguro, com toda a consideração pessoal que sabe que mantenho por si, lamento ter de dizer-lhe que, hoje, não vai poder contar com o meu voto.  
 
Com um abraço amigo do
 
Francisco Seixas da Costa

sábado, setembro 27, 2014

Seniores

Há dias, foi Sofia Loren. Hoje, é Brigitte Bardot que faz 80 anos. Respeitáveis "seniores", como agora se diz. Deixo imagens, assumidamente nostálgicas, de quando eram promissoras "juniores".

sexta-feira, setembro 26, 2014

Probidade

Ser livre tem imensas vantagens: permite-me, por exemplo, dizer que discordo frontalmente da "exigência" hoje colocada por António José Seguro ao primeiro ministro no sentido deste abrir ao escrutínio público as suas contas bancárias, relativas aos anos em que o então deputado Pedro Passos Coelho tinha dedicação exclusiva na AR. Percebo que isso pudesse ser muito esclarecedor, mas parece-me algo desproporcionado face à gravidade objetiva das suspeitas que andam no ar. Embora saiba que muitos amigos meus não vão gostar de ler isto. É que eu considero que a divergência política que tenho com o primeiro ministro e com o seu governo tem de ficar à porta deste tipo de questões que relevam da ética pessoal.
 
Devo dizer, embora sem nenhum elemento concreto a apoiar esta minha perceção, que tenho o dr. Passos Coelho por uma pessoa séria. Talvez eu esteja influenciado pelo facto de conhecer a sua família, que é gente de bem. E, olhando para a sua vida, nunca nela vislumbrei o menor dos sinais exteriores de riqueza ou de ostentação deslumbrada que, infelizmente, marcam a imagem de muitas pessoas da nossa classe política - desde logo, muita gente do seu partido, mas não só.
 
Uma acusação de falta de seriedade nas "contas" é sempre algo de muito grave. Por isso, e até prova concreta em contrário, acredito na palavra do cidadão Pedro Passos Coelho e na sua probidade. E digo-o com toda a sinceridade e sem a menor ponta de ironia. Mas ele tem de ajudar.
 
O dr. Pedro Passos Coelho, com apoio dos arquivos da ONG em que colaborou, deve procurar explicitar, muito rapidamente, quais as despesas pela quais foi reembolsado por essa mesma organização. Até ao cêntimo. Posso admitir que, nas suas notas pessoais, não disponha desses elementos. Mas não é crível que a ONG em causa não tivesse uma contabilidade organizada que agora possa permitir dilucidar, de uma vez por todas, esta questão, que está a inquinar a nossa vida política e a lançar uma sombra, quiçá desnecessária, sobre o dr. Pedro Passos Coelho.
 
Pergunto-me ainda porque é que na imprensa, que até agora tão atenta se tem mostrado às questões patrimoniais deste caso, nunca surgiu uma reportagem completa, que possa revelar o espetro de ações levadas a cabo por essa ONG, ligada à "Tecnoforma", cuja existência e prolongamento de atividade ao longo do tempo induzem a realização de um vasto programa de realizações. No que me toca, estou muito interessado em saber o que fez, de facto, o "Centro Português para a Cooperação" e, nomeadamente, que tipo de fundos públicos utilizou durante a sua existência. E isso não pode ser objeto de qualquer tipo de reserva de informação. É de interesse público, porque terá mobilizado bens públicos.

quinta-feira, setembro 25, 2014

"Os gatos não têm vertigens"

Cada vez mais, na minha vida, opto pelas reações mais simples e automáticas. Um amigo, há minutos, no Chiado, dizia-me que, no cinema, escolhe sempre cadeiras de coxia, para poder sair se o filme lhe não agrada. Há muitos anos que, sempre que posso, procedo de forma idêntica: se não estou a apreciar o que vejo, "desando" logo, vou "à vida", porque já não tenho idade para me aborrecer com histórias que me entediam. Se, na televisão, "zapamos" quando nos não apetece o que estamos a ver, se fechamos, sem cerimónias, um livro que nos não agrada, porque não sair de um filme (ou até de um teatro) a meio? É o que eu faço.

Vem isto a propósito, curiosamente, de um filme que me provocou uma reação contrária. Trata-se do "Os gatos não têm vertigens", de António Pedro de Vasconcelos. Há mais de quatro anos, escrevi neste blogue: "António Pedro de Vasconcelos pertence a uma raça muito rara de cineastas portugueses que conseguem cumular três características: terem indiscutível qualidade, não serem chatos e, seguramente por isso, terem, entre nós, um público que paga para ver as suas obras - essa coisa pouco comum, algo "suspeita" e até menos dignificante, no peculiar mundo da produção cinematográfica lusa".

O filme a que faço referência fez-me passar momentos deliciosos e divertidos. Construído com arte e graça, servido por um conjunto magnífico de atores onde se destaca - e não o digo por uma velha amizade - Maria do Céu Guerra, é uma obra que recomendo vivamente. Por ali estão a Lisboa contemporânea, os tiques da sociedade portuguesa de hoje, o problemas e as figuras de um país cheio de interrogações mas, igualmente, onde ainda é possível descortinar gestos de solidariedade e de generosidade que, afinal, também são belas caraterísticas nossas.

quarta-feira, setembro 24, 2014

A busca e a abdicação

Há minutos, o "Le Figaro" deu a notícia de que foi descoberta uma prancha do original desenhado por Hergé para "O Ceptro de Ottokar", de Tintin, que estava perdida atrás de um móvel, na casa de um colecionador. Segundo o jornal, pela sua raridade (os Dupond/t juntos com Tintin), esta prancha é valiosíssima.

