segunda-feira, janeiro 31, 2022

Acho que foi assim

Não vou ser curto, aviso desde já.

1. Portugal foi justo para com António Costa. Os portugueses aprovaram, sem margem para dúvidas, o modo como ele soube liderar país, sob uma crise de inéditas proporções - sanitárias, sociais e económicas. Mostraram também que, com ele na chefia do governo, confiam em que o PS é digno de poder ter uma maioria absoluta, que assegure quatro anos de estabilidade na frente legislativa. 

Costa está de pedra e cal na chefia socialista e, com o resultado de ontem, não passa pela cabeça de ninguém que possa vir a sentir-se tentado por um lugar europeu, nos próximos quatro anos, o que é uma excelente notícia. Quanto à sua sucessão, a conversa acabou até 2026.

2. Rui Rio fez um derradeiro esforço histórico (embora apenas retórico) para conduzir o PSD para o centro político. Ao afirmar, na noite de ontem, que, contrariamente ao que tinha acontecido com o PS, “a direita” não se tinha congregado à volta do PSD na bipolarização eleitoral, Rio mostrou um “Zé Albino” escondido com rabo de fora… 

O PSD começou por falhar na tentativa de conquistar o tal eleitorado oscilante que, ao que reza o mito, andará pelo centro: como se viu, esses votos não fugiram ao PS, em especial depois dos anteriores companheiros da Geringonça lhe terem “puxado o tapete”, o que ajudou a “recentrar” a sua imagem. Rio, para tentar segurar votos que pressentia (e bem) estarem a sair para o Chega e para a IL, viria mesmo a ter um discurso equívoco no final da campanha, onde confirmou que o modelo de acomodação com o Chega no Açores podia vir a fazer escola a nível nacional. Fora isso, Rio é um político basicamente bem intencionado. Ou melhor, era. 

O PSD do futuro terá de ser um partido democrático de uma direita muito assumida como tal, abandonando de vez quaisquer veleidades centristas. Vai ter de encontrar maneira de se distinguir doutrinariamente da IL e terá de construir um discurso de forte rejeição do Chega. 

Porque Rui Rui “purgou” o grupo parlamentar de heterodoxos, o líder que lhe suceder irá ficar quatro anos com um grupo de deputados que não escolheu. Não será tarefa fácil, mas - digo-o com sinceridade - é bom que consiga recuperar algum do eleitorado que votou em André Ventura. É importante para o país que o PSD se mantenha como o partido da alternância do sistema, sustendo o extremismo na direita. Mas, para tal, vai ter de radicalizar o discurso.

3. A intervenção mais patética do fim da noite (como só vi televisão depois das 23:30, tive de “andar para trás”…) foi, a grande distância, o texto lido por Jerónimo de Sousa, uma espécie de antecipação do editorial justificativo no “Avante!” desta semana. Aquela das condições “objetivas” e “subjetivas” lembrou tanto, nostalgicamente, outra época! O PCP sabe bem que muito do seu eleitorado lhe fugiu para o voto útil no PS. 

(Nem imaginam quanto me diverte pensar que tenho amigos que, em 2019, foram refugiar-se no voto no PCP e no Bloco, para evitar que o PS tivesse uma maioria absoluta - e que ontem, em “susto” com o possível regresso da direita ao poder, a ofereceram de bandeja a António Costa!) 

O PCP foi grande responsável pela crise do OGE, porque foi exatamente a sua mudança de sentido de voto (o Bloco já no ano anterior tinha votado contra) que provocou estas eleições - e não podem alegar surpresa, porque o presidente da República tinha sido claro no seu aviso. Mas os deputados não são tudo para o PCP: esta madrugada, as luzes já devem estar acesas na CGTP. Uma nota sobre a futura liderança do PCP. Salvo alguma surpresa, João Ferreira irá suceder a Jerónimo da Sousa, dada a eliminação de João Oliveira em Évora (em Évora, o PCP não elegeu um único deputado!)

4. O Bloco de Esquerda teve o que mereceu. Tal como o PCP. É bom que a irresponsabilidade tenha um preço. Desta vez, foi possível suster as consequências do erro, ao contrário de 2011. Agora, o feitiço virou-se contra a retórica gratuita e não há sorrisos de circunstância que disfarcem o descalabro nas urnas. No caminho das pedras, Bloco e PCP aguardam, com certeza, que uma maioria absoluta do PS vá, a prazo, gerar descontentamento e terão esperança de virem a reconstruir-se por aí. Pode ser que a visibilidade que Rui Tavares irá ganhar no parlamento possa ajudar o Livre a afirmar-se no terreno do Bloco.

5. Será da idade, mas fico triste pelo desaparecimento do CDS do parlamento. Sempre alimentei um sincero reconhecimento histórico pelo facto dos “centristas” (que eufemismo!) terem dado guarida democrática, após o 25 de Abril, a gente de uma direita (alguma muito pouco democrática) que se sentia distante do socialismo dominante e que não foi atraída pelo então PPD, nomeadamente na recolha dos “cacos” da Ação Nacional Popular. E louvei sempre a coragem do CDS de votar contra a Constituição de 1976. A democracia também se fez com essa direita, que enquadrou pessoas traumatizadas com a esquerda que chegavam das colónias e que deu guarida a gente que não apreciava muito (ou mesmo nada) o 25 de Abril - mas que também eram cidadãos de pleno direito, na democracia que essa mesma data instituíu e de que puderam passar a usufruir. 

Agora, sob uma liderança estouvada e de adolescência tardia, o CDS autodestruiu-se e perdeu em credibilidade o que ganhou em decibéis. E mesmo não apreciando o estilo, tenho pena que o líder do CDS não se sente em S. Bento. É que, sem o palco mediático que a presença parlamentar lhe assegurava, o partido poderá vir a desaparecer, em breves anos. Até lá, o facho da sua liderança (não estou a fazer graçolas homófonas) vai passar a ser empunhado por quem já se presume. 

6. Quando a IL surgiu, julguei, erradamente, que seria um fenómeno meramente circunstancial, fruto do desaparecimento do “passismo” à frente do PSD, que estava a atrair uma nova geração urbana, seduzida por um liberalismo comportamental e de costumes que se somava a uma agenda económica anti-Estado e com receitas pós-Chicago das “business schools”. O “centrismo” de Rio veio ajudar fortemente ao crescimento da IL nestas eleições. Aguardemos os efeitos que o futuro do PSD virá a ter no futuro da IL. Confesso que, em termos pessoais, me assustava a possibilidade da IL poder vir a ter influência numa futura governação PSD. Por quatro anos, fico mais sossegado.

7. Vamos ter muito tempo para falar do Chega. Claramente, foi alimentado por votos que eram “do” PSD e do CDS. Tal como acontece em outros países, poderá ter também contado, para este seu crescimento, com o apoio de “enragés” vindos do terreno comunista. Veremos em que medida as bancadas da restante oposição estarão ao lado do PS para um “fogo de barragem” àquela que vai ser, sem a menor sombra de dúvida, a grande vedeta desta legislatura. Só não digo que vai ter graça porque, manifestamente, com a comunicação social que temos a servir de complacente câmara de eco aos seus adjetivos incendiários, a cultura cívica do país não vai ficar bem servida com o que aí virá. Mas não há nada a fazer: é a democracia! 

8. Acabou a ficção do PEV. Esse genérico e repetidor do PCP não me parece que faça grande falta à democracia (quem é que se lembra da “Intervenção Democrática” que foi a terceira ”perna” da CDU?). A sábia decisão do eleitorado evitou a continuação do aproveitamento do artifício que permitia este estranho fenómeno partidário, de cujos comícios nunca tive conhecimento.

9. E o PAN vai continuar no parlamento. Confesso que isso não me suscita o menor comentário. Nem sentimento, mas a culpa deve ser minha.

domingo, janeiro 30, 2022

Black out

Ontem, a viajar pelo meio do Alentejo, eu e minha mulher tivemos uma ideia: e se, neste domingo, a partir das sete e tal da tarde, desligássemos os telefones e os computadores e mantivéssemos a televisão fechada - como, aliás, acontece em nossa casa, em muitas noites, ao longo do ano?

Jantávamos, líamos alguma coisa do muito que temos para ler e, lá para as 11 e meia da noite, “regressaríamos” ao mundo e saberíamos o que é que aconteceu entretanto na política da paróquia. 

E foi mesmo assim que as coisas se passaram. Têm sido umas horas de grande sossego! 

