domingo, março 20, 2011

"Off"

Dois jornalistas franceses, ligados à revista "Marianne", decidiram publicar em livro algumas revelações, fruto da sua proximidade pessoal com o presidente Nicolas Sarkozy, ao longo de vários anos.  Chama-se "Off - o que Nicolas Sarkozy nunca nos deveria ter dito".

Interessa aqui pouco o conteúdo do livro, aliás bastante menos importante do que se poderia supor, escrito por profissionais que, manifestamente, nunca estiveram próximos da linha política do presidente francês, como este, aliás, sempre soube. O mais relevante, a meu ver, é a circunstância desses jornalistas se terem sentido agora tentados a revelar factos e opiniões que, no entendimento do presidente e naquele que até agora era o deles próprios, eram considerados "off" - isto é, como fazendo parte daquilo que ambas as partes haviam convencionado, explícita ou implicitamente, não tornar público.

No ano passado, li vários livros, aqui em França, que se baseavam nesse mesmo procedimento, de que o mais sugestivo, a começar pelo título, era o "Si vous répetez, je démentirai...". A diferença é que nenhum desses livros afirmava, de forma clara, a legitimidade de ser quebrado o "off", procedendo apenas a algumas indiscrições, parte das quais desculpabilizadas pelo tempo.

Ora este novo livro coloca em debate, de forma declarada, o problema das relações entre a imprensa e as pessoas que com ela lidam, a preservação no tempo de códigos de honra e de respeito mútuo, que hajam sido estabelecidos no passado. O trabalho fá-lo logo na sua introdução, ao propor-se "quebrar, de uma vez por todas, esta regra de bronze que, desde há tantos anos, desde que os jornalistas modelam parcialmente a opinião pública, governa a relação entre os jornalistas e os responsáveis políticos: a conivência, a cumplicidade, a compreensão mútua".

Todos os que passaram pela vida pública - políticos, diplomatas ou outros - tiveram, seguramente, experiências de relacionamento com profissionais da comunicação social, aos quais, algumas vezes, confidenciaram factos ou ideias, na certeza (ou na convicção) de que esses jornalistas as não utilizariam ou, outras vezes, que utilizariam sem os citar. 

No que me toca, tive e tenho na comunicação social pessoas em cuja discrição confio, embora sempre de forma razoável. E digo "de forma razoável" porque há tentações a que a maioria dos jornalistas não consegue resistir, se a notícia revelada fôr demasiado apelativa, se configurar uma "caixa" irresistível. Noutras funções, consegui sempre fazer uma gestão muito prudente do que pode ou não ser dito; mas também já cometi alguns erros de avaliação. No essencial, essa é apenas uma questão de bom-senso, que depende mais do "informador" do que do próprio jornalista.

Devo confessar que, para além da curiosidade de consumidor da "coisa política", que me fez mergulhar no livro, bastante pelo ineditismo do procedimento dos seus autores, não deixo de ficar preocupado por esta quebra de códigos comportamentais revelar - vamos chamar as coisas pelos seus nomes - um triste abandalhamento das regras de convivência no cenário público.   

Três notas líbias

1. Ontem, ao final da noite, quando a aviação da coligação já bombardeava alvos militares na Líbia, passei pela ponte Bir Hakeim, sobre o Sena, e lembrei-me que o seu nome comemora a batalha onde o exército francês combateu com sucesso, no deserto líbio, as tropas do "eixo" italo-alemão.

2. Por que será que, mesmo aceitando eu como boas e razoáveis as razões de base que justificam a ação militar em curso, não deixo de sentir um certo mal-estar com esta guerra? Será apenas por ser uma guerra? Será, egoisticamente, por ter lugar tão perto da Europa? Será pela ideia de que se sabe sempre como uma guerra começa, mas nunca se sabe como e quando ela acaba? Ou será pela certeza de que os "colateral effects", isto é, as vítimas civis, são particularmente difíceis de medir numa operação militar com as caraterística da que está em curso? Não sei.

3. Um dia, na Líbia, nos anos 70, olhei em volta e dei-me conta que tudo estava escrito em árabe. Com uma exceção: as tampas de ferro do saneamento do centro de Tripoli tinham os seus dizeres em italiano, a língua da colonização, desde 1912 até à independência, em 1951.

