segunda-feira, dezembro 06, 2021

Os Bragas


Na passada semana, fui dormir a um simpático hotel na Rua do Rosário, no Porto. A rua está irreconhecível, face àquilo que já foi. Para bem melhor. Há novas casas comerciais, prédios renovados que agora se revelam lindíssimos e, não fora a pandemia, nos quarteirões em volta teria crescido ainda mais a maré de restaurantes e galerias de arte que dão dinâmica e trazem juventude a tudo aquilo. 

No final dos anos 60, quando, por algum tempo, “fingi” estudar Engenharia, no Porto, comia com frequência numa tasca, nessa mesma rua do Rosário, a “Casa Domingos”, a que toda a gente chamava “o Domingos Braga”. 

Era barulhenta, tinha meia dúzia de pratos, travessas de alumínio e um tinto da Meda, servido numas canecas metálicas (“sai um quarto da Meda!”), de que não guardo grande memória, mesmo que, à época, não percebesse peva de vinhos. O mais caro da casa era um bife que custava 15 escudos - um luxo a que raramente me podia permitir, com o possível orçamento que me era enviado de Vila Real.

Quase em frente da tasca do Domingos Braga, havia uma outra, onde não me recordo de ter alguma vez entrado (nunca percebi porquê), conhecida pelo “Zé dos Bragas”. No letreiro, estava escrito “Zé de Braga”, mas pluralizávamos sempre o nome (também sem nunca perceber porquê).

Ao que se se dizia, o Domingos e o dono do Zé “dos Bragas”, eram primos, mas “não se podiam ver”, embora se olhassem do outro lado da rua. Ainda me recordo bem da figura de ambos. Para nós, eram simplesmente os “Bragas”. 

(Não muito longe dali, curiosamente, passada que seja a Torrinha, onde eu vivi, fica a Rua dos Bragas, onde então se situava a faculdade de Engenharia. Dizia-se desses alunos: “Anda nos Bragas”).

Leio agora que o “Zé de Braga”, há muito “upgraded” como restaurante, esteve fechado uns bons anos e que acaba de reabrir com algumas pretensões gastronómicas. Numa história que a sempre excelente revista “Evasões” (onde, por alguns anos, também escrevi sobre restaurantes) nos conta agora, afirma-se que a casa já tem afinal uma centena de anos e que teria como origem do nome um Zé, sapateiro oriundo de Braga, que também vendia vinhos. Dali viria a surgir uma tasca. Por isso, o proprietário, o tal primo do Domingos, um homem grande e abrutalhado, às tantas, nem sequer Zé se chamava…

Nada se diz no texto sobre o (meu) Domingos Braga. Esse tinha um ar típico e clássico de tasqueiro, baixo e encurvado das costas, sempre atrás de um balcão à esquerda de quem entrava na tasca. 

Esta casa ainda existe, agora com o nome de “Churrasqueira Domingos”. Um destes dias, vou almoçar por lá. Sem que nada tenha de especial contra o “Zé”, preferirei o Domingos, claro. Os velhos e fiéis clientes são assim mesmo, não é?



domingo, dezembro 05, 2021

Conhece o bispo de Norwich?


Foi num jantar em que estive no Douro, na sexta-feira passada. No final daquela que tinha sido uma magnífica refeição, apareceu uma imprescindível garrafa de vinho do Porto (era também excelente, da Quinta do Ventozelo, mas, cá por coisas, não digo de que ano era). 

O Porto circulou à volta da mesa, no sentido dos ponteiros do relógio, como manda a inabalável primeira regra. 

Quando a garrafa surgia pousada sobre a mesa, à direita de um dos convivas, este servia-se e voltava a colocá-la na mesa, mas desta vez à sua esquerda, para que a pessoa desse seu lado se pudesse servir. E assim sucessivamente. Essa era a natural segunda regra. 

A terceira regra é que, em nenhuma circunstância, a garrafa (mas podia ser um” decanter”) podia ser passada diretamente para a mão do parceiro de mesa: era apenas colocada sobre a mesa, onde o vizinho da esquerda a recolhia. À mesa, nunca se passa, de mão em mão, uma garrafa ou um “decanter” de Porto! 

É legítima, então, a pergunta: o que é que acontece se um conviva, ao ter o Porto colocado do seu lado direito, não se serve ou se esquece de o passar para o seu lado esquerdo, assim impedindo o vizinho desse lado de se servir? 

Nessa ocasião, manda uma quarta regra, esse vizinho nunca diz a frase: “Podia passar-me o Porto?” Nunca! Nessa ocorrência, esse conviva limita-se a inquirir, junto do seu parceiro sentado à direita: “Conhece o bispo de Norwich?”.

Se a resposta for negativa, como geralmente acontece, a pessoa que deseja ter acesso ao Porto limita-se a dizer: “Era um homem excelente. No entanto, ele também nunca passava a garrafa de Porto…” 

Chegada à necessidade de ter de recorrer a esta frase clássica, conhecida dos grandes apreciadores de vinho do Porto, quase pela certa que garrafa regressa ao seu circuito...

Mas, perguntará o leitor, que diabo é esta questão do bispo? Eu explico, transcrevendo um texto, retirado do site da Taylor’s, que, melhor do que eu relata isto bem.

“A origem da expressão "Conhece o Bispo de Norwich?” é atribuída a Henry Bathurst, que foi bispo de Norwich entre 1805 e 1837. O bispo Bathurst viveu até aos 93 anos de idade, altura em que a sua visão se deteriorou e em que tinha desenvolvido uma tendência para adormecer à mesa no final da refeição. Como resultado, muitas vezes ele não conseguia passar as várias garrafas de vinho do Porto que se acumulavam no seu cotovelo direito, para consternação dos que estavam sentados à volta da mesa. Este bispo era um bon vivant conhecido por possuir uma capacidade prodigiosa no consumo de vinho mas, às vezes, era também suspeito de usar essas fragilidades a seu favor.

Algumas personalidades afirmam que a expressão "Conhece o Bispo de Norwich?" teve a sua origem com John Sheepshanks, que foi bispo de Norwich entre 1893 e 1910, e que apesar do Bishop Bathurst ser a fonte mais plausível da tradição parece que o bispo Sheepshanks fez o seu melhor para a perpetuar. Um retrato do bispo Sheepshanks, gentilmente doado pela sua neta, está pendurado numa parede da Quinta de Vargellas da Taylor’s como um incentivo para os hóspedes passarem o vinho do Porto.”

Há uns anos, um grupo de portuenses dedicados ao vinho do Porto decidiu entrar em contacto com o atual bispo de Norwich, convidando-o a vir ao Porto. O homem, conhecedor da muito antiga tradição ligada ao seu nome, ficou encantado, aceitou o convite e lá participou numas jantaradas bem regadas. Ah! E trouxe a mulher, porque os bispos anglicanos sabem apreciar as coisas boas da vida. Como o vinho do Porto, por exemplo…

Sampaio


Há uns anos, José Pedro Castanheira escreveu uma pormenorizada biografia de Jorge Sampaio. O próprio contribuiu para esse trabalho, ciente da importância de ajudar a deixar desenhado, “for the record”, como o rigor que lhe era próprio, o seu percurso cívico, desde os tempos da ditadura até àquele em que os portugueses, por uma década, lhe confiaram a chefia do Estado. 

Nunca há apenas uma versão da História. Há leituras diferentes dos factos, dependentes dos ângulos em que cada um se situa perante eles, o mais das vezes à luz dos seus interesses, convicções e circunstâncias. Por essa razão, no relato das coisas, na escolha do que se diz e do como se diz, nas avaliações que se escolhe fazer, subsistirá sempre uma inevitável subjetividade. 