Pedimos desculpa aos amigos e às pessoas de família que, muito provavelmente, nos ligaram, entretanto, para comentar os resultados que eles já conhecem. 

São agora 11 e meia, vamos ligar a televisão (e os telefones) e saber “como param as modas”!

sábado, janeiro 29, 2022

Pois!

 


“A Arte da Guerra”


Nesta semana, no podcast do “Jornal Económico”, “A Arte da Guerra”, o jornalista António Freitas de Sousa e eu voltamos, inevitavelmente, a abordar a questão ucraniana, bem como o ressurgimento do Estado Islâmico na Síria e o recente golpe de Estado no Burkina Faso.

Pode ver aqui

Já votei na semana passada

Ao ter votado por antecipação no domingo passado, acho que adquiri uma espécie de bula que, no dia de hoje, me permite falar livremente de política. 

Esta nota, contudo, não é para falar do voto de amanhã: é para me referir ainda ao início da crise política, ao derrube do orçamento. 

Na altura, a esquerda que tem bom senso culpou - e bem - o Bloco e o PCP por terem ajudado a derrubar o governo, ao aliarem-se (uma vez mais) à direita - e, desta vez, também à extrema-direita, o que foi uma desonrosa “première”.

Ora há aqui um ligeiro distinguo a fazer, desculpem lá! 

O Bloco foi co-responsável pela irresponsabilidade, passe a contradição, de ter ajudado a inviabilizar o OGE para 2022, originando a crise política? Claro que sim. Mas convém lembrarmo-nos que o Bloco foi coerente com o seu voto ao OGE de 2021. O Bloco não mudou, na sua consabida irresponsabilidade. 

Quem mudou o sentido de voto, e precipitou a crise, foi o PCP. Se tudo se tivesse passado como no ano anterior, se o PCP tivesse repetido o voto anterior, o OGE 2022 tinha passado e não estávamos agora em eleições. O PCP foi o principal responsável por esta crise - é bom que isto fique preto no branco. 

Por que é que ninguém parece querer ”separar estas águas”? 

Porque, para alguma esquerda mais moderada, que não caminha sobre elas, subsiste uma espécie de odor de humanidade em torno do atual PCP, que muito deve ao efeito simpatia de Jerónimo de Sousa, somado a um resto de (merecida) reverência histórica. 

Tende-se assim, implicitamente, a absolver o “velho” PCP, em desfavor do Bloco, tido como uma espécie de “parvenu” pretensioso e irritante, sem real “pedigree” político.

Não será assim, para muitos? Para mim é.

O voto dos mortos

Como é? E se um cidadão, que já tenha votado no domingo passado, por antecipação, tiver, entretanto, ido desta para melhor? O seu voto vai contar? O quê? Vão ser contabilizados os votos dos mortos? Acreditem que haverá gente a levar isto que estou a escrever a sério! E ainda haverá um marreco qualquer a pensar impugnar o sufrágio…

Os refletores

A estupidez do dia de reflexão, que converte os cidadãos em crianças, ao impor à comunicação social que não fale do elefante na sala, faz lembrar aqueles jogos de sala em que se é punido se se utilizar uma determinada palavra. 

Ninguém acaba de vez com isto?

Reserva


Se eu disser que tenciono almoçar, no domingo, neste restaurante, estarei a incumprir com os deveres do dia de reflexão?

sexta-feira, janeiro 28, 2022

A minha opção

Faço parte de quantos - e somos muitos - gostam de ver o Partido Socialista à frente do governo do país. Tenho para mim que a esquerda democrática é a direção política que melhor corresponde à execução dos propósitos da nossa Constituição - e eu aprecio bastante o sábio equilíbrio, entre a retórica de Abril e o pragmatismo do bom senso, desse documento estruturante da nossa democracia.

Por isso, mesmo em tempos em que discordei do PS, votei quase sempre socialista - e digo “quase” porque me abstive algumas vezes. Em outras ocasiões, segui o sábio conselho de Alexandre O’Neill: “Ele não merece, mas eu voto PS”.

Nunca me arrependi, sequer por um instante, de ter votado socialista, pelo que me sinto também plenamente solidário - diria mesmo, politicamente co-responsável - com os erros cometidos pelos seus governos (todos, para que não fiquem dúvidas), em dois dos quais modestamente colaborei.

O PS tem, em regra, para o meu gosto, um modo democrático, participativo e pouco autoritário no exercício do poder que o afasta, para bem melhor, do seu principal adversário no mercado eleitoral.

O PS é o partido que espelha de forma mais real, na minha perspetiva, o que Portugal é, como país, nas qualidades e nos defeitos. Por isso, o PS também é como esse país: tem gente boa e gente má, tem pessoas dedicadas e qualificadas, tem oportunistas e incompetentes. O PS não é um clube de virtudes mas, vistas as alternativas, é, a grande distância, o porto mais seguro do voto dos portugueses. E talvez por isso, na história política da nossa democracia, os portugueses tenderam, maioritariamente, a escolher o PS para os governar.

É claro que os socialistas sempre alimentaram, dentro de si, algumas divergências, doutrinárias e pessoais. Achei sempre isso bastante saudável. E, se se olhar para o estado de sítio permanente em que o seu principal adversário vive ciclicamente mergulhado, o PS apresenta um invejável mar de estabilidade política interna.

Em 2015, quebrando, a nível nacional, um tabu que Jorge Sampaio já tinha afastado antes a nível autárquico, António Costa fez um sábio acordo político à sua esquerda, que permitou compatibilizar o que parecia ser uma insuperável quadratura do círculo: reverter algumas medidas com que o fundamentalismo da austeridade tinha atormentado muitos portugueses e, ao mesmo tempo, preservar compromissos internacionais essenciais para a respeitabilidade do nosso Estado.

Na execução desse projeto, António Costa revelou-se um excelente primeiro-ministro, num tempo de exigência única em que soube pilotar, naturalmente ajudado pela conjuntura externa, uma notável estabilização da situação financeira, ao mesmo tempo que enfrentava, como muita coragem e imensa serenidade, o ciclo da pandemia de que ainda não saímos. Pelo meio, ainda teve a tragédia dos incêndios e outros azares que fazem parte da vida dos executivos.

António Costa fez tudo bem? Rodeou-se sempre das pessoas certas? Claro que não! Podia ter feito outras opções? Com certeza que sim. Mas só uma perspetiva muito sectária não reconhecerá que dificilmente as coisas poderiam ter seguido um rumo radicalmente diferente, num tempo que foi de exigência limite. A mim, com toda a sinceridade e a muito longa distância de qualquer outra opção, nenhuma outra pessoa me oferece maior confiança para continuar a gerir o país do que António Costa.

Ousando imitar O’Neill, eu diria: sei que há gente que não gosta, mas eu voto António Costa.

quinta-feira, janeiro 27, 2022

As placas

- Mas tenho mesmo de substituir as placas de matrícula do meu carro?
- Tem. Se for à inspeção, com elas neste estado, o carro “chumba”!
- Ó diabo! E fazem placas exatamente iguais?
- Em princípio, vêm já no novo modelo, sem ano e mês e com as letras e algarismos em sequência, sem aqueles dois tracinhos antigos.
- Mas esse é que é o problema! Eu quero continuar a ter as placas com os dizeres antigos.
- O senhor vai ao contrário de toda a gente! As pessoas fartaram-se de comprar placas novas, mesmo para carros muito velhos.
- Pois eu, não. Quero uma placa com os dizeres antigos, que revele a idade do carro. Acho uma saloiíce andar com um carro com muitos anos a “armar” que é moderno. Pode mandar fazer as placas como eu quero?
- Posso.
- Ótimo.

E assim foi.

A saga ucraniana


Na CNN Portugal esta tarde, a analisar os últimos desenvolvimentos das tensões globais provocadas pela crise russo-ucraniana.

Pode ver aqui.

As palavras e as coisas


Há cerca de 55 anos, comecei a escrever para “A Voz de Trás-os-Montes”, um semanário de Vila Real, pertencente à diocese, jornal que, nos dias de hoje, continua felizmente a publicar-se e de que sou fiel assinante.

Por essa altura, havia também na cidade “O Vilarealense”, muito mais antigo, com uma impressão primária, praticamente escrito por uma única pessoa, e a “Ordem Nova”, pertença do partido único, a União Nacional, curiosamente com uma página literária que, ao que parece, terá tido tempos interessantes e criativos.