Não sei porquê, olhando para o desenho, para o trágico momento do governante confiando na investigação, sem o que a sua abdicação seria certa, dei comigo a imaginar que Dupond e Dupont podiam hoje ser membros da PGR. Eu diria mesmo mais: da Procuradoria Geral da República! Mas é claro que tudo isto se passa na Sildávia.

"Ó rapariga és tão feia!"*

Existem histórias de piropos brejeiros, outras de piropos incómodos e inconvenientes, mas há piropos que têm o sabor de uma história, uma história de vida que se preserva como um acontecimento e que deixa marcas.

Esta é a história de como um piropo foi importante na minha vida e dela fez parte.

Ó rapariga és tão feia!

Este piropo perseguiu-me durante anos. Andava ainda na escola, tinha que obrigatoriamente passar por uma velha taberna onde estava sempre sentado num banco, também velho e desgastado, um homem gordo de rosto avermelhado e brilhante, voz surda e de idade indefinida ou, eu pelo menos, não lha sabia definir. Retenho dessa imagem, típica de tempos idos, dos homens que, fugindo ao convívio familiar, faziam das tabernas locais de encontro. Retenho, na passagem, os cheiros, aquele cheiro agridoce do vapor do vinho, das comidas, exalando fumos e aromas. 


E aquele homem sempre ali, como sentinela constante, presente nas conversas e sempre atento ao movimento da rua.

Eu passava, eu tinha que passar. Por vezes atravessava a rua e furtava o olhar daquele lugar. Deliberadamente procurava ignorar a presença certa daquele homem, subtraí-la ao meu olhar vagueando-o para um lado e para outro, para a parede, disfarçando, resistindo ao olhar furtivo. E encontrava, encontrava sempre ou era ele que me encontrava naquela furtividade mal denunciada, mal disfarçada. Outras vezes eu remexia nos bolsos do casaco ou na mala, na esperança que ele não desse por mim. Antecipando o tempo, que falta me fez um telemóvel, tornava o disfarce mais natural, mais corriqueiro. Mas ele dava por mim. Sempre dava por mim,

Ó rapariga és tão feia!

E lá se ficava a rir, desabridamente, de um modo meio estranho e provocador. Eu podia sair de casa mais cedo, atravessar outras ruas, cansar-me num caminho mais longo, eu podia, eu podia... Mas havia sempre qualquer coisa que me levava ou me atraia à passagem por ali. A sedução de um não piropo que afinal o era.

Esse tempo passou. Nunca mais voltei a passar por ali e a lembrança daquele local, daquela taberna e daquele homem deram origem a uma difusa memória de um caricato acontecimento.


Muitos anos mais tarde, passando pelo local, já diferente, onde a taberna deu lugar a um café com um ar decadente, encontro sentado à porta, numa reedição de uma imagem antiga, a figura de um velhinho com ar simpático. Passo, em passo ligeiro, indiferente ao significado do local, das suas presenças habituais, dos cheiros e aromas que lhe davam o estatuto de local único composto de hábitos de pessoas, do ruído das conversas, das discussões mais ou menos acaloradas e de rituais. Uma vaga e distante imagem do que ele tinha representado para mim. Esquecida! Para minha surpresa oiço uma voz rouca, sumida,

Ó rapariga “cada” vez estás mais feia!

Voltei-me para trás. Era ele, o homem que tantas vezes me tinha embaraçado, cabelo branco, coluna vergada pelo peso dos anos. Reconheci-o e no reencontro senti de imediato uma imensa ternura. Aquele homem, aquela presença já não me inspiravam a vergonha e a timidez de outros tempos, as mãos não suaram por conta do embaraço que ele me provocava. Aquele homem, aquela presença eram a expressão viva de pedaços da minha adolescência e não resisti a contar-lhe o quanto me tinha perturbado nos meus tempos de juventude. Rimo-nos os dois.

Ó rapariga tu nunca foste feia eu é que gostava de me meter contigo!

Abracei-o com ternura e emoção.


Recuperei, dezenas de anos depois, a minha imagem de adolescente, afinal bonita. Nunca mais o vi mas hoje, lembrei-me deste episódio e senti saudades dos lugares e das pessoas, das muitas pessoas que viveram naquele tempo, naqueles locais e que ainda hoje povoam a minha memória.

* Esta deliciosa história é da autoria de Maria Odete Santos Silva e surgiu hoje no meu Facebook. Com a simpática autorização da autora, que a havia escrito aquando da primeira vez que o Bloco de Esquerda havia sugerido a criminalização do piropo, publico-a agora aqui.

A europeização da carreira diplomática portuguesa

O Curso de Verão 2014 do IPRI (Instituto Português de Relações Internacionais), que decorre em Óbidos, no Museu Municipal, de 25 a 27 de setembro, é este ano dedicado ao tema "Os Instrumentos da Política Externa Portuguesa: Estruturas, Representação e Desafios de Futuro".

No dia 26, cabe-me participar com José Matos Correia numa mesa redonda sobre a europeização da carreira diplomática, moderados por Teresa Gouveia.

Piropo

Leio que o Bloco de Esquerda vai levar de novo à cena parlamentar a sua proposta de criminalização do piropo. Há pouco mais de um ano, o assunto já havia sido suscitado, como então referi aqui.
 
Com esta iniciativa, aquele grupo político mantém-se na prestigiada senda de trazer a lume temáticas que estão bem no centro das preocupações maiores do povo português. É assim que se dignifica um parlamento. Grande Bloco (e isto não é um piropo!). Bem hajam!

Ilustro este post com a "American girl in Italy", uma imagem clássica de Ruth Orkin, de 1951.

(Cliquem na imagem para ver melhor)

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...