Ninguém escapa a esse relativo arbítrio de perspetivas - desde os atores principais até às figuras secundárias dessa grande peça que é a vida coletiva. A questão essencial é saber se, em todo esse esforço de “dizer” a História, prevalece ou não uma atitude e um esforço de seriedade. Jorge Sampaio passou sempre, com um grau muito raro de elevada distinção, nesse teste de aproximação a uma verdade a qual, repito, por definição, nunca tem apenas um único dono.

Quem tem curiosidade pela História sabe da importância que para ela têm os testemunhos. Um grupo de amigos de Jorge Sampaio, muito pouco tempo depois do seu desaparecimento físico, decidiu pedir a pessoas que privaram com ele relatos de factos e vivências que ajudassem a melhor completar o seu retrato. 

“Era uma vez Jorge Sampaio”, agora editado pela “Tinta da China”, é um conjunto de cerca de 130 curtos textos, assinados por pessoas que, para essas 400 páginas, ilustradas por muitas fotografias, carreiam modos diferentes de nos ajudar a melhor recortar a figura de Sampaio. 

Em todos esses testemunhos há uma inescapável dimensão afetiva. Quem escreveu os textos quis prestar tributo a alguém por quem tinha admiração, olhando-o do lugar pessoal onde estava. O conjunto, se bem que desigual, acaba assim por ser muito interessante, a ajuizar da leitura de mais de metade do livro que já empreendi, em algumas horas. 

Nos últimos anos, recordo-me de ter comentado, por mais de uma vez, com amigos, que, tal como eu, eram admiradores da figura de Jorge Sampaio, que o reconhecimento que parecia ser-lhe dado pelos seus compatriotas, ficava, aparentemente, aquém daquilo que realmente lhe seria devido. Subsistia como que uma “injustiça” na avaliação do empenhamento e do muito elevado sentido de Estado de alguém que, podendo ter cometido erros ou omissões, teve um percurso de exigência consigo mesmo, num tempo muito complexo de decisões, que pedia meças a quem quer que fosse, na vida política nacional.

Curiosamente, no momento da sua morte, o país “retificou”, com espontânea sinceridade, essa suposta e pelos vistos apenas ilusória indiferença. O modo sincero como os portugueses mostraram sentir o desaparecimento de Jorge Sampaio trouxe um sopro de esperança de que, no meio desta espécie de anomia cívica que parece marcar o nosso quotidiano, ainda haja espaço para mostrar respeito por algumas escassas referências morais. E Jorge Sampaio é, sem a menor sombra de dúvidas, uma das mais importantes. Este livro, que recomendo, é também um tributo a essa esperança.

sábado, dezembro 04, 2021

Que sorte?!


Há momentos em que nos sentimos fortemente injustiçados. Há pouco, ao dizer a um amigo, que me telefonou, que ia a conduzir o meu carro, por estradas estreitas e sinuosas, numa viagem para uma jornada de reflexão, de dois dias, numa zona remota, ouvi, do outro lado da linha, o comentário: “Tu tens cá uma sorte!”. Que sorte? Atravessa um cidadão o país, voluntariando-se para uma atividade pro bono, dando o melhor (e o pior, também é verdade) de si para ajudar a pensar as coisas e o mundo e é logo acusado de ter “sorte”? Olhem só o caráter agreste e rústico da paisagem com que tenho que me confrontar nestas difíceis horas para, com equanimidade (gosto destes vocábulos de fim de semana), poderem ajuizar sobre se tenho ou não razão. É claro que tenho! Fico antecipadamente grato pela vossa solidariedade!

sexta-feira, dezembro 03, 2021

Nas cheias…



… a água chegava aqui É quase em frente do Zé da Calçada, que tem um belo tornedó do lombo, que ontem acompanhei com um “Meio Queijo”, um bom tinto comum da Churchill (com a “receita” habitual das duas Tourigas pátrias e da Tinta Roriz) que descobri há tempos, situado na parte mais económica da bela lista de vinhos da casa. Infelizmente, nesta altura do ano, não se pode pousar na incomparável varanda, sem o risco de apanhar uma gripe das antigas. É que estavam 3 graus! Vá lá, positivos! (Pôr a lareira do restaurante a funcionar era capaz de não ser uma má ideia). É mesmo ao lado da Lailai, a confeitaria onde se vendem as sete maravilhas locais, que aliás são cinco: as lérias, os papos d'anjo, os foguetes, as brisas do Tâmega e os São Gonçalos. E, por falar no santo, a reforma da igreja do dito, dizem-me, está quase pronta. Já não era sem tempo! A decoração natalícia da ponte antiga ficou só assim-assim. À entrada na 31 de Janeiro, vindo do largo António Cândido, pareceu-me ver o Amadeo à conversa com o Pascoaes. Mas foi ilusão de ótica de um “Pobre Tolo”. Ah! E ainda não foi desta que fui à nova Casa das Lérias (e recordar a outra bela varanda). Com este chiasco, percebo melhor por que é que a bela russa da ilha de Sacalina que, uma noite, há uns anos, me atestou o depósito e a memória, na bomba de gasolina à saída para Padronelo (onde há um pão que só se compara com as regueifas de Paredes), gostava tanto de viver ali. Quem não gosta? Só não percebo é por que é que tudo aquilo ainda não é Património Mundial!

quinta-feira, dezembro 02, 2021

“A Arte da Guerra”


As expetativas em torno do novo governo alemão, atenta a divisão de pastas entre os três parceiros de coligação “semáforo”, são o primeiro tema de “A Arte da Guerra”, o podcast semanal do “Jornal Económico”, numa conversa minha com o jornalista António Freitas de Sousa.

Nesta edição, também falamos das tensões no Magrebe, potenciadas pelo conflito diplomático entre Marrocos e a Argélia, bem como do momento menos bom do relacionamento entre o Reino Unido e a França, espoletado pela crise migratória mas muito decorrente ainda dos efeitos do Brexit.

Pode ver aqui.

quarta-feira, dezembro 01, 2021

Zemmour, a CNN Portugal e eu


Há sete anos, nas redes sociais em Portugal, bem como na imprensa em geral, creio que muito pouca gente - se alguma - falava de Éric Zemmour.

Em outubro de 2014, escrevi neste meu blogue um post sobre Zemmour, onde assinalava o meu fascínio analítico por essa figura hiper-reacionária - disse então que ele era visto em França como um “facho”, com o “o” fechado à francesa - que animava, de forma altamente polémica, o mundo mediático daquele país. 

Nesse post, escrevi, nomeadamente, isto:

“ Gosto de "malditos", confesso. Quando vivia por França, não perdia um "On n'est pas couché" onde Eric Zemmour, com um género físico de "fraca figura" comparável a Aznavour, seduzia pela sua inteligência "facho", politicamente muito incorreta, com uma vivacidade e uma cultura excecionais. Depois do seu forçado e estúpido afastamento do programa da France 2, segui-o para o Zemmour/Naulleau e lia as suas crónicas no Figaro Dimanche. E vou tentando acompanhar os livros que publica.

Zemmour é um jornalista e escritor desencantado com o manifesto declínio do seu país. Com pena fácil e verbo ácido, esconde por detrás do sorriso (é especialmente perigoso quando começa a mover a cabeça com ar de assentimento) uma atitude de aguda agressividade face àquilo que entende que está a descaraterizar a França contemporânea - as culturas estrangeiras, as políticas migratórias, as atitudes de permissividade multicultural que entende por perversas por parte da esquerda, mas também de alguma direita. Tem coragem para ser impopular, o que é sempre raro. Na polarização política francesa, é visto como um mero "compagnon de route" de Marine Le Pen. O que é muito injusto para ele e, a contrario, elogioso para a líder da extrema direita. Dele saiu agora o livro "Le suicide français". Não tenciono perder.”

Vim a ler esse seu livro, como já tinha lido os anteriores, bem como o que acaba de ser publicado. 