Warren Christopher (1925-2011)

Há cerca de 10 anos, por ocasião da saída do seu livro "Chances of a Lifetime", ouvi uma palestra proferida em Nova Iorque por Warren Christopher, que agora desapareceu. Recordo bem a sua imagem, com os longos colarinhos subidos e uma voz rouca muito típica, nessa tarde em que apresentou, no Council on Foreign Relations, a sua leitura da situação internacional, naqueles que eram os primeiros meses da administração George W. Bush, que ele já criticava com muita lucidez.

Não sendo considerado um génio na condução da política externa americana, no período em que serviu como chefe da diplomacia no primeiro mandato de Bill Clinton, Christopher era tido por aquilo a que anglo-saxónicos chamam "a safe pair of hands", de que já tinha dado mostras aquando da condução das negociações para a libertação dos reféns americanos no Irão, no consulado Carter. 

Em 2000, chefiou a equipa de advogados de Al Gore na disputa pelos decisivos votos da Flórida, no que viria a ser derrotado por outro "peso pesado" da política externa americana, James Baker, que defendia as cores republicanas de Bush. Dois anos depois, tive o privilégio de ouvir, da boca do meu amigo Stephan Minikes, embaixador americano junto da OSCE e antigo membro da equipa de advogados chefiada por Baker, algumas histórias curiosas dessa batalha, que todos seguimos pela televisão e que seria ganha por Bush e perdida por Gore - e, na minha opinião pessoal, pelo mundo.

sábado, março 19, 2011

BHL

Ainda a Líbia. O filósofo Bernard-Henri Lévy é uma conhecida figura do panorama intelectual francês, onde a sua postura e tomadas de posição não deixam, às vezes, de suscitar alguma polémica.

Na crise recente da Líbia, BHL (com DSK - Dominique Strauss-Kahn -, Lévy está entre as escassas personalidades francesas que podem ser identificadas apenas pela sigla do seu nome) acabou por ter um papel marcante, ao ter sido a pessoa que convenceu o presidente Nicolas Sarkozy a receber e aceitar a legitimidade do "Conselho Nacional de Transição", representativo da oposição ao coronel Mouammar Kadhafi .

Porque este golpe de "diplomacia paralela" tem algumas curiosidades a notar, sugiro que leiam isto.

Brecht

Às vezes, faz muito bem ler os génios. 

Hoje, o "Tim Tim no Tibet" traz-nos um magnífico poema de Bertolt Brecht. Leiam este extrato:

Cheguei às cidades num tempo de desordem
Quando a fome imperava.
Cheguei entre os homens num tempo de levante
E com eles revoltei-me.
E assim passou-se o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

... para terem vontade de ler o poema todo.

E, em matéria de poesia, também temos esta boa notícia para Portugal. Alegrem-se! Felizmente há luar!

"Um taxi para Tobruk"

Hoje, ao ver na televisão a coluna de viaturas que procuram sair do cerco de Benghazi para a cidade de Tobruk, a importante cidade líbia próxima da fronteira com o Egito, não pude deixar de lembrar-me de um filme de guerra que vi na minha adolescência: "Um taxi para Tobruk". Charles Aznavour e Lino Ventura eram atores desse filme.

Ainda haverá táxis para Tobruk, em Benghazi?

sexta-feira, março 18, 2011

Futurista

As opções para um programa lúdico eram algo escassas, naquela pequena capital europeia. O embaixador português e o seu secretário bem se tinham esforçado por encher a agenda do jovem secretário de Estado, oriundo de um ministério técnico, na tarde que lhe restava na cidade. 

À proposta de visita a uma livraria inglesa, o político comentou que tinha estado em Londres, há poucas semanas, embora, através de outros comentários, não desse mostras de ser pessoa altamente interessada pela leitura. O passeio pelos arredores, a visita ao porto e ao famoso parque da cidade não o entusiasmaram, da mesma maneira que estava a manifestar um visível enfado pela explicações arquitetónicas que o embaixador fazia, à passagem por certas artérias.

A certo ponto, o embaixador teve uma ideia:

- O senhor secretário de Estado não estará interessado em visitar o museu nacional? Tem peças lindíssimas...