Eu vivia então no Porto, onde frequentava a universidade. Numa das idas a Vila Real, numa conversa com o padre Henrique Maria dos Santos, diretor de “A Voz de Trás”, como depreciativamente alguns chamavam ao semanário, fui convidado (ou fiz-me convidado) para colaborar no jornal.

Comecei por escrever, por semanas, sobre desporto. Depois, muito rapidamente, passei a temas de política internacional (e, ainda hoje, gosto do que então por lá assinei sobre o tema). Tempos mais tarde, aventurei-me na política interna, usando uma linguagem ambígua, num estilo a tentar ser subtil, que fazia muito o jeito da época, mimetizando o que lia em alguma imprensa de Lisboa, onde passara a viver. Um dia, porém, após ter ensaiado umas graçolas a que o censor local não achou piada, terminei a minha carreira como colaborador. Estávamos aí por 1972 ou 1973. Um ano e tal depois, valha a verdade, sem censura, deixou de ser necessário escrever coisas equívocas.

Terá sido na última fase, a da política interna, que decorreu o que passo a contar.

Um dia, enviei um artigo em que, nem sei a propósito de quê, utilizei a palavra “niilista”. Era uma expressão “pesada” que, no jornal, talvez nunca tivesse sido grafada. 

O semanário, creio, saía às quartas-feiras. Porque os correios eram então uma coisa séria, recebi, no dia seguinte, o meu exemplar. Fui ler o artigo e lá estava: “nilista”, só com um “i”. Fiquei aborrecido. Tempos depois, passando por Vila Real, “deixei cair” ao padre Henrique o “incidente”. Devo ter ouvido um “deixe lá!”. E (quase) esqueci o assunto.

Digo “quase” porque, meses depois, voltei à carga com a palavra, em outro artigo. Decidi recuperar a forma antiga do termo, colocando-lhe o velho “h” no meio - “nihilista”. Pensei para mim: na Minerva Transmontana, os tipógrafos, gente tida com uma cultura sempre bem acima da média das pessoas com tarefas similares, devem conhecer essa grafia.

Quando recebi o jornal com o novo artigo, gelei: vinha lá escrito “leninista”! Entrei, confesso, num relativo sobressalto. A palavra não fazia o menor sentido no contexto da frase mas, mesmo assim, naquele tempo de ditadura, como diria Steinbroken, aquela dislexia ortográfica era grave, excessivamente grave.

Por uns dias, esperei uma reação, uma “chamada à pedra”, quiçá uma intimação! Mas nada! Nem o padre Henrique me falou, nem, na ida seguinte a Vila Real, recebi de alguém, sequer da minha família, a menor reação. A hipótese, bem plausível e simples, de ninguém ter lido o artigo - ou, tendo-o lido, ter passado por aquilo “como cão por vinha vindimada” - nem sequer se me pôs. Fiquei, contudo, a matutar na questão.

E decidi passar pela Minerva Transmontana. Não se acedia diretamente à zona das máquinas da tipografia. Havia um balcão em L, onde se faziam encomendas de coisas tipografadas, se compravam cadernos ou se “punham anúncios”.

Pedi para ver o Carvalho, a única pessoa que por ali conhecia, além do Estevinho, um colega da escola primária, sem estatuto para interlocutor na matéria ortográfica do calibre que eu pretendia levantar. Em voz baixa, perguntei ao amigo Carvalho: “Quem é que compõe os artigos da Voz de Trás-os-Montes?” Disse-me que era mais do que uma pessoa, mas que o responsável era o senhor “Fulano” (tenho boa memória, mas não fixei o nome). Pedi para falar com ele. Nesse preciso instante, tive um primeiro lampejo do ridículo da situação que estava a suscitar.

O senhor “Fulano”, um tipo pesado, que lembro de camisa escura e ar de poucos amigos, lá apareceu para a interlocução comigo. Eu estava já um pouco encavacado por ter de lançar o magno tema diante de umas “meninas da Escola Normal” que ali estavam para comprar blocos ou coisas assim. Mas, pronto, já não havia recuo. Chamei-o a um extremo do balcão e, imagino que com voz “sólida”, disse que era colaborador do jornal e que, recentemente, e por virtude da errada impressão de uma palavra, tinha tido um aborrecimento. 

Avancei então com a substância da minha queixa: já tentara, por duas vezes, escrever a palavra “nihilista”, sem e com “h”, e, da última, saíra, “leninista”. Tinha sido desagradável! Não queria apurar culpas, apenas pretendia garantir uma atenção futura, mais rigorosa, à grafia dos artigos que enviava para o jornal.

O homem, por detrás dos óculos grossos, disse-me então, para meu desapontamento, que não fazia a menor do que eu estava a falar, que não se recordava de nenhum artigo meu, e que, confessava, o meu nome não lhe dizia nada, a não ser que era o mesmo de uma família conhecida da cidade. E eu convencido que era um colunista de referência!

E não pareceu minimamente impressionado. Eu, confesso, ali chegados, só queria um pretexto para poder sair. Foi então que ele olhou para mim, comigo com cerca de vinte anos, quarenta e muitos anos mais novo do que ele, e disse-me, sem agressividade, uma frase que guardei: “Desculpe lá, mas quem é que o manda andar à procura dessas palavras ‘caras’ para dizer as coisas?”

Creio que nunca mais escrevi a palavra “niilista”. Até hoje.

quarta-feira, janeiro 26, 2022

Perceção


Todos os anos, é publicado o índice internacional sobre a “perceção” da corrupção no mundo, por país.

Não se trata de um índice da corrupção efetiva detetada, de casos julgados, de condenações. É apenas uma escala feita à luz “do que parece”, sob certos critérios, com toda a subjetividade que um artigo escrito há dias por uma figura da justiça, que aqui se reproduz, bem esclarece. (Não tenho por hábito, por isso não ser correto, reproduzir textos de jornais, mas, por uma vez, peço a indulgência do “Público”.)

Segundo o quadro, num universo de 180 países, há 32 em que “parece” que a corrupção é menor do que em Portugal - pelo que, a contrario, há 147 países do mundo onde a corrupção “parece” ser maior do que entre nós. No âmbito da União Europeia, Portugal situa-se, pela positiva, acima da média.

Estamos mal? Estamos bem? Cada um deduza o que quiser.








A Nato, a Rússia e a Ucrânia


A tensão atual NATO-Rússia parte de duas realidades incontroversas e potencialmente conflituantes entre si.

De um lado, está o tropismo ocidental, muito estimulado pelos Estados Unidos e pelos países saídos da tutela soviética, de explorar a fragilidade de Moscovo, no pós-guerra fria, para "ganhar terreno" o mais a Leste possível. As aventuras americanas na Geórgia e até, por algum tempo, na Ásia Central (neste caso, a pretexto da luta contra o terrorismo), são disso flagrante exemplo.

Do outro lado, está a vontade da liderança russa de resgatar o sentido de derrota que, para o seu povo, constituiu o fim da União Soviética e o declínio, como potência, que daí resultou para a Federação Russa. A chefia de Putin, instituindo um regime autoritário que apenas salvaguarda os "mínimos" democráticos, parece ir bem com o sentimento maioritário de um país que se sente humilhado e, de certo modo, permanece sob um temor de "cerco".

Neste cenário de fundo, projeta-se a Ucrânia.

A Ucrânia é um "Estado-charneira", onde convivem (conviviam?) perceções antagónicas, polarizadas pelos dois "mundos" acima referidos. A razoabilidade aconselharia a que os sinais dados a Kiev, por ambos os lados, fossem no sentido de entender a sua especificidade geopolítica, com vista a combinar, com gestos de prudência, a compatibilidade com essas duas realidades.

O ocidente, na continuidade do tropismo liderado pelos EUA, que atrás referi, estimulou a reversão, num golpe de Estado de rua, de um presidente ucraniano que a comunidade internacional sempre considerou ter sido legitimamente eleito, mas que, aparentemente, tinha o "defeito" de ser pró-russo. Contribuiu assim para a implantação em Kiev de um poder político que logo sonhou com a entrada na União Europeia e mesmo na NATO.

Num ambiente de crescente agressividade face às populações russófilas e russófonas do país instituído pelo novo regime, não foi espanto para ninguém que estas reagissem no sentido de salvaguardar os direitos que tinham desde a independência do país. E parece também de falsa inocência a admiração com que se olhou para o facto da Rússia ter avançado em apoio a essas populações.