Zemmour anunciou ontem ser candidato à eleições presidenciais francesas, procurando deslocar para si o voto em Marine Le Pen, tida como inevitavelmente derrotada por antecipação, numa eventual segunda volta contra Emmanuel Macron, bem como o apoio de uma direita clássica que está a ter uma forte dificuldade em definir um nome consensual, com hipóteses (que sempre acharia muito remotas) de poder vir a evitar a reeleição deste.

A oficialização da candidatura de Éric Zemmour foi o tema da minha curta “estreia” ontem, por Skype, como comentador regular, no mais novo canal televisivo português.

terça-feira, novembro 30, 2021

Hélder Macedo


Hélder Macedo faz hoje 86 anos. Já nos não vemos há algum tempo. A nossa última longa e divertida conversa, ocorreu há três anos, durante uma viagem entre Lisboa e Vila Real, quando ele ali foi receber o Prémio Dom Dinis, da Fundação da Casa de Mateus. Ali iria ter também a agradável surpresa de ser condecorado pelo presidente da República.

Num desses dias, andámos pelo Douro a ver paisagens, a apreciar vinhos e a testar mesas. A Susete não pôde, infelizmente, estar connosco. Depois, o inferno triste que tem sido esta pandemia tem-nos impedido de nos vermos em Londres. Temos falado ao telefone, trocámos mensagens e emails, mas todos sabemos que não é a mesma coisa.

Neste dia de aniversário daquela que tenho a convicção de ser a mais relevante figura viva da cultura portuguesa, com uma longa e multifacetada obra, deixo aqui um abraço de grande amizade, mas também de muito sincera admiração, pessoal e intelectual, a alguém que muito prezo e de cujo trabalho - como docente, conferencista, crítico, criador literário e figura cívica - o nosso país tem obrigação de ter um grande orgulho.

Parabéns, caro Hélder!

segunda-feira, novembro 29, 2021

Tempos de Guterres

 

O livro “O Mundo não tem de ser assim”, a biografia de António Guterres escrita por Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, editada pela Casa das Letras, serviu de pretexto a uma agradável conversa, ao final da tarde do passado sábado, na Livraria Ler, em Campo de Ourique.

Vale a pena revelar que, há já uns anos, numa data que não posso precisar, o meu colega embaixador João Lima Pimentel e eu próprio tivémos um longo jantar com aqueles que viriam a ser os autores do livro e que, à época, esboçavam ainda essa obra. O Filipe Domingues, que eu já conhecia, tinha-me contactado e eu apresentei-os nessa noite ao João Lima Pimentel. O repasto e a sua sequência acabou, recordo-me, quase às quatro da manhã…

Lima Pimentel é um amigo antigo de António Guterres e foi o seu primeiro assessor diplomático. Eu apenas conheci Guterres pessoalmente em 1994, tendo trabalhado com ele durante mais de cinco anos, a partir do ano seguinte. 

Naquela anterior conversa, ambos havíamos dito aos putativos biógrafos o que cada um de nós entendia poder ser dito, para os ajudar a gizar o “retrato” do atual e já então Secretário-Geral da ONU. João Lima Pimentel voltou, depois disso, a falar com os autores, devidamente autorizado por Guterres. Eu, que aliás não tinha muito mais a dizer, remeti-os, sobre o assunto, para algumas coisas que, ao longo dos anos, escrevi no meu blogue sobre o tempo de governo e outras ocasiões.

O livro, que já aqui recomendei, é um excelente repositório de dados e episódios que nos permitem conhecer melhor António Guterres, até ao dia em que ele chegou ao mais alto posto na ONU. No sábado passado, os autores quiseram ir ainda um pouco mais longe na conversa, desta vez com testemunhas, em torno de alguns episódios da vida de Guterres. 

Falou-se então um pouco de tudo, desde o seu trabalho para desalojar o “cavaquismo” até aos tempos de governo, muito em especial o seu percurso europeu. Mas também do seu catolicismo, da entrada para o PS, das suas relações com outras linhas políticas do Portugal democrático saído de Abril. Eu relatei um episódio de que fui testemunha presencial na Sedes, em inícios de 1973, envolvendo Francisco Sá Carneiro, António Guterres e… Marcelo Rebelo de Sousa.

E também se falou da ONU, das dificuldades e limites imperativos de atuação de um Secretário-Geral. E falou-se do “caso austríaco” como a primeira grande confrontação com a extrema-direita europeia, da resistência de Guterres aos convites para aceitar ser presidente da Comissão Europeia e de várias outras histórias mais. 

Tenho a imodéstia de pensar que as pessoas que tiveram a amabilidade de assistir ao “interrogatório” que Pedro Latoeiro e Filipe Domingues nos fizeram não deram o seu tempo por mal empregado.

Contudo, histórias há, desses tempos, que não podem ser contadas, algumas das quais talvez ajudassem a explicar coisas da nossa vida política que ficaram pouco claras. Mas há limites para a transparência: quem, como o João Lima Pimentel e eu próprio, assistiu a certos episódios apenas porque a nossa presença e intervenção, como colaboradores próximos, pressupunha total confiança na nossa discrição, passa a ter um dever permanente de lealdade perante quem nos concedeu esse privilégio. Nenhum de nós ultrapassará nunca essa barreira. 

(Ilustro este texto com uma fotografia no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, em janeiro de 2000)

domingo, novembro 28, 2021

Paranóia


Há a Covid e a paranóia da Covid.

(Há minutos, no meu quarto de um hotel)

sábado, novembro 27, 2021

Viva o SNS!


Foi há mais de duas décadas. Senti-me bastante mal, uma noite, durante uma peça, num teatro de Lisboa. Saímos a meio do espetáculo, para a urgência do Hospital de S. Francisco Xavier. Esperei na fila (eu que abomino filas!), alguns minutos. Não demorou muito a triagem. Fora o irritante “senhor Francisco”, com o qual nunca me reconciliarei, tudo se foi passando burocraticamente bem. Como a avaliação feita me não dava como doente prioritário, esperei mais de uma hora. 

A certa altura, mandaram-me entrar para uma sala, onde havia vários doentes. Por alguns minutos, fui espetador involuntário de alguém a morrer quase ao meu lado, rodeado de médicos e enfermeiros. Vi que faziam o impossível para o salvar, mas o impossível, às vezes, não é mesmo possível. A cena, confesso, não ajudou muito ao meu estado de espírito e à taquicardia que trazia. 

Chegou, finalmente, a minha vez. O “senhor Francisco” foi então atendido com frieza profissional, com o rigor necessário, embora sem uma simpatia por aí além. O veredito, após alguns exames mandados fazer, o que levou quase uma hora mais, e a administração de uma terapêutica imediata, foi simples: “O ”senhor Francisco” sofre apenas uma dose imensa de stress. Vai ter de descansar, em repouso absoluto, um mínimo de 48 horas, nunca menos, com esta medicação forte, que o vai pôr a dormir bastante”. 

Respondi: “Não vai ser possível. Tenho de partir amanhã, à hora do almoço, num voo para o estrangeiro. Preciso assim de conselhos e de uma medicação que se adequem a isso”. O médico ficou irritado: “Mas o que é que o “senhor Francisco” faz assim de tão importante na vida que não lhe permita descansar, como lhe estou a recomendar?” A minha resposta desconcertou-o: “Não sei se a minha tarefa é importante ou não. Sou secretário de Estado dos Assuntos Europeus, está a decorrer a nossa presidência da União Europeia e tenho uma tarde de debate no Parlamento Europeu, depois de amanhã. Ninguém pode fazer isso por mim! Só isso!”. 

