sábado, janeiro 22, 2022

A senhora loira


Ao final da tarde de ontem, entrei na livraria Férin. Depois da Bertrand, a Férin é, seguramente, a mais antiga livraria de Lisboa. Nunca me aproximo das suas duas montras sem me lembrar da angústia de Artur Corvelo, a personagem de “A Capital”, de Eça de Queiroz, tentando perceber se o seu “Esmaltes e Jóias” estava a vender bem. Não estava.

As mesas da Férin, desde que a conheço, têm uma lógica de apresentação única, entre todas as livrarias da capital. Oferecem-nos, muitas vezes, belas surpresas, em especial em livros estrangeiros, onde Lisboa é quase um deserto. Ontem, deparei com as memórias de um diplomata brasileiro que me interessaram e que comprei. E, de caminho, lembrei-me de um episódio antigo. Logo perceberão porquê.

Foi um jantar com umas dezenas de convidados, na residência do embaixador egípcio, na Asa Norte de Brasília. Tínhamos chegado ao Brasil há poucos dias, nesse início do ano de 2005. O meu colega do Egito quis ter a amabilidade de nos convidar, quase de imediato, dando-nos assim as primeiras boas-vindas, talvez por indicação do seu antecessor, que era nosso amigo em Viena.

O jantar era um esplêndido "buffet". À entrada, soubemos a mesa que nos competiria mas, mais tarde, quando lá chegados, verificámos que não havia cartões, que era "free seating", o que não nos permitia conhecer com facilidade quem eram os nossos comparsas da refeição. Uma das exceções era eu. A embaixatriz, delicada, convidou-me para ficar à sua direita, como convidado de honra do jantar. No meu outro lado, sentou-se uma senhora, cujo nome e nacionalidade não entendi bem, na rápida e algo atabalhoada apresentação que fizemos, com outros convidados à mistura. À mesa, toda a gente se expressava em inglês. Era uma mulher loira, com a pele muito clara e um sorriso sereno. Uma interessante companheira de mesa, logo pensei.

Durante alguns minutos, conversei com a nossa agradável anfitriã. Depois, na alternância protocolar do costume, voltei-me para a vizinha do outro lado e troquei com ela algumas palavras de circunstância, de elogio sobre a comida, sobre a casa ou qualquer outro tema para encher o tempo. Na mesa, as conversas prosseguiam em inglês. Não tinha percebido a nacionalidade da senhora, mas não lha perguntei, porque não queria dar a ideia de que estivera desatento, quando ela me fora apresentada. Disse cá para mim: com o tempo, lá chegarei! Quantas vezes, na vida, isso me aconteceu! E fui-me divertindo com o processo de adivinhação. 

Desde o início, fiquei com a sensação segura de que devia ser nórdica. Talvez mulher de diplomata (pela idade dela, imaginei que o "partner" já podia ser embaixador), porque tinha um discurso bem cosmopolita. Não entrou no "talking shop" sobre a política local, típico das "chères collègues", pelo que concluí que não era, ela própria, uma embaixadora estrangeira em Brasília (eu, recém-chegado, ainda não conhecia a maioria dos meus colegas). Estava bem vestida, mas num estilo clássico, o que excluía que fosse de uma qualquer ONG. Não tinha também a linguagem viciada de algum pessoal de organizações internacionais. Não lhe notei aquelas "inspirações" quase asmáticas, tipicas das interjeições, que as norueguesas costumam fazer. E não tinha o toque "viseense" do falar islandês. O seu inglês (que não era o típico americano ou outro "nativo", o que excluía que fosse britânica ou irlandesa) não tinha o "arranhado" dos dinamarqueses, nem a tonalidade algo rural que identifica, "por uma pinta", os finlandeses. Fez um comentário simpático sobre qualquer coisa da Rússia, pelo que, de imediato, deduzi que não podia ser originária de um país báltico. E, claro, pela mesma razão, também não seria polaca. Aliás, algumas ideias que perpassavam no seu discurso, com alguma "rightousness" um tanto puritana e pouco "free-marketeer", fizeram-me afastar, em definitivo, a hipótese de ser de um antigo país comunista da Europa. É isso, por exclusão de partes, devia ser sueca! Teria estado em outro posto antes de Brasília ou não? Arrisquei:

- Did you come to Brazil straight from Sweden?

Olhou-me, surpreendida:

- From Sweden? No!

Já não tinha recuo. Tive de perguntar:

- But where are you from?

- From Brazil, of course! 

Aí dei uma gargalhada do tamanho da sala. Revelei que era o novo embaixador português (ela explicou depois que achara que eu era, imagine-se, grego!) e a "loira sueca", afinal brasileira de gema, disse-me que era diplomata, casada com um outro diplomata brasileiro, que estava sentado no outro lado da mesa. E que, curiosamente, o seu último posto fora… Lisboa! Convém ter sempre muita atenção nas apresentações, concluí, uma vez mais.

O livro de memórias que ontem estava à venda na Férin foi escrito por aquele que era então marido da senhora. E que já não o é, nos dias de hoje. Contudo, com insuperável elegância e continuada amizade, o livro também é dedicado à sua antiga mulher. Bonito!

3 comentários:

AV disse...

“Estava bem vestida, num estilo clássico, o que excluía que fosse de uma qualquer ONG” é um entre vários estereótipos que falam por si.
Tirando isso é uma história bem contada, como de costume.

Flor disse...

Adorei como sempre. A senhora loura teve alguma razão porque o Embaixador viu-se "grego" durante a refeição a tentar adivinhar a sua nacionalidade.:) :)

Luís Lavoura disse...

Nós cá temos tendência a identificar o Brasil como um país de mulatos. Desconhecemos que o Brasil é, talvez, o país etnicamente mais diverso do mundo - ainda mais do que os EUA.
Eu conheço brasileiros que, pelo nome e pela aparência, são puros japoneses.

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