A essa manobra ocidental despudorada, que legitimou o atropelo dos direitos das populações russas da Ucrânia, correspondeu, entretanto, um avanço oportunista russo, que aproveitou o ensejo da guerra entre os seu aliados russóficos e o novo poder em Kiev para "deitar mão" à península da Crimeia, cuja tutela ucraniana lhe tinha "ficado atravessada" desde o fim da União Soviética.

O ocidente, aturdido, "bombardeou" então a Rússia com declarações fortes, comunicados graves e algumas sanções - um preço barato para uma zona de imensa importância geopolítica. No chamado "acordo de Minsk", que estabelece as bases para o cessar-fogo na guerra breve entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, a palavra "Crimeia" são surge, o que já representa uma incontestável vitória russa.

Entretanto, o esperado incumprimento do "acordo de Minsk" acabou por suceder. As culpas estarão de ambos os lados, não sendo de excluir que o lado pró-russo, manipulado pelo interesse de Moscovo, seja o mais empenhado em provocar uma confrontação como a que está a ocorrer em torno de Mariupol, cidade dominada pelo exército de Kiev, e cuja tomada pelos separatistas poderia significar, para Moscovo, a concretização do "sonho" de ligação terrestre da Federação Russa à península da Crimeia, até agora uma espécie de "ilha", difícil de manter por via marítima. O aproveitamento do fator climático, isto é, a oportunidade das próximas semanas de tempo razoável para facilitação de ações militares, pode ter aqui algum papel.

Esta tensão localizada, somada a outros incidentes que mostram o que muitos sabiam já há muito - que o "acordo de Kiev" era muito difícil de subsistir -, está a criar uma crescente tensão entre a Rússia e o ocidente, isto é, a NATO, isto é, os Estados Unidos. A União Europeia tem aqui um papel subsidiário, com a Alemanha e França a "fingirem" ser poder, quando, na realidade, estão "mortas" para restabelecerem os seus negócios com Moscovo mas, ao mesmo tempo, não querem desagradar aos Estados do Centro e Leste, sob uma liderança inconstante da Polónia, cuja relação traumática com a Rússia lhes cega a racionalidade.

Estes Estados, dentre os quais os países bálticos alimentam uma linguagem mais belicista, confiam muito pouco na União Europeia e colocam todas as suas cartas na NATO, o que é o mesmo que dizer nos EUA. Porque já perceberam, e bem, que se 'isto der para o torto", só a força militar americana os pode salvar.

O drama essencial nesta conjuntura é, a meu ver, a assimetria nos modelos decisórios.

De um lado está a NATO, sujeita a regras claras, a uma "accountability" democrática, que nunca será facilmente mobilizável por pulsões "jingoístas" de alguns parceiros mais impacientes. Mais do que a sua força militar, que será tanto mais valiosa quanto não tiver de ser usada, a NATO consagra um corpo de compromissos muito fortes. Mas, precisamente porque assim é, a NATO não pode nem deve prestar-se a servir de escudo ao aventureirismo de alguns dos seus Estados, por muito importantes que eles sejam no seu seio. A decisão americana de enviar algumas centenas de pára-quedistas para a Ucrânia representa um desses atos que, sendo um risco americano na essência, configura um risco colateral para toda a Aliança.

Do outro lado está a Rússia. Para além da coreografia constitucional que lhe é própria, a realidade mostra que o poder, em Moscovo, não está sujeito a "checks-and-balances" similares aos do lado ocidental. Ora isso converte a Rússia num poder com contornos muito mais imprevisíveis no seu processo de decisão política, em particular, militar. E, por isso, os riscos potenciais do lado da Rússia são muito mais elevados.

Por tudo isto, o sentido de responsabilidade do lado da NATO torna-se ainda maior. A NATO não deve alimentar uma linguagem confrontacional e deve abster-se de atos de cariz militar, em termos de manobras e outros procedimentos de mobilização de tropas e meios de ação, que possam configurar um modelo de provocação suscetível de ser aproveitado pelo "outro lado". Noutro sentido, a NATO deveria definir no seu seio, de forma muito clara, mas sempre respeitando estritamente o seu estatuto e os mandatos multinacionais aplicáveis, o que entendem ser as "linhas vermelhas" que a Rússia não poderá ultrapassar, sem o que um conflito se tornará inevitável. E fazê-los saber a Moscovo, “alto-e-bom-som”.

A Guerra Fria provou que Moscovo é um leitor atento dos sinais claros que receba por parte de quem está disposto a fazer-lhe frente. O novo poder no Kremlin não é igual ao que existia durante a União Soviética. Por muitos defeitos que tenha, há mesmo que convir que é um pouco melhor.

(Publiquei este artigo no “Observador”, em 2015… há sete anos! Subscrevo-o linha por linha)

terça-feira, janeiro 25, 2022

À volta da Ucrânia


Pode ver aqui, entre os minutos 32 e 44, uma análise às tensões que envolvem a Ucrânia, com notas sobre as atitudes de Moscovo, dos EUA e da União Europeia.

segunda-feira, janeiro 24, 2022

Retratos


Ao longo da vida, tive várias máquinas fotográficas. Achava que, porque me “saíam” quase sempre más fotografias, a culpa era dos aparelhos, pelo que neles fui gastando algum dinheiro, sempre sem préstimo. Com o tempo e com a experiência, cheguei à única conclusão verdadeira: a culpa era toda minha, sou um péssimo fotógrafo!

Como com (quase) todos os defeitos (ou falta de qualidades) que tenho, aprendi a viver e até a ironizar com isso. E deixei de me preocupar, em absoluto, com o assunto. E como passei a usar um iPhone, agora só faço fotografias com aquilo - embora o modelo que uso já esteja a ficar para as calendas. Umas saem assim-assim, outras “de fugir”! É-me indiferente, podem crer!

No sábado, no castelo, tirei esta fotografia. Se acaso a submetesse a alguns amigos que fotografam muito bem, eles diriam, com piedade sorridente: “Não está mal!” E, intimamente, pensariam: “É uma banalidade, tipo “National Geographic” de trazer por casa, só falta um pôr-do-sol para o “kitsch” ser completo! Por que é que este tipo não se preocupa com as coisas da Abcásia ou do Saara Ocidental, que são temas de que ele ainda sabe alguma coisa?” Pois é, mas é o que me “sai”!

Fachos




Ontem, a propósito dos tempos que correm, deu-me para ler “fachos”. No caso, Salazar. Deixo-os com esta pérola. Para lembrar ”do que a casa gasta”…

domingo, janeiro 23, 2022

Boa!


É uma imensa auto-ironia esta frase do meu amigo Luís Marques Mendes.

Do mal o menos


Os “passistas” são o diabo! (Sem graças para o “diabo” que, afinal, não veio com a Geringonça). Esta tarde, a caminho do voto antecipado, encontrei um: “Então o Rio, afinal, não era assim tão mau como vocês diziam! Parecem empolgados!”. Ele: “Quem não tem cão caça com Zé Albino!” Frase felina! 

Teste

Um teste ao vosso sentido democrático: imaginem que, nas eleições de dia 30, o Chega tinha hipóteses de ganhar e que, por uma qualquer moscambilha, tinham possibilidade de impedi-lo. Faziam-no? (E não venham com a falsa simetria com o Bloco, está bem?). Não vale a pena responderem. Pensem!

Vote!

Fui votar por antecipação. Como sempre fiz no passado, mas por maioria de razão nos difíceis dias que correm, agradeci aos membros da mesa de voto a sua disponibilidade cívica para nos ajudarem a praticar a democracia.

Viena


Comprei este óleo, por uma pechincha, há quase 20 anos, num leilão no Doroteum, em Viena. Representa a Stephansplatz, onde o Graben (onde vivi, entre 2002 e 2005) encontra a Kartnerstrasse. 

De memória, passando por lá, há não muito tempo, tentei fotografar uma perspetiva idêntica. Encontrei-a agora nas minhas fotografias. Constato que não é bem a mesma coisa. 

sábado, janeiro 22, 2022

Até que enfim!




Fim de todas as portagens? Claro que sim! E já vem tarde! E também dessa obrigação, iníqua e absurda, que é o ter de pagar a água, a eletricidade, o gás, a renda de casa ou proceder à liquidação de empréstimos aos bancos - esses agiotas! Antecedendo, claro está, essa medida essencial que é a gratuitidade da gasolina e do gasóleo. Algum partido falou disto? É o falas! Estão todos feitos com a Galp, a BP, a Repsol e companhia!