O homem ficou siderado: “Ah! Mas é do governo? Ninguém nos avisou. E o senhor não disse nada!”. “Claro que não disse! Para que é que ia dizer? Fui tratado com eficiência e profissionalismo, por si e por toda a gente, desde a minha chegada ao hospital. Por que diabo tinha de dizer o que faço na vida?”, retorqui-lhe. Sorriu então, pela primeira vez, talvez estranhando o que para mim era muito óbvio. E as recomendações lá se adaptaram ao então apressado estilo de vida do ”senhor Francisco” (tenho ideia de que passei a ser tratado “senhor doutor”…) Imagino que esses conselhos devam ter sido os mais corretos: vinte e um anos depois ainda estou aqui a contar esta história de eficiência básica do SNS de então.

Teve muita sorte, dirão muitos. As coisas raramente se passam assim. Talvez. Eu falo por mim e por essa ocasião. Sem “cunhas”, sem furar filas (que odeio, repito!), sem revelar as funções oficiais que ocupava. Como sempre - repito, sempre - fiz em todo o lado, em toda a minha vida. Não sou da laia dos ”sabe com quem é que está a falar?” Mas quem achar que tem dados provar o contrário, faça favor: as linhas seguintes são suas.

Tenham um bom sábado…


… e, se tiverem interesse, apareçam às 17 horas, na Livraria Ler, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, onde vou discutir, com João Lima Pimentel e os autores de “O Mundo não tem de ser assim”, Guterres e o “guterrismo”.

Sem telemóvel

Esqueci-me do telemóvel em casa de um amigo. Neste sábado, vou ter imensas coisas para fazer, durante todo o dia, pelo que só vou poder recuperar o aparelho à noite. Viver sem telefone um dia completo fazia parte, há muito, do meu sonho de uma felicidade simples.

sexta-feira, novembro 26, 2021

Marta Temido


Já aqui o disse e volto a repetir, para que não reste a menor dúvida: criei e mantenho o maior respeito e admiração pelo magnífico trabalho de Marta Temido, pessoa a quem Portugal ficará para sempre a dever uma extraordinária dedicação e empenhamento, neste difícil e excecional tempo de pandemia.

Enfrentando, vai para dois anos, uma mutante exceção sanitária que, em todo o mundo, instalou uma imensidão de sucessivas interrogações, obrigando a respostas que iam sendo testadas à medida que novas realidades surgiam, Marta Temido demonstrou coragem, determinação e um forte sentido de defesa do SNS.

O lugar de ministro da Saúde, nos últimos dois anos, foi dos mais complexos do governo. Como cidadão, congratulo-me pelo facto do país ter tido o privilégio de ter nele podido contar com uma figura com o recorte técnico, político e humano de Marta Temido, neste tempo de emergência nacional.

(Uma nota e um “disclaimer”: este post não é sobre os inegáveis méritos de Graça Freitas e Gouveia e Melo; não conheço nem sou amigo de Marta Temido)

quinta-feira, novembro 25, 2021

Receita

Ouço um representante dos bares e discotecas reclamar contra as medidas agora previstas para o setor, alegando que os seus clientes são jovens e que há muitos que não estão vacinados. 

Ora têm um bom remédio, não é? Que se vacinem!

O meu herói do 25 de novembro



quarta-feira, novembro 24, 2021

As democracias de que a América gosta



Joe Biden tinha anunciado, ainda antes da sua eleição, a intenção de organizar uma Cimeira das Democracias, logo no primeiro ano do seu mandato. 

Assim, nos próximos dias 9 e 10 de dezembro, um grande exercício telemático terá lugar, a convite do presidente americano, envolvendo 77 países.

Dois deles não são membros da ONU: o Kosovo, com independência declarada mas não aceite por muitos, e Taiwan, uma democracia sem o estatuto de membro da ONU, reconhecido por alguns mas que os EUA há muito haviam decidido considerar, formalmente, como sendo um território da “única” China.

As Nações Unidas têm hoje 193 Estados membros. Descontadas as entidades atrás referidas (bem como micro-Estados europeus, pelos visto “invisíveis” para Washington, como Andorra, Lichtenstein, Mónaco e São Marino, ao contrário de muitos outros do Pacífico e Caraíbas), ficou a saber-se que Washington entende que há 118 países que não cumprem os “mínimos” para serem considerados democráticos.

Tem ainda alguma graça constatar que, nessa matriz de escolha, estão as Filipinas de Rodrigo Duterte ou o Brasil de Jair Bolsonaro. 

Atenta a lógica dessas e de outras presenças, é legítimo estranhar algumas ausências, como Marrocos, Bósnia-Herzegovina e Jordânia. Outras, embora esperadas, como a Turquia e a Hungria, não deixam de ser de assinalar, pela relevância política que têm. 

Nenhum país no norte de África figura na lista dos convidados, bem como qualquer monarquia do Golfo. E Moçambique, tal como a Guiné-Bissau e a Guiné Equatorial, são Estados membros da CPLP não escolhidos para representar o mundo democrático.

Há quem pense que Joe Biden só por demagógica precipitação terá entrado neste exercício seletivo, que muitos consideraram, desde há muito, como condenado a ser polémico e com escasso sentido prático. 

Há uma pergunta que, eu sei!, é uma impossibilidade absurda, mas que merecia ser feita: se os Estados Unidos ainda estivessem no tempo de Trump, com um sistema eleitoral “in shambles”, com as estruturas parlamentares sob ataque de uns maluquinhos estimulados pelo próprio chefe do Estado, a América seria convidada para a cimeira?

terça-feira, novembro 23, 2021

Escuro


Vivi bastantes anos em países com esta "cor", em muitos dos seus dias. Lembro-me que o súbito surgimento de raio de luz matinal no horizonte, rompendo um panorama sombrio de semanas, trazia sorrisos e um imediato bem-estar nos adoradores locais do sol. E que, com a passagem do tempo, também nós nos convertíamos ao prazer dessa luz forte. 

Hoje de manhãzinha, com o dia ainda a abrir, à saída para uma reunião de trabalho, nevava um pouco (mas não suficiente para "pegar", como, na minha infância, dizíamos, com pena, lá por Vila Real). 

Perante o meu ar deliciado, com a neve e o frio não excessivo e sem vento, fui "fuzilado" com a ironia de um amigo polaco: "Gosta? Ainda bem! Foi "a pedido". É que, até à vossa chegada, estávamos a gozar uns belos dias de sol..."

Livros de hotel

  


Quem, sendo viciado em livros, nunca optou por não resistir à tentação de prolongar a leitura de um volume encontrado numa estante de hotel, reservando-o para datas posteriores ao “check-out”? (Gostei de construir este eufemismo).

Tive um amigo que ia mais longe: colecionava bíblias encontradas nas gavetas dos quartos dos hotéis. E como viajava muito, as estantes lá de casa estavam atulhadas de sagradas escrituras, em diversas línguas. Quando lhe fiz notar que “não era bonito” esse tipo de prática, que assim privava os crentes, que viessem a ser hóspedes a seguir, de uma leitura espiritual para acabarem a noite em maior paz, retorquiu-me enxofrado: “E és tu, um consabido ateu, quem se preocupa com esta minha “recolha” de bíblias?”. Já não sei o que lhe respondi. Uma coisa é certa: nunca desviei uma bíblia de um hotel.

A questão de poder tomar como seus os livros alheios, perdidos numa estante sem critério, é um tema que releva muito do íntimo de cada um. E, porque é íntimo, não quero elaborar sobre ele.