O jovem político olhou para o diplomata, com um sorriso indefinível mas "blasé", e comentou:

- Sabe, senhor embaixador, a mim o passado diz-me pouco e os museus só nos mostram o passado.

Aí, o secretário de embaixada não resistiu e lançou, "fininho":

- É verdade que os museus "têm a mania" do passado. Não há muito a fazer...

O nóvel governante fez uns instantes de silêncio, mas não "se ficou":

- Não é bem assim, sempre há os futuristas...

De facto. O secretário ainda pensou falar-lhe em Marinetti, mas recuou, temendo, seriamente, que ele pensasse que era um médio ala da Juventus.

China (e o Mónaco)

Num almoço ontem, no Institut Français des Rélations Internationales, alguém perguntava ao embaixador da China, com uma legítima preocupação, como é que ele avaliava o impacto negativo sobre o mercado internacional de produtos alimentares de fenómenos como as inundações na Austrália, os fogos do ano passado na Rússia ou as secas que assolam muitas zonas de produção no mundo.

A resposta do meu colega chinês foi esclarecedora: dado que a China tem cerca de 1,3 biliões de habitantes, a preocupação central dos seus governos, nos últimos 60 anos, tem sido garantir a segurança e a autonomia alimentar dessa mesma população. Porque a China sabe bem que, em caso de crise alimentar mundial, "ninguém tem capacidade de a ajudar", o país tem, essencialmente, que se preocupar com as suas própria crises.

Uma resposta como esta ajuda-nos a medir, com mais acuidade, a escala quantitativa de um Estado como a China, fundamental para se entenderem algumas das suas opções, seja em matéria de políticas públicas, seja no campo internacional. 

Numa nota mais ligeira, o meu colega chinês deu conta, aos presentes nessa refeição, de uma frase magnífica do príncipe Alberto II do Mónaco, por ocasião de um recente encontro entre autoridades chinesas e monegascas: "a importância da relação sino-monegasca é testemunhada por esta importante realidade: quase um em cada quatro cidadãos do planeta pertencem à soma conjugada das populações do Mónaco e da China"...

Conselho de Segurança

Ontem, no Conselho de Segurança da ONU, a propósito da resolução sobre uma zona de exclusão aérea na Líbia, a França e o Reino Unido (e Portugal) votaram a favor, tendo a Alemanha seguido uma linha diferente, abstendo-se.

Não está em causa a substância da resolução, mas ver países centrais do projeto europeu seguirem linhas diferenciadas sobre um tema de política externa e segurança tão próximo dos interesses do continente, bem como do cerne das suas políticas de vizinhança, leva a perguntar se ainda haverá razões para manter uma ilusão sobre a univocidade futura da vontade europeia no quadro internacional.

quinta-feira, março 17, 2011

Badinter

Fui apresentado a Robert Badinter, há quase dois anos, aqui em Paris. Disse-lhe então do prazer que tinha em conhecê-lo pessoalmente, pelo profundo respeito que a sua figura de retidão ética me inspirava, desde há muito. E, devo confessar, não há muitas pessoas a quem eu me sentisse tentado a dizer o mesmo.

Robert Badinter foi, durante quatro anos, ministro da Justiça de François Mitterrand e proponente da medida legislativa que, em outubro de 1981, proibiu a pena de morte em França. Tinha na minha memória a campanha de vilificação de que então foi alvo, com acusações miseráveis, que o qualificaram como "o advogado dos assassinos".

Num tempo em que, um pouco por todo o lado, a política imediatista tende a esconder os princípios por detrás do populismo, vale a pena relembrar que Badinter soube conduzir a França para a linha da frente da defesa das liberdades - abolição dos tribunais militares, supressão do delito da homosexualidade, sujeição ao Tribunal europeu dos direitos do Homem, etc.

Badinter acaba de publicar uma memória desse tempo de honra para a vida pública francesa, sugestivamente intitulado "Les épines et les roses". Lê-se de um trago, como retrato que é de uma bem sucedida mas complexa experiência política. Nele, Badinter não deixa de notar que a democracia está longe de ser a reprodução mecanicista do sentimento popular: quase 2/3 dos franceses eram favoráveis à manutenção da pena de morte, no momento em que ela foi abolida. Liderar, politicamente, é também ter a coragem de tomar medidas impopulares, quando se entende que o bem público as justifica.