E também ninguém fala, já viram? na necessidade, urgente e imperiosa, da eliminação desse abusivo (e até incomodativo) hábito que é a apresentação da conta no final das refeições, nos restaurantes, ou à saída das lojas, depois de uma simples compra. Então, se precisamos das coisas (se não precisássemos, vá lá!) há direito de alguém vir pedir-nos dinheiro por elas?! É um absurdo, mas ninguém toma uma atitude! “Não se paga nada!“ tem de ser, mais cedo ou mais tarde, a palavra de ordem na vida portuguesa. 

Finalmente, o nosso país aproxima-se, fulgurantemente, do glorioso momento de libertação em que acabará por ser proposta, por algum partido decente, essa medida, básica e mais do que justa, que é o fim definitivo de todos os impostos - um inaceitável açambarcamento dos nossos recursos privados pela sinistra máquina do Estado, para alimentar calões e políticos, uma das maiores violências a que os cidadãos continuam a ser abusivamente sujeitos. É preciso “secar” de vez essa máquina deletéria que é a administração pública!

Têm dúvidas sobre a legitimidade desta medida? Ai sim?! Então por que razão ninguém tem a coragem de levar referendo - esse tão sensato e nada demagógico nem populista método de aferição de vontade coletiva - a simples pergunta: “Quer continuar a pagar impostos?” Têm dúvidas sobre o resultado do referendo? Eu não. Mas eles não têm coragem… Cambada de cobardes, é o que é! 

Anseio, alías, pelo dia em que seja igualmente aprovada a revogação da medida - iníqua, repressiva e iliberal - que é a proibição da caça aos gambozinos, decisão de matriz gonçalvista que, estranhamente, ainda persiste no ordenamento legal nacional. O PAN não gosta? E ninguém se importa com o que pensa a CAP? E dizem-se eles democratas! 

Zambeze


Fui lá, pela primeira vez, já há muitos anos. E gostei. Volto, de quando em vez, sempre sem me arrepender. Fica a meio caminho entre a rua da Madalena e o castelo, por detrás do CDS, um pouco antes do Chapitô, com o qual partilha uma deslumbrante vista sobre Lisboa. O Zambeze apresenta uma bela e competente lista onde, juntamente com a culinária portuguesa, se podem encontrar algumas notas gastronómicas moçambicanas (tal como acontece no Ibo, no Cais do Sodré), tendo aliás ao seu serviço pessoal da mesma origem, que são de uma extrema gentileza e eficácia (mas, hoje, a cozinha esteve um tanto lenta). Come-se ali muito bem, numa excelente relação qualidade/preço. E para estacionar o carro, naquela área? já estou a presumir o leitor a perguntar. É muito fácil. O Zambeze fica no topo de um prédio com um amplo parque de estacionamento, ainda por cima com um conveniente Pingo Doce na base.

A senhora loira


Ao final da tarde de ontem, entrei na livraria Férin. Depois da Bertrand, a Férin é, seguramente, a mais antiga livraria de Lisboa. Nunca me aproximo das suas duas montras sem me lembrar da angústia de Artur Corvelo, a personagem de “A Capital”, de Eça de Queiroz, tentando perceber se o seu “Esmaltes e Jóias” estava a vender bem. Não estava.

As mesas da Férin, desde que a conheço, têm uma lógica de apresentação única, entre todas as livrarias da capital. Oferecem-nos, muitas vezes, belas surpresas, em especial em livros estrangeiros, onde Lisboa é quase um deserto. Ontem, deparei com as memórias de um diplomata brasileiro que me interessaram e que comprei. E, de caminho, lembrei-me de um episódio antigo. Logo perceberão porquê.

Foi um jantar com umas dezenas de convidados, na residência do embaixador egípcio, na Asa Norte de Brasília. Tínhamos chegado ao Brasil há poucos dias, nesse início do ano de 2005. O meu colega do Egito quis ter a amabilidade de nos convidar, quase de imediato, dando-nos assim as primeiras boas-vindas, talvez por indicação do seu antecessor, que era nosso amigo em Viena.

O jantar era um esplêndido "buffet". À entrada, soubemos a mesa que nos competiria mas, mais tarde, quando lá chegados, verificámos que não havia cartões, que era "free seating", o que não nos permitia conhecer com facilidade quem eram os nossos comparsas da refeição. Uma das exceções era eu. A embaixatriz, delicada, convidou-me para ficar à sua direita, como convidado de honra do jantar. No meu outro lado, sentou-se uma senhora, cujo nome e nacionalidade não entendi bem, na rápida e algo atabalhoada apresentação que fizemos, com outros convidados à mistura. À mesa, toda a gente se expressava em inglês. Era uma mulher loira, com a pele muito clara e um sorriso sereno. Uma interessante companheira de mesa, logo pensei.

Durante alguns minutos, conversei com a nossa agradável anfitriã. Depois, na alternância protocolar do costume, voltei-me para a vizinha do outro lado e troquei com ela algumas palavras de circunstância, de elogio sobre a comida, sobre a casa ou qualquer outro tema para encher o tempo. Na mesa, as conversas prosseguiam em inglês. Não tinha percebido a nacionalidade da senhora, mas não lha perguntei, porque não queria dar a ideia de que estivera desatento, quando ela me fora apresentada. Disse cá para mim: com o tempo, lá chegarei! Quantas vezes, na vida, isso me aconteceu! E fui-me divertindo com o processo de adivinhação. 

Desde o início, fiquei com a sensação segura de que devia ser nórdica. Talvez mulher de diplomata (pela idade dela, imaginei que o "partner" já podia ser embaixador), porque tinha um discurso bem cosmopolita. Não entrou no "talking shop" sobre a política local, típico das "chères collègues", pelo que concluí que não era, ela própria, uma embaixadora estrangeira em Brasília (eu, recém-chegado, ainda não conhecia a maioria dos meus colegas). Estava bem vestida, mas num estilo clássico, o que excluía que fosse de uma qualquer ONG. Não tinha também a linguagem viciada de algum pessoal de organizações internacionais. Não lhe notei aquelas "inspirações" quase asmáticas, tipicas das interjeições, que as norueguesas costumam fazer. E não tinha o toque "viseense" do falar islandês. O seu inglês (que não era o típico americano ou outro "nativo", o que excluía que fosse britânica ou irlandesa) não tinha o "arranhado" dos dinamarqueses, nem a tonalidade algo rural que identifica, "por uma pinta", os finlandeses. Fez um comentário simpático sobre qualquer coisa da Rússia, pelo que, de imediato, deduzi que não podia ser originária de um país báltico. E, claro, pela mesma razão, também não seria polaca. Aliás, algumas ideias que perpassavam no seu discurso, com alguma "rightousness" um tanto puritana e pouco "free-marketeer", fizeram-me afastar, em definitivo, a hipótese de ser de um antigo país comunista da Europa. É isso, por exclusão de partes, devia ser sueca! Teria estado em outro posto antes de Brasília ou não? Arrisquei:

- Did you come to Brazil straight from Sweden?

Olhou-me, surpreendida:

- From Sweden? No!

Já não tinha recuo. Tive de perguntar:

- But where are you from?

- From Brazil, of course! 

Aí dei uma gargalhada do tamanho da sala. Revelei que era o novo embaixador português (ela explicou depois que achara que eu era, imagine-se, grego!) e a "loira sueca", afinal brasileira de gema, disse-me que era diplomata, casada com um outro diplomata brasileiro, que estava sentado no outro lado da mesa. E que, curiosamente, o seu último posto fora… Lisboa! Convém ter sempre muita atenção nas apresentações, concluí, uma vez mais.

O livro de memórias que ontem estava à venda na Férin foi escrito por aquele que era então marido da senhora. E que já não o é, nos dias de hoje. Contudo, com insuperável elegância e continuada amizade, o livro também é dedicado à sua antiga mulher. Bonito!

sexta-feira, janeiro 21, 2022

Cabeças no ar



O exercício da diplomacia, em postos de elevada tensão, em países em conflito armado, necessita de escapes que permitam aligeirar os dias, permitindo conferir ao quotidiano, às vezes muito cansativo, rotineiro e exasperante, alguma graça. A imaginação joga assim um papel essencial e uma boa gargalhada, num ambiente pesado e difícil, acaba por ser um bálsamo.