Uma coisa é certa: com a oferta de leitura que me é proporcionada no quarto de um hotel em que estarei por estes dias, não corro o risco de cair na menor tentação.

segunda-feira, novembro 22, 2021

Felicidades


Ausente no estrangeiro, não vou poder estar hoje na festa de lançamento da nova CNN Portugal. Nem participar nas suas primeiras emissões. Mas estou, em pleno, com o Nuno Santos e e sua equipa, desejando à CNN Portugal as maiores felicidades e que ela possa ter um contributo muito positivo para a informação televisiva de qualidade no nosso país. 

sábado, novembro 20, 2021

Olhar da varanda


  • A Rússia parece determinada a não se deixar esquecer, face à saliência da rivalidade EUA-China. As movimentações militares na fronteira ucraniana, o estímulo claro à contestação sérvia do “statu quo” na Bósnia-Herzegovina e o seu visível “jogo” na questão recente da Bielorrússia revelam isso mesmo.
  • A Europa tenta ser levada a sério em termos de coordenação operacional militar, embora o conceito de “autonomia estratégica” (sinónimo de “fazer pela vida”, em termos de segurança) a divida muito, internamente. Há Estados membros que sabem bem que, se as coisas derem para o torto, vale muito mais um sobrolho carregado do Pentágono do que as balas de papel de Bruxelas.
  • Uma das boas lições da era Trump foi ter trazido à tona o pensamento profundo dos EUA face à Europa. Os sorrisos de Biden (antes, os de Obama) para o lado de cá do Atlântico escondem o imenso egoísmo estratégico que sempre prevaleceu em Washington. Parece muito evidente que, independentemente de usarem o pau ou a cenoura, os EUA, como se viu na criação do Aukus (que satisfez o ego ao Reino Unido, embora reforçando a sua dependência da “special relationship”, no pós-Brexit), olham sempre a Europa com uma sobranceira condescendência.
  • Com uma Alemanha sob uma fórmula de coligação política que não favorece ousadias em termos do repensar de um futuro reforço militar (curiosamente, ao contrário do Japão, este mobilizado por um presumido “clear and present danger”), a França vive um sonho de glória na sua orgulhosa solidão como força estratégica de referência dentro da União. Contudo, Paris sabe que há muito de ilusório nesse poderio: toda a coreografia que venha a fazer num qualquer sentido que ponha em causa a preeminência americana na segurança europeia confrontar-se-á com uma “nova Europa” (na fórmula de Rumsfelt) que, recorde-se, aderiu à NATO antes de entrar para a União Europeia.
  • Os Estados Unidos, para o bem e para o mal, continuam a ser um poder europeu. Por isso, ajudados pelo cimento de uma qualquer perspetiva de ameaça, unem a Europa quando querem ou dividem-na quando isso mais lhes convém. O próximo teste chama-se China. 

“A Arte da Guerra”


Esta semana, com o jornalista António Freitas de Sousa, no “A Arte da Guerra”, na plataforma digital do “Jornal Económico”, falámos do desafio ao Congresso do radical conselheiro de Trump, Steve Bannon, da força, aparentemente incontestada, de Xi Ji Ping na China e do comportamento de Lukashenko, bem como a natureza da relação da Bielorrúsia com a Rússia.

Pode ver aqui.

sexta-feira, novembro 19, 2021

Sexta-feira

Este é um blogue que, até para minha surpresa, a experiência veio a revelar ter sido sempre diário, desde o momento em que foi criado. Mas, no dia de hoje, não me apetece escrever aqui rigorosamente nada, nem sequer colocar uma daquelas fotografias com que, às vezes, num vazio de inspiração, encho a página. Assim sendo, até amanhã.

quinta-feira, novembro 18, 2021

Caetano da Cunha Reis

Acabo de saber que morreu o meu amigo Caetano da Cunha Reis. Conheci-o nos idos de 80, no Procópio, através do Nuno Brederode Santos. Fazia parte da nossa “seita” da Mesa Dois: “O meu Bushmills, com duas pedras, Juvenal!”. O Caetano vinha do “outro lado” da política, tinha sido fundador e o primeiro líder da Juventude Centrista. Era um grande amigo do “Diogo”, de quem foi episodicamente adjunto no MNE. Nunca esquecerei que, no dia em que assumiu essas funções, em 2005, me ligou para Brasília, dizendo-me apenas: “Telefono-te para te lembrar que tens aqui um amigo”. E ele era-o, bem amigo dos seus amigos. Ao longo de décadas, de uma mera simpatia inicial, pontuada de humor, evoluímos para uma relação de forte proximidade, mesmo de cumplicidade. “Eu faço parte da tua quota de amigos reacionários”, brincava sempre ele. Nos meses iniciais da pandemia, passava por minha casa para se “municiar” de livros - ele que era um leitor militante. O Caetano era culto e inteligente, generoso e educado. E corajoso, diz-me quem o conheceu na luta política. Teve uma vida cheia, era ele mesmo um homem cheio de vida, que muito gostava dela e das coisas boas que ela podia trazer. E que ele soube aproveitar. Alto, com aquela antiga barba que eu qualificava de “à Grossgrabenstein”, lembrando Edgar P. Jacobs, apreciava, nos últimos anos, sentar-se ao fresco da esplanada da Cristal, no passeio que, por muito tempo, gostava de fazer até à Lapa. Falei-lhe, pelo telefone, há semanas. Tinhamo-nos visto, pouco tempo antes, de raspão, numa festa, onde o notei abatido. Os problemas de saúde, de que tínhamos falado há meses num almoço a quatro, tinham-se agravado. A esperança de recuperação, contudo, mantinha-se. Tinha-o posto em contacto, entretanto, com outro amigo pessoal, que eu sabia ter a mesma doença; ficaram a dar-se lindamente, claro! Agrada-me muito que, na nossa última conversa, o seu sempiterno humor, a que se agarrava e que teimávamos sempre em cultivar, também tivesse permanecido intacto. O Caetano tinha um grande coração, mas os corações, mesmo os grandes, também se cansam. Sinto uma imensa tristeza pela saída de cena do meu amigo Caetano da Cunha Reis. Um abraço muito forte ao Joaquim e à Mami.

Bom gosto e bom senso


Não tive o gosto de conhecer pessoalmente Maria Eugénia e Francisco Garcia. Mas, ontem, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, ao olhar a exposição da coleção de arte deste casal de lisboetas, ambos já desaparecidos, senti-me como se tivesse acabado de lhes ser apresentado. Ao percorrer aquelas dezenas de obras, que faziam parte do cenário interior da sua residência (as fotografias dos aposentos também nos ajudam a “entrar” nela), apercebemo-nos do gosto, do bom gosto, que esteve por detrás das escolhas feitas, ao longo de algumas dezenas de anos. Pode mesmo imaginar-se o imenso prazer que ambos devem ter tido nesse processo. Percebe-se que houve a intenção de ir constituindo como que um fresco da arte contemporânea portuguesa a que os proprietários da coleção, tributários de uma cultura apurada e com meios para dela irem usufruindo, iam sendo sensíveis. E isso foi conseguido em pleno, na modesta perspetiva de quem, como eu, longe desse apuramento de gosto, se sentiu também “em casa”, face à esmagadora maioria das escolhas feitas. Digo isto com total sinceridade, como testemunho da rara satisfação que senti ao constatar essa identificação. Trazer esta exposição de muito bom gosto para o museu foi um ato de extraordinário bom senso. Obrigado e parabéns, João Pedro Garcia.

quarta-feira, novembro 17, 2021

Lula 2.0


O presidente francês, Emmanuel Macron, recebeu hoje Lula no ”perron” do Eliseu, com guarda de honra, distinção que tem um forte significado protocolar.

A França nunca faz gestos destes por acaso e, muito menos, por qualquer distração. E Brasília, que tem uma excelente diplomacia, sabe isto muito bem.

Para utilizar uma expressão conhecida: “À bon entendeur…”

terça-feira, novembro 16, 2021

Punir o boato


Nos anos 90, uma revista política britânica de circulação muito limitada, "Scallywag", publicou um rumor, que era falso, sobre um "affaire" do então primeiro-ministro conservador britânico, John Major.

Durante alguns dias, ninguém mais tocou no assunto. Major não desencadeou qualquer ação judicial contra a revista.