Ainda o Benfica

A eliminatória entre o Benfica e o Paris Saint-Germain, que daqui a pouco se decide, deve estar a criar um sentimento de divisão nos muitos portugueses e luso-descendentes que, em Paris, têm o clube francês no coração. E não vale a pena estar aqui a clamar pela veia patriótica, porque as emoções estão para além de qualquer racionalidade.

Curiosamente, devo dizer que nunca senti a minha vontade pender em favor de um clube estrangeiro, numa qualquer disputa com um clube português. Mas admito perfeitamente que outros tenham uma atitude diferente. Eu faço-o, naturalmente, não por grande empatia com qualquer das restantes equipas nacionais - só tenho uma simpatia, como a maioria de nós -, mas porque sempre achei que uma vitória portuguesa faz muito pelo ego dos nossos compatriotas no estrangeiro, os quais devem ter um grande prazer em entrar no emprego, no dia seguinte, com um sorriso ganhador. Esta será, com certeza, a compensação mínima pelas agruras que a vida lhes possa trazer. Só por isso, que é muito, sempre pensei que vale a pena estar do lado de todos os clubes portugueses que atuam cá fora, embora eles não dependam do meu apoio, para ganhar ou perder.

A historieta que vou contar passou-se em 1988. O Benfica disputava a final da antiga Taça dos Campeões Europeus, em Estugarda, na Alemanha, contra os holandeses do PSV Eindhoven. De Lisboa, tinham partido muitos aviões e eu estava - já nem sei bem porquê! - entre os convidados para ver o jogo, em que se contavam imensos sportinguistas, que iam abertamente apoiar o Benfica. O nosso grupo era divertidíssimo e lembro-me que Miguel Esteves Cardoso escreveu uma crónica imperdível sobre aquela experiência.

O partida foi difícil, com as chuteiras dos jogadores do Benfica a descalçarem-se, por inexplicadas razões. Ao final do tempo regulamentar, o resultado era um nulo. Foi-se para prolongamento e tudo se manteve igual. Restavam os penáltis. E é aí que a cena se passa.

José Vera Jardim, um sportinguista dos sete costados, que estava ao meu lado, voltou-se para outro grande sportinguista, o padre Vitor Melícias, e apelou:

- Ó padre Melícias. Contamos com umas oraçõezinhas suas para os penáltis!

Vitor Melícias quebrou a nervoseira geral, naquele momento algo tenso, com a sua pronta resposta, no tom de voz tão típico que é o seu:

- Orações?! Essa agora! Eu já aguentei isto a "pai-nossos" e "avé-marias" até ao final do prolongamento. Agora, para os penáltis, só o cardeal patriarca!

O cardeal não estava lá e o Benfica perdeu.

A garrafa

Ontem à tarde, vindo com os apoiantes do Benfica, para ver o jogo de hoje com o PSG, bateu-me à porta um velho amigo:

- Será que posso levar uma garrafa de vinho que, há cerca de meio ano, uma pessoa te deixou, na embaixada, para mim?

Nesse instante, lembrei-me, claramente, que alguém me entregou uma garrafa que era destinada àquele meu amigo. Isso aconteceu, creio, no início de um concerto musical e, se bem leio a minha rotina, devo ter passado a garrafa a alguém da casa, que a terá guardado.

O "inferno" que é a minha vida, por estes dias, não me dá hipóteses de ir à procura da garrafa, pelo menos a tempo desse meu amigo a levar para Lisboa. Mas, aqui entre nós (ele não lê blogues, creio), é bem provável que já a tenha bebido, numa qualquer refeição. E o mais "trágico" é que, se assim aconteceu, nem sequer me dei conta de se tratar de um néctar dos deuses, como esse meu amigo diz que era.

Também por essa razão, e para garantir que ele fica contente, só espero que o Benfica ganhe! 

Açores

Pedro Pauleta é uma das "caras" de Portugal em França, onde tem uma imagem de prestígio e grande simpatia na opinião pública. 