Esta é uma história passada na nossa embaixada em Luanda, na primeira metade da década de 80 do século passado. Pela cidade, havia recolher obrigatório, vivíamos quase todos num mesmo prédio onde também trabalhávamos, Luanda praticamente não tinha comércio nem restaurantes, as batatas, os ovos, o café (!) e muitas outras coisas eram, por cada um de nós, adquiridas em Lisboa e chegavam, todas as semanas, pela ansiada mala diplomática. Salvava-se o sol, a cerveja, o whisky e a amizade. E a idade que então tínhamos.

No pressuposto de que a embaixada de Portugal era a mais bem informada da capital angolana - o que, aliás, era pura verdade - os nossos diplomatas eram muito procurados por colegas ocidentais sobre temas da política local, sobre a situação militar no país, para tentar “tirar nabos da púcara”, “checkar” boatos e, muito em particular para saber “quem era quem” que emergisse na “nomenklatura” do regime, qual a sua importância relativa futura no processo político decisório. Pressupunham eles que nós “bebíamos do fino”! Às vezes sim, às vezes sabíamos tanto como eles! 

Um dia, entrei no gabinete do ministro-conselheiro, José Guilherme Stichini Vilela, substituto temporário do embaixador, que estava à conversa com o seu homólogo britânico. Era um amigo comum e, não havendo segredos entre nós, sentei-me por lá.

Ouvi-o então contar ao homem do “Foreign Office” uma história espantosa, que metia cabeças humanas encontradas num saco, algures nos arredores de Luanda, tudo envolvido em contornos políticos misteriosos e não esclarecidos. Sem mostrar um mínimo de surpresa (essa impassibilidade é a atitude que se espera de um diplomata, mesmo perante a coisa mais absurda do mundo), eu estava intimamente espantado! Aquilo não podia ser verdade! Se fosse, eu teria sabido antes! A juventude tem destas coisas: eu achava então que, por ali, sabia “tudo”, que nada me escapava, da guerra ao “gossip” político de Luanda e à “futungologia”. 

Logo que saído o britânico, seguramente já a congeminar a feitura, para Londres, de um “bem elaborado telegrama” (expressão que, em outros tempos, era muito comum nas Necessidades), perguntei ao José Guilherme o que era aquilo a que eu tinha assistido. 

Ele tinha acabado de levar o “bife” ao elevador, e escangalhou-se a rir. Tinha-lhe apetecido divertir-se, fora tudo uma pura invenção! “Como eu disse ao tipo que era um mero boato que nos tinha chegado, não nos compromete”, retorquiu-me, com uma gargalhada. Acho que contámos o episódio ao cônsul-geral, Fernando Andresen Guimarães, que ainda se lembrará do assunto, mas rapidamente arquivámos a questão.

Passaram umas semanas. Pela mala diplomática, com carimbo de “secreto” e recomendação de que fosse mantida toda a confidencialidade, chegou à embaixada, de Lisboa, em papel sem timbre, numa informação oriunda “dos serviços de informação de um país amigo”, a historieta que o britânico tinha recolhido na nossa embaixada. Sem essa menção, claro. O José Guilherme, entre gargalhadas, ao ler o texto, reagiu: “ Há aqui coisas menos precisas! Ele não foi totalmente fiel à minha informação!”. Foi um momento de galhofa, à custa da “pérfida Albion”.

quinta-feira, janeiro 20, 2022

“A Arte da Guerra”


A reaproximação do Irão à Organização de Cooperação Islâmica, um breve balanço de um ano de presidência de Joe Biden nos EUA e as atribulações de Boris Johnson e do príncipe Andrew no Reino Unido são os temas desta semana na minha conversa com António Freitas de Sousa em “A Arte da Guerra”, na plataforma digital do “Jornal Económico”. 

Pode ver aqui.

David Davis


Ontem, na Câmara dos Comuns, o deputado conservador britânico David Davis lançou uma espécie de “bomba atómica” política, ao apelar, da bancada “tory”, a que o primeiro-ministro Boris Johnson saia de Downing Street.

Davis é um “maverick” da política britânica, uma figura que nunca receia a polémica. Foi o primeiro responsável ministerial para o Brexit, pasta em que ficou famoso por parecer olhar com alguma distância os dossiês técnicos e insistir em proclamações políticas incendiárias. Demitiu-se depois, com estrondo, do governo de Theresa May. Esteve então muito próximo de Boris Johnson, de quem vinha a dar sinais de afastamento nas últimas semanas e que agora parece pretender minar no seio do partido.

Conheço pessoalmente David Davis há mais de 25 anos. No final de 1995, acabado de entrar para o governo de António Guterres como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, fui por ele convidado a ir a Londres. Era então o meu contraparte no governo britânico, como vice-ministro para a Europa. Era uma figura agradável, galhofeira, com a piada cáustica britânica, que dava ares de não se levar excessivamente a sério, o que é sinal de inteligência. É visceralmente anti-europeísta e, por mais de uma vez, deu sinais de ter ambições primo-ministeriais. 

Tinha-o conhecido bem, ao longo desse ano, em várias reuniões do “grupo de reflexão”, organizado no seio da União Europeia, para rever o Tratado de Maastricht. Portugal era representado nesse grupo pelo professor André Gonçalves Pereira, de quem eu era o “número dois”, ao tempo em que tinha o cargo de subdiretor-geral dos Assuntos Europeus.

O convite de Davis ocorreu por ocasião da primeira reunião em Bruxelas a que fui na minha nova função. Durante o almoço com os restantes colegas, Davis disse, a rir: “Um destes dias, os meus funcionários começam a ter ideias de me substituir”. Era uma referência ao facto de me ter conhecido, durante meses, como diplomata e, de um momento para o outro, ver-me no governo. Mas também era apenas uma graça: no Reino Unido, só pode ser membro de governos quem tem um assento parlamentar. Nenhum funcionário do Foreign Office, salvo de abandonar a profissão e conseguir ser eleito, pode aspirar a entrar para um governo. Com uma exceção: se for aristocrata e, por essa via, ter lugar na Câmara dos Lordes.

Na visita que fiz a Londres, Davis recebeu-me com grande simpatia, tendo mesmo feito uma entrevista conjunta comigo na BBC.

O novo governo britânico parecia inquieto quanto ao “novo” Portugal. Tentava perceber se o recém-empossado governo português, chefiado por António Guterres, ia introduzir alguma clivagem, em matéria de política europeia, face à linha seguida pelo anterior executivo, de Cavaco Silva. Alguma coisa devia ter “transpirado” de Lisboa que levava essa perplexidade. Imaginei que fosse a postura muito pró-europeísta de Guterres que estivesse a preocupar os britânicos, que cada vez se viam mais isolados no debate europeu.

Quando, depois de um almoço que me ofereceu no Foreign Office, eu disse a Davis que ia ter um encontro na nossa embaixada com um representante do Partido Trabalhista, vi-o reagir, perplexo: “Vais-te encontrar com os meus adversários?” Eu esclareci: “Quando os vossos ministros forem a Lisboa, asseguro-te que acharemos normal que eles se encontrem com figuras do PSD ou do CSD”. E rimo-nos.

De facto, a preocupação britânica tinha algum fundamento: é possível datar o início dos governos de António Guterres como o ponto de viragem para um crescente afastamento entre Portugal e o Reino Unido, no âmbito da Europa. Embora, depois de 1997, com o governo trabalhista de Tony Blair, tivesse havido alguma aproximação entre os primeiros ministros português e britânico, no terreno de Bruxelas, que me competia gerir, as dissonâncias foram sempre muito grandes, salvo nas questões de Defesa e Segurança e na atitude face à importância de manter o laço transatlântico. Nunca mais se atenuaram, julgo saber.

Veremos agora se Davis, com a sua ousada provocação a Boris Johnson, consegue o mesmo efeito que a célebre intervenção de Geoffrey Howe acabou por ter na queda de Margareth Thatcher, em 1990. Comparando o nível das personalidades envolvidas neste teatro de poder, pode talvez concluir-se que, três décadas depois, os atores têm uma grandeza bem diferente.

quarta-feira, janeiro 19, 2022

O mapa




Encontrámo-nos no Chiado, há dias. Tinhamos iniciado o nosso conhecimento em Angola. Ele pertencia a uma empresa portuguesa, eu trabalhava na nossa embaixada, onde estive colocado entre 1982 e 1986.

Já não nos víamos há muito tempo. Por isso, surpreendeu-me, quando exclamou: “Ainda me lembro do seu mapa. em Luanda!” Por um instante, não percebi. Depois, como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”.