Passadas breves semanas, a revista "New Statesman", uma publicação bastante lida, muito próxima dos trabalhistas, retomou o tema, num tom clássico de quem quer ecoar a coisa, mas distanciando-se dela: ”Então não querem lá ver que andam por aí a dizer isto…”

Era comentado o conteúdo do artigo do "Scallywag", embora não credibilizando necessariamente o boato.

Porém, porque o "New Statesman", ao falar no assunto, amplificou a divulgação da mentira, Major (e a senhora envolvida no boato) processaram a revista. E depois, naturalmente, também o "Scallywag" foi a julgamento. Para a História: Major ganhou os dois processos.

O comportamento inicial de John Major mostra que seguiu uma regra básica da comunicação: quando as mentiras têm uma difusão restrita ou escassa credibilidade, reagir contra elas, em termos públicos, acaba por ser contraproducente.

Lembrei-me desta história a propósito de uma “notícia” espalhada na internet por uma boateira profissional espanhola de extrema-direita, detentora de um historial incontável de mentiras, como bem sabe quem acompanha minimamente a política do país aqui ao lado.

A visada, a deputada Mariana Mortágua, não reagiu quando por aí começaram a ser “retweetados” esses delírios. Mas pôs logo em tribunal o seu colega parlamentar de extrema-direita, correligionário luso da maluquinha espanhola, quando este deu amplificação ao assunto.

E fez muito bem!

segunda-feira, novembro 15, 2021

Bolas!

Eu sei que alguns ficam psicologicamente muito afetados por isto. Não é o meu caso. Claro que a mim também não me agradou ver a nossa seleção a ser derrotada pela Sérvia, jogando mal, com um naipe de jogadores com os quais, à partida, seria possível fazer bem melhor. Mas, com os diabos!, não estamos a falar de algo transcendental para o país! Estamos a falar de futebol. Perdemos, temos de tirar lições da derrota, talvez mudar de selecionador. Tudo bem! Mas não façamos disto um Alcácer Quibir! É um jogo com onze jogadores e uma bola. Nada mais! Não é a vida, não é o país! Caramba.

Hotel Jugoslavia


Há uns dias em que me dá para ver filmes com pancadaria “da velha”, espiões saídos do frio e vestidos de preto ou de couro, sempre com cara-de-mau, corridas infernais pelas ruas, carros a “esbardalharem-se”, bandidos “abatidos” por tiros de metralhadoras ou pistolas com silenciador. Histórias que acabam, quase sempre, em cenas de cama de belos hotéis de luxo. Ia escrever “com pequename à maneira”, mas tive medo de ter um processo por sexismo…

Ontem à tarde, num zapping, apareceu-me um filme com Kevin Costner, cheio desses ingredientes. Fiquei a vê-lo, claro! O essencial da ação era em Paris, com os cenários do costume (a “versão” americana de Paris: muito Montmartre, Trocadéro, Torre Eiffel qb, ruas marginais do Sena, Meurice e George V. Faltou o Marais e Saint Germain, sei lá bem porquê!), muito bem filmados, numa trama de confortável implausibilidade. O “fazer de conta” bem feito é uma das belas artes.

O filme tinha começado numa cena desenhada com violência no Hotel Jugoslavia (escrito sem assento), em Belgrado. O hotel, que o Booking me diz ter agora três estrelas, está com ar de ser já bem pouco glamoroso. Mas o nome Jugoslávia, infelizmente, rima sempre bem com violência.

Nem sempre foi assim, lá por Belgrado. Nos anos 70, o Hotel Jugoslavia era um “must” daquela capital balcânica. Ficava “do outro lado” da cidade, recordo-me bem. Por ali se alojavam muitos dos diplomatas que então negociavam no âmbito da CSCE, a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa, nos últimos tempos da Guerra Fria, uma iniciativa que procurava atenuar as tensões Leste-Oeste. (Mal eu sabia que, vinte e tal anos depois, iria chefiar, em Viena, durante a presidência portuguesa, a embaixada da Organização secessora daquele exercício).

Estive lá por Belgrado duas vezes. Não que eu ali fosse negociar nada. Muito simplesmente, como jovem diplomata, era encarregado de transportar a “mala diplomática acompanhada”, que levava e trazia graves “segredos de Estado”. Diferenciava-se assim da “mala” comum, que ia pelo correio normal.

“Ir de mala”, nesse circuito da Europa ou no dos Estados Unidos, era, na vida dos jovens diplomatas de então, uma tarefa simpática, que nos oferecia um circuito cosmopolita de uma semana. Havia uma escala do pessoal para essas viagens e, sempre que alguém faltava, logo surgiam, discretamente, uns colegas “papa-malas”, que acediam à informação privilegiada das vagas, “abichando” a oportunidade para avançarem. Coisas desses tempos…

Um dia, aí entre 1976 e 1979, saído de Lisboa, eu tinha passado, em dias sucessivos, por Londres e por Bruxelas. A bem dizer, este último era o destino principal da "mala diplomática acompanhada", por aí se situar a sede da NATO (ia-se e voltava-se sempre por Bruxelas). Da capital belga, parti para Viena, onde a esmagadora maioria da correspondência que eu levava iria ser encaminhada para postos dos então países comunistas, de onde as nossas Embaixadas enviavam depois à capital austríaca os seus diplomatas, para a respectiva recolha e canalização dos seus relatórios para Lisboa. Pouca coisa seguia na mala para Belgrado, a ajuizar pelo tamanho do pequeno pacote que me sobrava, cujo conteúdo, naturalmente, eu desconhecia (nós nunca abríamos a mala, não nos competia saber o que transportávamos). E, de Belgrado, iriam seguir, mais tarde, pela nossa atenta mão, correspondência e documentação “secreta”, destinada a Bruxelas e Lisboa.

A cidade de Belgrado, num inverno sob neve, era, numa dessas vezes, uma urbe cinzenta e algo desconfortável. De autocarro, fui parar, já muito ao final da tarde, ao imenso Hotel Jugoslavia. Passava da hora de fecho da nossa Missão temporária junto da CSCE, pelo que decidi ficar com a mala diplomática à minha guarda (período das refeições incluído, porque não era permitido perdê-la de vista). Entregá-la-ia no dia seguinte, logo de manhã.

Tomava eu um banho reconfortante no hotel, preparando-me para ir jantar com o pessoal da Missão (Ana Barata, Ana Marinho, Maria do Pilar, Rui Brito e Cunha, Jorge Ritto), quando me chegou um telefonema da secretária do Embaixador, dizendo-me que ele me ordenava que fosse, ainda naquele dia, ao escritório da Missão, para entregar a mala. Reagi, dizendo que era já muito tarde. 

Qual quê!? O embaixador insistia e quis mesmo que eu fosse de táxi, porque não podia dispensar o seu motorista. Furioso, lá tive de encasacar-me para o gelo da cidade, algo intrigado com a urgência da entrega daquela documentação. Mas, quem sabe?, podia tratar-se de instruções para uma diligência urgente ou contactos não adiáveis.

Chegado à Missão, fui levado à presença do embaixador, cujo nome agora não importa, que exclamou: "Ora temos então aqui a nossa mala! Já não era sem tempo!", numa clara "indireta" à minha resistência, complementada pela displicência com que me saudou.

Preparava-me, deliberadamente sorumbático, para sair do gabinete e regressar ao hotel, quando reparei que o embaixador se mostrava empenhado a ser ele próprio a quebrar os selos diplomáticos (de chumbo) do pacote. Por curiosidade, fui-me deixando ficar na cena.