Esta manhã, como "embaixador" dos Açores, Pauleta esteve na Embaixada, numa iniciativa para a qual abri as nossas portas, com vista à apresentação de uma parceria entre a SATA e a Aigle Azur, que vai permitir uma ligação mais fácil e articulada entre os voos desta última companhia com destino a Portugal e a importante rede da companhia açoreana. Quase uma centena de jornalistas e promotores turísticos juntaram-se-nos nesta operação de divulgação.

Os Açores são uma região turística portuguesa que necessita de uma mais ampla promoção, pelo produto diferente que representa, num mundo que já procura algo mais para além do "sol e praia". Ao lado de outras regiões portuguesas, o turismo dos Açores está representado na Feira de Turismo, que tem lugar aqui em Paris, em que temos um interessante stand.

Em 2010, a França foi o país emissor de turistas para Portugal que apresentou números mais favoráveis, o que não pode ser desligado do trabalho intenso e qualificado de promoção que tem vindo a ser desenvolvido em França pelas nossas autoridades do setor.

quarta-feira, março 16, 2011

Cultura portuguesa

Em Paris, a cultura portuguesa mostra-se bem, por estes dias.

Anteontem, na Fundação Calouste Gulbenkian, Vasco Graça Moura animou uma interessante apresentação de textos de Mário Cláudio e de Anna Luísa Pignatelli (cuja obra eu desconhecia por completo e cuja qualidade me surpreendeu), na presença e em debate com os autores.

Ontem, estive na abertura de uma nova exposição do pintor madeirense Mateus Camacho (na imagem superior), na Galerie Octobre (24 rue René Boulanger, metro République), em exibição até 16 de abril.

Ao final da tarde, a memória de Joaquim Vital foi objeto de uma bela sessão na Maison de l'Amérique Latine, com testemunhos de amigos e escritores. Uma larga e solidária audiência, onde encontrei Júlio Pomar, homenageou o editor e escritor, que "La Quinzène Littéraire" também lembra assim no seu último número. À emoção de alguns sucedeu-se o humor literário de outros, como Salim Jay, que deixou a sala divertidamente intrigada com o teor do romance do egípcio Mohamed Leftah, "Le dernier combat de Captain Ni'mat", uma das últimas edições de Joaquim Vital.

Hoje à tarde, vou tentar estar na abertura da exposição de fotografia de Helena Almeida (imagem inferior), na Galerie Les Filles du Calvaire (17 rue des Filles-du-Calvaire, metro Oberkampf), em exibição até 7 de maio.
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Joaquim Vital e as colónias portuguesas

Foi uma mera coincidência.  Mas, às vezes, as coincidências têm o seu significado.

Ontem, foi o dia em que se registou a passagem de meio século sobre o feroz ataque da UPA (União dos Povos de Angola), que, no norte de Angola, vitimou centenas de colonos portugueses e de cidadão angolanos, naquela que foi a primeira grande manifestação de revolta contra a presença colonial portuguesa em Angola - depois dos acontecimentos da Baixa do Cassange e do "4 de Fevereiro", em Luanda, todos ocorridos no início desse ano histórico de 1961. A partir de então, nada iria ser igual nas colónias portuguesas, desde o Estado da Índia (que seria invadido pela então União Indiana, no final do ano), até à independência completa de Timor-Leste, apenas reconhecida pela ONU em 2002, passando pelo reconhecimento português das independências de Cabo Verde, Guiné-Bissau (que a comunidade internacional já consagrara em 1973), S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, ao longo de 1975.

Ontem, também, teve lugar na Embaixada de Portugal em Paris um cerimónia durante a qual o Estado português atribuiu ao intelectual e editor Joaquim Vital a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique. Em nome do Presidente da República, que aprovou esta distinção proposta pelo governo, sob minha sugestão, a viúva e os filhos de Joaqum Vital receberam esta distinção. que lhe era dirigida, a título póstumo, numa cerimónia privada. Foi uma condecoração dada a alguém que saíu de Portugal para não participar nessa mesma guerra colonial, como gesto ostensivo de recusa da política errada de um regime ditatorial que abafava o país.