Em Luanda, tinha a meu cargo, além da área da cooperacão, a recolha da informação político-militar. Vivia-se a era de guerra civil, entre o Estado angolano e a guerrilha da UNITA. A nossa “intelligence”, nesse tempo, não tinha por lá ninguém dedicado ao tema. Por isso, cabia-me a mim ajudar o embaixador na elaboração dos relatórios sobre a evolução da situação que se vivia por todo país. Tarefa nada fácil. Salvo escassos voos para capitais de províncias, não nos era permitido sair de Luanda, nem tal era seguro. Tinhamos apenas um consulado em Benguela.

Acresce que o ambiente político bilateral era oficialmente muito tenso, com as relações entre os governos de Lisboa e Luanda marcadas por acusações e bastante desconfiança, potenciada esta pelo facto da UNITA atuar, em Lisboa, com uma liberdade que irritava fortemente as autoridades angolanas. Portugal era, em especial por isso, zurzido com regularidade no “Jornal de Angola”, a voz impressa do regime. 

Valha a verdade que, nos contactos pessoais locais, essa tensão era menos evidente. Os angolanos são dos povos mais cordiais com que contactei e, mesmo nesses tempos complexos, todos criámos amizades, que, no meu caso, até hoje perduram. Digo mesmo mais: se a vida era então difícil para nós, diplomatas, ela era bem mais difícil para a generalidade dos angolanos com quem contactávamos. E, paradoxalmente, era graças a essas pessoas que tudo se tornava um pouco mais fácil. Nunca esquecerei isso.

A embaixada trabalhava assim de forma deliberadamente discreta, procurando não correr o risco de pisar quaisquer linhas vermelhas, à luz dos limites que a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas impunha.

Um diplomata não é um espião, não usa meios ilegítimos, apenas coleta dados que sejam publicamente acessíveis e, naturalmente, procura juntar todos os elementos relevantes que possa recolher ou que, por qualquer via, lhe cheguem. A experiência obrigava a aferir sempre as coisas à luz de dois critérios essenciais: a credibilidade da fonte e a verosimilhança da notícia.

Luanda era um contínuo vespeiro de boatos, às vezes de desinformação. A todas as pessoas da embaixada, do Consulado-Geral ou dos serviços comerciais, chegavam diariamente “notícias”, que era preciso “recortar”, para as transformar em “informação” útil. Retirar de tudo aquilo o que pudesse ser a ”fotografia” da realidade era uma tarefa muito complicada. Mas fascinante.

Interessava-nos mapear constantemente a situação em todo o território angolano, procurando saber com precisão onde estavam cidadãos e interesses portugueses (o que, às vezes, era facilitado pelo respetivo recurso aos serviços consulares), tentando antecipar os riscos que corriam, em função da evolução do conflito no terreno, que era decisivo interpretar diacronicamente. Não podíamos, por exemplo, permitir a colocação de cooperantes, pagos pelo Estado português, em locais que entendêssemos perigosos, independentemente a opinião das autoridades angolanas. Já tínhamos mesmo pagado o preço de erros cometidos nesse âmbito.

Como é óbvio, num quadro de guerra civil, era vital ir acompanhando a relação de forças entre as duas partes, bem como as zonas por onde andavam os militares cubanos que assessoravam as forças armadas angolanas - as “gloriosas FAPLA”, na linguagem mediática oficial e única. E também era importante, no cômputo político desse tempo de Guerra Fria, onde o Portugal de então tinha o seu “lado”, saber onde e quantos “cooperantes” de “países de Leste” por ali andavam, bem como aquilo que faziam.

As conversas com cidadãos portugueses vindos das cidades do interior, nas suas deslocações a Luanda, tornavam-se importantes. Por eles, conseguiamos um retrato do ambiente que se vivia em cada cidade, da sua segurança, dos problemas de abastecimento, do ambiente social que se vivia, da atitude face às autoridades e face à UNITA. Esses portugueses eram uma espécie de “honorable correspondants”, para utilizar o modelo que a França criaram nas suas antigas colónias. Às vezes, perante a ausência de dados sobre uma determinada cidade, eu pedia ao Consulado-Geral: “ Se aparecer por aí alguém de X, liguem-me, porque gostava de falar com essa pessoa”.

Angola é muito grande, as cidades tinham mudado de nome e a guerra obrigava-nos a procurar descortinar zonas que nos eram completamente desconhecidas. Os nossos mapas, bastante precários, eram “do tempo do colono”, como então se dizia por lá.

Um dia, recebi uma proposta a que não resisti. Alguém se oferecia para me vender um grande mapa de Angola já com toda a toponímia atualizada. Era impresso na União Soviética! Preço? Duas garrafas de whisky.

O mapa não trazia nenhum segredo de Estado! Era uma mapa normal, copiado dos anteriores, com o desenho orográfico (montes e rios), as estradas (a maioria, por essa época, intransitáveis, por insegurança e degradação) e os caminhos de ferro (então parados). Ter os novos nomes das localidades dava-lhe um sentido prático inestimável.

Pressenti, contudo, estar na “borderline” das regras da Convenção de Viena. O mapa chegava-me por uma via ínvia, fora do mercado (mas onde é que estava o mercado?) A tentação falou mais alto. Comprei o mapa, coloquei-o na parede do meu imenso gabinete no edifício da então rua Karl Marx (tinha sido antes rua Vasco da Gama e é hoje avenida de Portugal) e, nos primeiros dias, foi um corropio de visitas, sob a minha constante ausência de resposta à pergunta “Onde é que arranjaste isto?”. É que, em toda a Luanda, quase não havias lojas abertas, pelo que era impensável haver um mapa “made in URSS” à venda. E eu não fora entretanto a Moscovo, onde seguramente também o não conseguiria obter.

Por esse tempo, no “Jornal de Angola”, eram publicados, com alguma regularidade, comunicados das FAPLA, onde eram (sempre) anunciadas “estrondosas vitórias” sob as forças da UNITA. Comecei a colocar no mapa pequenas marcas desses combates, com nota das datas. Acontece que a UNITA, em Lisboa, passou a difundir comunicados do teor similar, anunciando as “extraordinárias vitórias” das FALA (as suas forças armadas) sobre o “inimigo”, quase sempre também com datas dos incidentes. O mais das vezes, cada “equipa” reclamava vitória no mesmo “jogo”.

Ora a nós, mais do que quem ganhava ou perdia as batalhas, interessava-nos, como observadores, anotar a geografia dos combates. Porquê? Porque isso ia permitindo perceber que, semana após semana, a UNITA, tal como se pressentia, ia ganhando terreno e aproximando-se de Luanda. Lembro-me de, a certa altura, com base na observação cumulativa desses sucessivos episódios militares, e olhando-os sob a lógica das linhas orográficas por onde a progressão era mais fácil, chegar a prever a iminência de determinados ataques dos guerrilheiros a duas cidades. Que acabariam por ter lugar.

Um dia, tive a visita de um militar angolano no meu gabinete. Vinha por um assunto bem concreto, ligado a uma questão técnica qualquer. Olhou o mapa, aproximou-se e viu as notas com as datas dos confrontos. Antes que ele fosse mais longe em qualquer especulação, disse-lhe que tudo era retirado das comunicações oficiais angolanas e dos comunicados da UNITA. Vi que ficou algo perplexo. Desde logo, com certeza, por eu ter o mapa. Por coincidência ou não, nas semanas seguintes, as notícias divulgadas pelas “gloriosas FAPLA” passaram a ser bem menos detalhadas.

Pouco tempo depois, regressei de Luanda a Lisboa. O meu mapa “soviético”, de que o conhecido que encontrei no Chiado se lembrava, por lá ficou. Ainda ali existirá, quatro décadas depois?

terça-feira, janeiro 18, 2022

Os galos, a capoeira e coisas de pintar a manta

Na história das administrações americanas existe um conflito potencial clássico entre o responsável pelo ”Ministério dos Negócios Estrangeiros” (”State Secretary” que dirige o “State Department”) e o Conselheiro de Segurança Nacional (“National Security Advisor”). São, por assim dizer, dois ”galos” na mesma capoeira da ação externa.