Foi então que assisti à aparição de um embrulho, saído de dentro do pacote que, com toda a segurança e cuidado, eu transportara por várias capitais europeias. Vi os olhos do embaixador encherem-se de alegria: "Até que enfim! Estava a ver que o nosso colega de Havana nunca mais se despachava!". E lá abriu ele, com a avidez do vício, a sua caixa de "Cohibas", pelos visto a única "correspondência" relevante que, para escapar aos riscos da espionagem comunista, nesses derradeiros anos da Guerra Fria, eu levara em mão, durante dias, até Belgrado...

domingo, novembro 14, 2021

Bem os procurei!

 


A conversar…

 


… sobre Merkel e a Europa. Aqui.

Isto é à vontade do freguês?


A estação ferroviária de Santa Apolónia mudou radicalmente de côr. Mas então como é? Não há regras urbanas sobre as tipologias de cores deste tipo de edifícios? Um dia, alguém decidiu pintar de azul claro. Agora, a (outro?) alguém deu na mona pôr esta nova côr? Isto é assim? É “à vontade do freguês”? Quem pintou de azul tinha-se enganado? É que estamos a falar de (muito) dinheiro público! (Ah! E não é para aqui chamada a questão sobre se fica melhor assim ou assado.)

sábado, novembro 13, 2021

Diamantes


Foi em 1983. Ligaram da portaria da nossa embaixada em Luanda, onde eu era então o “número três”. Um cidadão português, que eu conhecera num encontro ocasional, semanas antes, pedia para me ver, “com a maior urgência”.

Chegou, afogueado, ao meu gabinete. A cara serena e sorridente que eu havia conhecido estava transtornada, com um fácies de visível perturbação. Mandei-o sentar, sossegar, para me explicar o que o trazia ali. O homem suava em bica, mas levei isso à conta do calor que o fim da época do cacimbo trouxera à cidade.

“Senhor doutor, tem de me ajudar! Está a ser cometida uma grave injustiça! Prenderam, hoje de manhã, “Fulano de Tal” (um nome estranho para mim). Acusam-no de ter traficado diamantes. Imagine! Um homem como ele, uma jóia de pessoa, transmontano como nós, não sei se o conhece?, pode lá estar envolvido em semelhante trapalhada!”

Eu lembrava-me de que o meu interlocutor era transmontano, mas tinha para mim que ser de Trás-os-Montes (que me desculpem os meus conterrâneos) estava longe de poder ser um atestado automático de inocência. (Não, não vale a pena trazerem à colação, em comentários, nomes de figuras conhecidas de transmontanos envolvidos em sarilhadas).

O assunto, contudo, não era comigo. E disse-lho logo. A responsabilidade pela proteção dos cidadãos nacionais compete às estruturas consulares. Em Luanda, havia um Consulado-Geral. Ora eu trabalhava na embaixada (só quando não existe uma estrutura consular autónoma é que as embaixadas dispõem de uma Secção Consular. Curiosamente, eu tinha acabado de ser responsável por uma, durante três anos, em. Oslo). O máximo que eu podia fazer era levá-lo ao Consulado-Geral, dois andares abaixo. E lá fomos.

“Espero que o senhor doutor não se desinteresse pelo assunto”, foi-me dizendo pela escada abaixo, sempre crispado e tenso. Eu, que mal o conhecia, fiz-me de desentendido. Não podia imiscuir-me no que minimamente me não competia. Levei-o ao gabinete do vice-cônsul, com quem o deixei à conversa. E regressei ao meu trabalho.

No dia seguinte (ou dias depois), a “bomba” rebentou. Uma extensa rede de tráfico de diamantes fora descoberta em Angola. Haveria cidadãos portugueses envolvidos. O “Fulano de Tal”, amigo do meu interlocutor, de acordo com o que se sabia, seria um dos acusados. Na altura, senti pena pelo meu visitante de uns dias antes: afinal, o seu amigo, o “nosso conterrâneo”, ia acabar por ter uns tempos difíceis.

Passaram mais uns tempos. Surgiu então a notícia de que o homem que me visitara fora também detido: também ele estaria profundamente envolvido na rede de tráfico de diamantes.

Fiz então um “flash back”: afinal, toda aquela perturbação que eu testemunhara não seria apenas de preocupação pelo destino do amigo, era talvez já o forte receio de ele próprio poder ser atingido pelo processo.

“To make a long story short”: o meu visitante foi condenado, bastante tempo mais tarde, a uma pesada pena, de bem mais de dez anos de prisão. O meu colega embaixador Fernando Andresen Guimarães, então cônsul-geral em Luanda, e o vice-cônsul Hermenegildo Gonçalves lembrar-se-ão muito bem de toda esta triste história, que conhecem bem melhor do que eu.

Por que é que me lembrei disto? Talvez pelo facto de, nos últimos dias, todos termos ouvido falar muito de tráfico de diamantes.

sexta-feira, novembro 12, 2021

João Gomes Cravinho


Compreendo que seja bastante desagradável, para os cultores do tremendismo catrastrofista na vida pública, ter de defrontar uma pessoa séria e de credibilidade à prova de bala, à frente de um ministério com funções de Estado. Eu sei: isso dificulta a crítica fácil, cria problemas à maledicência costumeira. Ainda por cima, tratando-se de uma pessoa reconhecida e indiscutivelmente competente, capaz de manejar os dossiês, sem mostrar o menor receio em afrontar o imobilismo corporativo. João Gomes Cravinho é alguém que tem uma carreira - académica, europeia, pública - que não foi feita à sombra de ninguém, por aparelhamento, por amiguismo, por qualquer favor. Quem tiver alguma prova do contrário, tem toda a liberdade de o dizer - aqui, nas linhas seguintes. É alguém que não precisa do Estado português para nada! Se há algum “favor” envolvido no caso de João Gomes Cravinho esse é aquele que ele nos presta, ao país, que tem o benefício de poder usufruir do seu serviço. Mas eu sei: nada incomoda mais alguma gente do que isso mesmo.

quinta-feira, novembro 11, 2021

Que arte!

No caso dos Comandos, é impressionante como, rapidamente, se conseguiu tirar o foco da questão da ladroagem de diamantes e ouro para a converter num caso entre instituições políticas. Em Portugal, o essencial é sempre um inesperado acessório.

O voto pelas paredes


Já há novidades sobre a iniciativa legislativa para limpar a propaganda pelas ruas das últimas eleições autárquicas? Não, não é por nada! É que é preciso começar a arranjar espaço para a propaganda das legislativas que aí vêm…

De Klerk


Morreu o antigo líder da África do Sul Frederik De Klerk. Foi a última figura simbólica do regime do apartheid. Soube entender que a situação política que lhe cabia gerir era historicamente insustentável. Contra muitos do seu campo, acusado mesmo de os trair, abriu as portas a uma mudança radical. Quis a sorte que tivesse encontrado, do outro lado, uma figura excecional, chamada Nelson Mandela. A África do Sul dos dias de hoje não parece à altura da estatura desses dois homens.

Sampaio


Uma homenagem de amigos e admiradores de Jorge Sampaio, em que tive o gosto de colaborar.

quarta-feira, novembro 10, 2021

“A Arte da Guerra”


Em “A Arte da Guerra” desta semana, no podcast do “Jornal Económico”, falo com António Freitas de Sousa sobre os dias de Joe Biden, as novas tensões divisionistas na Bósnia-Herzegovina e a guerra que abala a Etiópia.

Pode ver aqui.

Um último abraço, Rui Oliveira e Costa

 


terça-feira, novembro 09, 2021

A tropa fandanga

Desde há décadas que as forças armadas portuguesas têm estado envolvidas em operações de paz, um pouco por todo o mundo. A ação dos nossos militares, alguns dos quais pagaram com a vida ou o sofrimento o risco dessas missões, tem vindo a representar um contributo inestimável para a imagem externa de Portugal, por todo o lado deixando assinaláveis marcas de competência e rigor profissional, que é unanimemente reconhecido. 