Portugal viverá com esta dualidade eterna: com a dignidade da revolta de quantos o seu regime oprimia, bem como com a dignidade dos militares portugueses que, sob a nossa bandeira, procuraram contrariar essa vontade, sob ordens do regime de então. Esta dualidade pode parecer quase esquizofrénica, mas é a sina de um país que tem muita história e que tem sabido vivê-la no caldeirão das contradições que ela encerra. 

Ontem, ainda, a viúva de Joaquim Vital, nas simpáticas palavras com que respondeu às minhas, lembrou ser quase irónico que Joaquim Vital tivesse preparado, a meu pedido, um "curriculum vitae", para instruir a proposta de condecoração, precisamente poucos dias antes da sua súbita morte, em Maio de 2010, numa visita a Lisboa.

Líbia (2)

O líder líbio, Mouammar Kadhafi, tem vindo a repetir que não pode ser demitido de nenhum cargo, dado que não exerce nenhum poder executivo. Ontem, li que se comparou à raínha Isabel II, do Reino Unido, afirmando que esta também não é responsável pelas ações do seu governo.

Deve-me ter escapado, mas não me recordo, com precisão, da última conferência de imprensa da soberana britânica.

Líbia (1)

Há duas semanas, vinha a sair de uma farmácia, na avenida da Igreja, em Lisboa, quando ouvi um curto diálogo entre dois cidadãos que caminhavam pelo passeio, um dos quais se afastava, para entrar no estabelecimento:

- Depois, vais lá ter ao café?, perguntou o outro.

- Vou, vou. Só dou aqui um saltinho à farmácia, para saber se ainda têm o Kadhafi.

Quem não soubesse o nome da loja - Farmácia Líbia - não percebia a graça.

Todos somos japoneses

terça-feira, março 15, 2011

O guerreiro

Aquele ministro dos Negócios Estrangeiros, oriundo de um pequeno país europeu, levava-se muito a sério no exercício da Presidência rotativa que, naquele semestre, cabia ao seu país. O tempo era de crise política nos Balcãs, com o presidente Milosevic sob forte pressão internacional, em face das tensões que potenciava na Jugoslávia. Por virtude das quase ridículas contribuições que o Estado que representava poderia dar, em caso de eventuais ações militares em nome coletivo, o ministro tornava-se algo caricato, ao falar como se tivesse, atrás de si, umas forças armadas fortíssimas e, em especial, como se lhe fosse possível mobilizar  os parceiros à escala da sua retórica.

Os "cornetos" sonoros dos jornalistas, em frente a um político, são afrodisíacos verbais. À porta de um hotel de uma capital europeia, com as câmaras e as luzes da ribalta a daram-lhe a importância de que precisava, o ministro fez uma declaração forte, afirmativa, tentando mostrar que estava "in charge". No termo do "statement", avisou, tonitruante e solene, de dedo espetado, para um distante Milosevic: "Quero daqui dizer ao senhor Milosevic, com toda a firmeza, que a Europa tem um limite para a sua paciência e que, se necessário, lhe dará uma resposta à altura das suas provocações". No ar, ficou um indelével cheiro a pólvora oral.

Visivelmente "aos ombros de si próprio", o político recuou as suas tropas diplomáticas para o "lobby" do hotel, sob um ressoar de comentários aprovadores de assessores, que lhe asseguravam que tinha "saído muito bem". E lá foi, deliciado, de peito feito, com um esgar de satisfação, para um merecido copo no bar, depois do "aviso" a Milosevic, que deve ter ficado a tremer, lá pelo palacete em Dedinje. Cada um tem o seu "Bei de Tunis" (ainda haverá Bei, por lá?), mas o ministro não devia conhecer o nosso Eça.

Foi por essa altura que um funcionário português, ocasionalmente presente na delegação ministerial, de forma um pouco impertinente mas escolhendo as palavras, ousou dizer àquele chefe da diplomacia (e sou testemunha privilegiada disso): "O senhor ministro vai perdoar-me, mas, ao falar como falou, com as tropas que o seu país tem, fez-me irremediavelmente lembrar uma frase, que ficou famosa, do capelão do regimento de infantaria da minha terra, no início da guerra colonial, em África, em 1961. Ao discursar ao primeiro contingente que partia para Angola, terminou desta forma lapidar: 'Rapazes! Preparêmo-nos para a guerra! Ide!...'"