É claro que houve já casos de serena coabitação entre os titulares de ambos os cargos, normalmente feita à custa do apagamento de um deles - e houve também exemplos de transição do NSA para “State Secretary”, mas não o contrário, claro. O facto de se tratar de terrenos “cinzentos”, com responsabilidades que podem conflituar, ajuda bastante à possibilidade de conflito. A circunstância do NSA estar fisicamente mais próximo do presidente tem redundado, muitas vezes, numa sua maior capacidade de influência junto do “chefe”. Mas não é irrelevante que o “State Secretary” tenha, sob o seu controlo, toda a máquina diplomática, em especial externa. Na realidade, a chave para esta equação é e será sempre o grau de audição que cada um desses protagonistas consiga obter por parte do presidente.

Resta acrescentar que, por vezes, surge um terceiro elemento que pode interferir nesta disputa, que é o “ministro da Defesa” (“Defense Secretary”) e, em casos raros, o diretor da CIA, às vezes através de jogos de alianças, que se tornam mais evidentes nas crises ou em tempos mais avançados dos mandatos.

Lembrei-me disto, há pouco, ao ler uma entrevista do NSA Jack Sullivan à “Foreign Policy”. Será que está garantida a sua compatibilidade com o “State Secretary” Anthony Blinken? Não faço ideia, embora a grande experiência de Joe Biden na área externa o torne menos dependente dos dois colaboradores principais nesse domínio, quiçá assim contribuindo para a paz inter-institucional.

E por cá, perguntará o leitor? Nós não vivemos num regime presidencialista. Embora o presidente da República tenha competências na área externa, o governo tem, nesse domínio, um papel central, quer através do ministro dos Negócios Estrangeiros, quer por via do próprio primeiro-ministro - neste caso, cada vez mais no terreno dos Conselhos Europeus, onde o nefando Tratado de Lisboa retirou visibilidade e influência direta ao chefe da diplomacia. Por isso, uma boa articulação entre o ministro dos Negócios Estrangeiros e o assessor diplomático do primeiro-ministo é essencial. E ela, ao que me chega, está bem e recomenda-se.

Mas nem sempre aconteceu no passado. A pequena história da paróquia provou que, em alguns casos, o choque de egos pode tornar-se letal. E quando, pelo meio, existia uma comunicação social que, embora tida por “independente”, era tudo menos isso, chegou a ser possível inventar, em tardes de canivetes curtos, histórias falsas de pintar a manta!

Este blogue

Os leitores atentos deste blogue - e são bastantes, em média mais de 1500 por dia - já se terão dado conta de que por aqui houve, no passado fim de semana, algumas alterações no “lay out”. Talvez se surpreendam se lhes disser que essas alterações foram involuntárias, provocadas por uma intervenção “técnica” desastrada, própria do “nabo” informático que continuo a ser. Estou a tentar regressar à “estaca zero”, mas não prometo resultados para breve, porque as horas são escassas e o saber não abunda.

segunda-feira, janeiro 17, 2022

Horta Osório



Nunca falei com António Horta Osório, mas confesso que há muito que tenho admiração por uma pessoa que, com indiscutível mérito, fez um percurso notável na banca internacional, unanimemente reconhecido. 

Por essa razão, e porque não faço parte de quantos se comprazem com a queda ou os azares dos “poderosos”, fazendo dessa atitude de cedência ao populismo uma filosofia invejosa de vida, lamento a recente crise que envolveu a sua carreira. O extraordinário trajeto profissional de Horta Osório, que está longe de ter acabado, merece melhor.

Em toda esta história, é curioso observar como a persistência cansativa da pandemia, de certa maneira, nos acaba por igualar humanamente. Afinal, nós e esses “poderosos” somos feitos da mesma massa e, perante situações quase limite, acabamos por revelar forças ou fragilidades insuspeitadas.

domingo, janeiro 16, 2022

A polémica do dia

Pronto! Com a decisão australiana sobre o tenista sérvio está criado um folhetim com todos os ingredientes: vedetas, política, teorias da conspiração e até pandemia. O mundo vive para consumir (e discutir) este tipo de histórias. Até à próxima.

Coisas simples

“Olha! Está um belo dia de sol!” Com os anos, dei por mim a valorizar cada vez mais as pequenas coisas positivas do quotidiano, mas, igualmente, a fazer um esforço para tentar preocupar-me o mínimo possível com o que acaso me corre mal, desde que não sejam coisas essenciais. Se chego junto do meu carro e vejo que tem um (novo) risco na pintura, digo cá para mim “que chatice!”, mas tento passar logo adiante, na lógica de que “o que não tem remédio remediado está”. Se perco a carteira, com os documentos, dou a mim mesmo um quarto de hora para me irritar, antes de ”esfriar” e tentar passar adiante, listando o que há a fazer para cancelar o cartão de crédito e ter um novo cartão de cidadão (Bem me basta tê-los perdido! Que me adianta aborrecer-me mais?) Esta técnica de viver, desde há uns tempos, inclui não ver praticamente telejornais, nem ler, nos jornais, notícias com títulos sobre “o que correu mal”. Dou-me conta de que também fujo, cada vez mais, aos “dramalhões” do cinema, às obras (mesmo que primas) angustiadas, às tragédias, aos filmes (mesmo que imperdíveis) e aos livros que “fazem pensar” e a coisas assim. (Alguns dirão: estás a perder coisas essenciais da vida). Por que será que “ando” assim ? Não tenho uma ideia segura, embora pense que talvez tenha a ver com o facto do hoje ser o primeiro dia do resto da minha vida, de estar sol e de eu achar que tenho ainda de aproveitar a tarde, porque a manhã já se foi. Deixo-os com esta filosofia de pacotilha, antes de ir almoçar, com bons amigos, a um restaurante sobre uma praia. Não compliquemos a vida! 

sábado, janeiro 15, 2022

“Lamassa”


É no meio do Estoril, terra com ruas onde sempre me perco. Instalações simples, arejadas, sem luxos. Tem poucos lugares. Ou se vai às 19:00 ou às 21:00. O serviço é atento, profissional, diligente. Tem uma lista de vinhos que surpreende. A conta foi justa. Come-se muito bem no Lamassa, a julgar pela experiência, que há que repetir. Lead: Pelos vistos, há um belo italiano no Estoril.

Campanha

Embora tenha visto poucos debates, mas pelas sínteses que vi e pelo que fui lendo, fiquei com a sensação de que esta campanha eleitoral está a ser esclarecedora e útil, salvo na prestação de alguns cromos histriónicos que tentam compensar pelo basqueiro a rerefação nas ideias.

Tréguas hipócritas

Depois do debate Costa-Rio, assistimos a valentes exercícios de hipocrisia. Pedronunistas mortos por ver Costa pelas costas juraram a pés juntos que o primeiro-ministro tinha arrasado. Passistas em travessia do deserto foram enfáticos nas loas à prestação daquele que detestam ver na liderança. No dia 30, tudo volta à normalidade.

É isto!

 


Quando teremos esta coragem? 

sexta-feira, janeiro 14, 2022

“If you go to San Francisco…”


Quem me mandou a mim procurar o link tão tarde?! Já estão esgotados os voos Madrid-S. Francisco por 190 euros!

Enfim, fiquei a recordar aqui

Juízo independente

No Reino Unido, o comportamento de Boris Johnson está a ser avaliado por uma “senior civil servant”, isto é, uma funcionária pública de nível elevado.
 
É com base nesse juízo, independente, expresso num relatório que vai apresentar, que o futuro daquele governante será avaliado. 

Algum político, em Portugal, admitiria ser avaliado desta forma?

quinta-feira, janeiro 13, 2022

O debate


Gostei muito da perspetiva de Rui Rio sobre a crise ucraniana. Mais claro não podia ter sido! Vi ali o dedo dos conselhos do meu amigo Tiago Moreira de Sá. E que me dizem às reticências de António Costa quanto à posição da Nato sobre os mísseis de curto alcance? Pareceu-me descortinar, no que disse, uma ligeira dissonância com o que o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, afirmou hoje de manhã. Mas pode ter sido impressão minha. Revelador é que nenhum dos dois tenha querido ir mais longe na questão da China. Por que terá sido? E o que é que Rio quis dizer naquela sua referência ambígua a Angola, na sequência da pergunta de Clara de Sousa? Costa interrompeu-o e mudou logo de assunto. Achei estranho. Parecia ”langue de bois” do velho ”bloco central”. No fim de contas, satisfez-me que a política externa, ainda que não muito desenvolvida no tocante aos países da lusofonia, tenha garantido uma parte interessante nos debates.

O novo embaixador americano...

... em Portugal, segundo o Inteligência Artificial.