Se acaso se vierem a confirmar as acusações que envolvem militares portugueses no tráfico de bens preciosos, oriundos das zonas onde estavam mobilizados em operações de paz, isso configurará uma quebra ética que vai muito para além da mera criminalidade. Significa o abandalhamento da farda que essa gente teve um dia a honra de envergar, em nome do nosso país.

É importante, por isso, que este caso seja rapidamente esclarecido e julgado com todo o rigor, cuidando em evitar quaisquer falhas processuais, por forma a que, daqui a uns anos, o assunto não acabe envolvido numa nuvem pantanosa de queixas, recursos e falta de decisões transitadas em julgado. É não só a justiça que assim o exige, como igualmente o reclama o nosso prestígio externo.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Nicaráguas


Sou de um tempo em que o mundo se mobilizava contra a ditadura de Somoza, na Nicarágua, louvando a luta de Ortega e dos seus amigos em favor da democracia no país.

Agora, vivemos num tempo em que há que apoiar a luta de quantos lutam contra Ortega e denunciam o modo repressivo e autoritário como ele domina a Nicarágua.

Duas lutas igualmente justas.

domingo, novembro 07, 2021

Turquia


Há poucos anos, quando li na imprensa (há muito que não faço parte dos “mentideros” das Necessidades, que, por antecipacão, sabem “quem vai” e “para onde”) que uma colega e amiga tinha sido colocada na Turquia, mandei uma mensagem a felicitá-la (faço isso muito poucas vezes, razão por que o noto). E fi-lo com grande sinceridade. Não porque Ancara seja a cidade mais agradável do mundo para se viver (embora Istambul seja uma das cidades mais fascinantes que conheço), mas porque penso que, nos dias de hoje, a Turquia é um “lugar geométrico” privilegiado, onde se cruzam realidades geopolíticas muito diversas e contraditórias. E muito importantes para todos nós. A começar pelos profissionais da diplomacia.

(Costumo dizer que os postos da carreira que, para um diplomata português, valem realmente a pena são aqueles onde aquilo que escrevemos é lido com atenção em Lisboa. E Ancara é, seguramente, nestes tempos, um deles. Há capitais magníficas, cómodas e agradáveis para se viver, mas de onde um diplomata não consegue enviar muita coisa que interesse à “Secretaria de Estado” (para quem não saiba, é assim que, na linguagem da profissão, são tratados os serviços do MNE sedeados em Lisboa). E, depois, há cidades menos glamorosas, às vezes com um quotidiano mais difícil e até com riscos pessoais, onde o que dali se escreve consegue ter algum “peso” na opinião das Necessidades. Sei do que falo: já trabalhei em postos de ambos os géneros.)

Quando, há meses, o professor Luís Tomé me convidou a fazer, na Universidade Autónoma de Lisboa, um mano-a-mano com o jornalista Rui Cardoso, sobre a Turquia e a sua relação com a União Europeia, não hesitei um segundo em aceitar. E não me arrependi. Foi um debate muito útil, com participação do auditório e de umas dezenas de pessoas que nos acompanhavam por Zoom. Sem falsa modéstia, creio que abordámos, com algum rigor, o essencial daquilo que é o cenário de ação externa da Turquia nos dias que correm. Na perspetiva da relação de Ancara com a União Europeia, falou-se de também de outros atores ligados ao tema: EUA, África, países do Golfo, Rússia, Israel, Líbia, Síria e até da China e da Venezuela. 

Veio-me então à memória uma deslocação que fiz à Turquia em 2000, em representação da presidência da União Europeia. Vivia-se um tempo posterior à decisão tomada no Conselho Europeu de Helsínquia, em dezembro de 1999, que havia aceitado a Turquia como candidato a uma futura adesão, dando pela primeira vez sequência ao seu pedido, datado já de 1987. 

A classe política turca vivia dividida entre quantos ansiavam que o processo negocial encaminhasse o país para uma entrada nas instituições europeias, com impacto na rapidez de “aggiornamento” do país, e aqueles que temiam que as reformas exigidas para a adesão viessem a descaraterizar o país. Nestes últimos estavam os setores islâmicos. 

Num jantar que tive com deputados turcos, não uniformes nas suas linhas ideológicas, quando ecooei o sentimento prevalecente em Bruxelas, no sentido da Turquia dever abandonar a pena de morte (falava-se então da possibilidade iminente de ela ser aplicada ao líder curdo Albdullah Öcalan, rompendo uma moratória que o país estava a seguir nos últimos anos), detetei uma forte reação por parte da maioria dos presentes: Ancara não admitia essa “ingerência” nos seus assuntos internos. Quando, com serenidade, expliquei que essa era uma condição “sine qua non” para a adesão, levantou-se quase um clamor. A Turquia “não era um país qualquer”, passível de pressões externas. No final da refeição, que terminou num ambiente cordial mas um pouco tenso, uma assessora minha comentou: “Parecia que era a União Europeia que estava a tentar aderir à Turquia, não o contrário…”

Receção muito diferente seria o que me aguardava, no dia seguinte, numa palestra que fiz na “Middle East University”. O sentimento prevalecente, nas mais de duas centenas de estudantes com os quais debati o tema da relação entre a Turquia e a Europa, revelava uma esmagadora vontade do país se juntar à “família” europeia, pela certeza de isso poderia funcionar como uma alavanca para a modernidade da sociedade. 

Hoje, mais de duas décadas depois, sabemos quem ganhou essa “guerra”. 

Com a maior convicção, acho que são cada vez mais remotas, senão mesmo nulas, as hipóteses de algum dia a Turquia vir a ser um membro da União Europeia. O que, no entanto, não significa que devamos descurar minimamente as relações com aquele país charneira, cujo curso político continuará a ser da maior importância para a Europa e para o mundo.

sábado, novembro 06, 2021

Raret


A Netflix está a passar a série portuguesa “Glória”, situada em 1968. A história gira em torno de um jovem engenheiro, filho de um secretário de Estado da ditadura, que é militante comunista clandestino e que consegue ser colocado na Raret, com vista a executar ações “subversivas”. E que tinha uma bela namorada. Vi hoje o primeiro episódio da série. Não me entusiasmou, pelo que não tenciono ver os restantes.

A Raret era uma estrutura secreta de emissores que, durante a Guerra Fria, emitia de um determinado local no Ribatejo para os países comunistas, difundindo mensagens oriundas dos Estados Unidos, no quadro da atividade da “Rádio Europa Livre”. Essa ”ação psicológica” funcionava em sentido oposto ao das emissões que, da Rússia e de outros países do “bloco de Leste”, eram emitidas para o “lado de cá”. 

Nesse tempo da ditadura, em termos públicos, a Raret era, entre nós, um “não assunto”. A imprensa não se lhe referia e o tema era verdadeiramente tabu, só mencionado à “boca pequena”.

Vim viver para Lisboa, em 1968, para casa de um tio, nos Olivais. Num dos primeiros dias, com ele partilhei o elevador ao lado de um cavalheiro. O meu tio cumprimentou-o. Era nosso vizinho de andar. 

Quando ficámos sós, o meu tio perguntou-me: “Sabes o que é a Raret?”. Eu sabia. “Este tipo é engenheiro lá. E tem uma mulher muito bonita!” O meu tio era muito atento às mulheres. 

Dias depois, vim a constatar que ele tinha a toda razão. A senhora era lindíssima, muito bem “desenhada” e, além disso, extremamente simpática, como confirmava quando acaso coincidíamos no elevador. Era o contrário do marido, este sempre com um ar macambúzio, como talvez tivessem a obrigação de ser as figuras ligadas a coisas tão misteriosas como a Raret. Nunca soube o nome do casal.

Como se vê, em 1968, havia na Raret engenheiros que tinham mulheres muito bonitas. Tal como no cinema.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...