Há cerca de 55 anos, comecei a escrever para “A Voz de Trás-os-Montes”, um semanário de Vila Real, pertencente à diocese, jornal que, nos dias de hoje, continua felizmente a publicar-se e de que sou fiel assinante.
Por essa altura, havia também na cidade “O Vilarealense”, muito mais antigo, com uma impressão primária, praticamente escrito por uma única pessoa, e a “Ordem Nova”, pertença do partido único, a União Nacional, curiosamente com uma página literária que, ao que parece, terá tido tempos interessantes e criativos.
Eu vivia então no Porto, onde frequentava a universidade. Numa das idas a Vila Real, numa conversa com o padre Henrique Maria dos Santos, diretor de “A Voz de Trás”, como depreciativamente alguns chamavam ao semanário, fui convidado (ou fiz-me convidado) para colaborar no jornal.
Comecei por escrever, por semanas, sobre desporto. Depois, muito rapidamente, passei a temas de política internacional (e, ainda hoje, gosto do que então por lá assinei sobre o tema). Tempos mais tarde, aventurei-me na política interna, usando uma linguagem ambígua, num estilo a tentar ser subtil, que fazia muito o jeito da época, mimetizando o que lia em alguma imprensa de Lisboa, onde passara a viver. Um dia, porém, após ter ensaiado umas graçolas a que o censor local não achou piada, terminei a minha carreira como colaborador. Estávamos aí por 1972 ou 1973. Um ano e tal depois, valha a verdade, sem censura, deixou de ser necessário escrever coisas equívocas.
Terá sido na última fase, a da política interna, que decorreu o que passo a contar.
Um dia, enviei um artigo em que, nem sei a propósito de quê, utilizei a palavra “niilista”. Era uma expressão “pesada” que, no jornal, talvez nunca tivesse sido grafada.
O semanário, creio, saía às quartas-feiras. Porque os correios eram então uma coisa séria, recebi, no dia seguinte, o meu exemplar. Fui ler o artigo e lá estava: “nilista”, só com um “i”. Fiquei aborrecido. Tempos depois, passando por Vila Real, “deixei cair” ao padre Henrique o “incidente”. Devo ter ouvido um “deixe lá!”. E (quase) esqueci o assunto.
Digo “quase” porque, meses depois, voltei à carga com a palavra, em outro artigo. Decidi recuperar a forma antiga do termo, colocando-lhe o velho “h” no meio - “nihilista”. Pensei para mim: na Minerva Transmontana, os tipógrafos, gente tida com uma cultura sempre bem acima da média das pessoas com tarefas similares, devem conhecer essa grafia.
Quando recebi o jornal com o novo artigo, gelei: vinha lá escrito “leninista”! Entrei, confesso, num relativo sobressalto. A palavra não fazia o menor sentido no contexto da frase mas, mesmo assim, naquele tempo de ditadura, como diria Steinbroken, aquela dislexia ortográfica era grave, excessivamente grave.
Por uns dias, esperei uma reação, uma “chamada à pedra”, quiçá uma intimação! Mas nada! Nem o padre Henrique me falou, nem, na ida seguinte a Vila Real, recebi de alguém, sequer da minha família, a menor reação. A hipótese, bem plausível e simples, de ninguém ter lido o artigo - ou, tendo-o lido, ter passado por aquilo “como cão por vinha vindimada” - nem sequer se me pôs. Fiquei, contudo, a matutar na questão.
E decidi passar pela Minerva Transmontana. Não se acedia diretamente à zona das máquinas da tipografia. Havia um balcão em L, onde se faziam encomendas de coisas tipografadas, se compravam cadernos ou se “punham anúncios”.
Pedi para ver o Carvalho, a única pessoa que por ali conhecia, além do Estevinho, um colega da escola primária, sem estatuto para interlocutor na matéria ortográfica do calibre que eu pretendia levantar. Em voz baixa, perguntei ao amigo Carvalho: “Quem é que compõe os artigos da Voz de Trás-os-Montes?” Disse-me que era mais do que uma pessoa, mas que o responsável era o senhor “Fulano” (tenho boa memória, mas não fixei o nome). Pedi para falar com ele. Nesse preciso instante, tive um primeiro lampejo do ridículo da situação que estava a suscitar.
O senhor “Fulano”, um tipo pesado, que lembro de camisa escura e ar de poucos amigos, lá apareceu para a interlocução comigo. Eu estava já um pouco encavacado por ter de lançar o magno tema diante de umas “meninas da Escola Normal” que ali estavam para comprar blocos ou coisas assim. Mas, pronto, já não havia recuo. Chamei-o a um extremo do balcão e, imagino que com voz “sólida”, disse que era colaborador do jornal e que, recentemente, e por virtude da errada impressão de uma palavra, tinha tido um aborrecimento.
Avancei então com a substância da minha queixa: já tentara, por duas vezes, escrever a palavra “nihilista”, sem e com “h”, e, da última, saíra, “leninista”. Tinha sido desagradável! Não queria apurar culpas, apenas pretendia garantir uma atenção futura, mais rigorosa, à grafia dos artigos que enviava para o jornal.
O homem, por detrás dos óculos grossos, disse-me então, para meu desapontamento, que não fazia a menor do que eu estava a falar, que não se recordava de nenhum artigo meu, e que, confessava, o meu nome não lhe dizia nada, a não ser que era o mesmo de uma família conhecida da cidade. E eu convencido que era um colunista de referência!
E não pareceu minimamente impressionado. Eu, confesso, ali chegados, só queria um pretexto para poder sair. Foi então que ele olhou para mim, comigo com cerca de vinte anos, quarenta e muitos anos mais novo do que ele, e disse-me, sem agressividade, uma frase que guardei: “Desculpe lá, mas quem é que o manda andar à procura dessas palavras ‘caras’ para dizer as coisas?”
Creio que nunca mais escrevi a palavra “niilista”. Até hoje.
1 comentário:
Num mundo em que tudo é justo e injusto e em ambos os casos perfeitamente justificável, estou em crer que até é um qualificativo bonito e que o mesmo é verdadeiro para leninista. Quem sabe, não me terá esta sua prosa tão despreendida, levado àconclusão de que, eu próprio, sou mais niilista-leninista do que neo-crente-liberalista?...
Bom dia Senhor Embaixador.
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