Apeteceu-me lembrar hoje esta historieta, quando se assinalam os 50 anos do início da "guerra do ultramar", para uns, da "guerra em África", para outros, e da guerra colonial, para a História.

segunda-feira, março 14, 2011

O abraço de Strauss-Kahn

Há dias, falei aqui de Anne Sinclair, e do seu blogue. Trata-se da mulher do diretor-geral do Fundo Monetário Internacional e putativo candidato socialista às eleições presidenciais francesas de 2012, Dominique Strauss-Kahn.

Hoje vou contar uma pequena história, na qual ele acaba por ser uma involuntária personagem.

Em Junho de 1997, Strauss-Kahn assumiu as funções de ministro da Economia e Finanças do novo governo socialista francês. A liderança da França, que vivia os tempos da muito recente coabitação Chirac-Jospin, tentou rediscutir o então quase finalizado "pacto de estabilidade", o conjunto de regras para regular o acesso e garantir o comportamento dos países no seio da nova moeda única, o euro. A França conseguiu retocar o "pacto", que mudou de nome e passou a chamar-se "pacto de estabilidade e crescimento", vom o objetivo, simultaneamente, de lhe conferir um toque mais "social" e de garantir que a nova liderança francesa deixava a sua marca na decisão final sobre o assunto, nem que fosse por via semântica.

Mas a decisão tomou o seu tempo. O primeiro conselho de ministros das Finanças, o "Ecofin", posterior à subida ao poder dos socialistas franceses ficou, assim, rodeado de uma grande curiosidade, em torno do que nele iria dizer o novo ministro que Paris tinha na pasta, Strauss-Kahn.

Como é de regra nestas reuniões, as câmaras de televisão entram, por uns minutos, na sala, antes do início dos trabalhos, para filmarem os responsáveis políticos, conversando entre si ou já sentados nas respetivas delegações (um dia falarei aqui de alguns "truques" dessa coreografia). A certo passo da cobertura televisiva dessa reunião do Ecofin -  feita, entre outros, pela BBC, Sky e CNN -, as câmaras concentraram-se, com toda a naturalidade, no que era a grande novidade do dia, a entrada na sala de Dominique Strauss-Kahn.

O novo ministro, homem de porte pesado, surgiu, de passo firme, seguido de colaboradores, encaminhando-se para a zona onde se iria sentar a delegação francesa. A meio do percurso, porém, a sua cara espelhou um grande sorriso e viu-se a vedeta política do dia abrir os braços para um abraço de grande intimidade com uma outra figura, de compleição física bastante similar, de cara ornada por uma barba, com  quem trocou palavras de manifesta cordialidade, fruto seguro de amizade. Quem essa pessoa? Ninguém sabia o seu nome e o mistério era tanto maior quanto, à partida, estava excluída a hipótese de se tratar de um outro ministro das Finanças dos "quinze".

Ninguém sabia? Não! Nós, um grupo de portugueses que apreciávamos a cena, numa casa particular, em Bruxelas, sabíamos! Era o Henrique Antunes Ferreira, assessor de imprensa do nosso ministro das Finanças, António Sousa Franco.

Nesse e nos dias seguintes, as televisões universais, à falta de outras imagens sobre o novo homem-forte das Finanças francesas, repetiram à saciedade esse magnífico amplexo, que a todo o mundo pareceu selar o acolhimento europeu ao novo governante francês. E, nessas imagens, lá aparecia sempre o nosso Henrique, para eterna perplexidade do mundo da informação, mas para imenso gáudio dos seus amigos, uma legião heteróclita em cujo seio tenho o gosto de me contar.

O Henrique Antunes Ferreira foi jornalista e é escritor, está reformado das lides políticas mas bem ativo na vida da blogosfera, onde alimenta a irreverente A minha Travessa do Ferreira. Um dia, ele esclareceu-me das razões da sua intimidade com Strauss-Kahn, mas, confesso, já as esqueci. Será que aqui ou na sua Travessa ele poderia recordá-no-las? É que se o percurso de Strauss-Kahn for aquilo que algumas sondagens persistentemente prevêem, o embaixador de Portugal ainda pode, lá para o ano, ter de dar boleia ao Henrique para o Faubourg Saint-Honoré...

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...