quarta-feira, janeiro 26, 2022

A Nato, a Rússia e a Ucrânia


A tensão atual NATO-Rússia parte de duas realidades incontroversas e potencialmente conflituantes entre si.

De um lado, está o tropismo ocidental, muito estimulado pelos Estados Unidos e pelos países saídos da tutela soviética, de explorar a fragilidade de Moscovo, no pós-guerra fria, para "ganhar terreno" o mais a Leste possível. As aventuras americanas na Geórgia e até, por algum tempo, na Ásia Central (neste caso, a pretexto da luta contra o terrorismo), são disso flagrante exemplo.

Do outro lado, está a vontade da liderança russa de resgatar o sentido de derrota que, para o seu povo, constituiu o fim da União Soviética e o declínio, como potência, que daí resultou para a Federação Russa. A chefia de Putin, instituindo um regime autoritário que apenas salvaguarda os "mínimos" democráticos, parece ir bem com o sentimento maioritário de um país que se sente humilhado e, de certo modo, permanece sob um temor de "cerco".

Neste cenário de fundo, projeta-se a Ucrânia.

A Ucrânia é um "Estado-charneira", onde convivem (conviviam?) perceções antagónicas, polarizadas pelos dois "mundos" acima referidos. A razoabilidade aconselharia a que os sinais dados a Kiev, por ambos os lados, fossem no sentido de entender a sua especificidade geopolítica, com vista a combinar, com gestos de prudência, a compatibilidade com essas duas realidades.

O ocidente, na continuidade do tropismo liderado pelos EUA, que atrás referi, estimulou a reversão, num golpe de Estado de rua, de um presidente ucraniano que a comunidade internacional sempre considerou ter sido legitimamente eleito, mas que, aparentemente, tinha o "defeito" de ser pró-russo. Contribuiu assim para a implantação em Kiev de um poder político que logo sonhou com a entrada na União Europeia e mesmo na NATO.

Num ambiente de crescente agressividade face às populações russófilas e russófonas do país instituído pelo novo regime, não foi espanto para ninguém que estas reagissem no sentido de salvaguardar os direitos que tinham desde a independência do país. E parece também de falsa inocência a admiração com que se olhou para o facto da Rússia ter avançado em apoio a essas populações.

A essa manobra ocidental despudorada, que legitimou o atropelo dos direitos das populações russas da Ucrânia, correspondeu, entretanto, um avanço oportunista russo, que aproveitou o ensejo da guerra entre os seu aliados russóficos e o novo poder em Kiev para "deitar mão" à península da Crimeia, cuja tutela ucraniana lhe tinha "ficado atravessada" desde o fim da União Soviética.

O ocidente, aturdido, "bombardeou" então a Rússia com declarações fortes, comunicados graves e algumas sanções - um preço barato para uma zona de imensa importância geopolítica. No chamado "acordo de Minsk", que estabelece as bases para o cessar-fogo na guerra breve entre o governo ucraniano e os separatistas pró-russos, a palavra "Crimeia" são surge, o que já representa uma incontestável vitória russa.

Entretanto, o esperado incumprimento do "acordo de Minsk" acabou por suceder. As culpas estarão de ambos os lados, não sendo de excluir que o lado pró-russo, manipulado pelo interesse de Moscovo, seja o mais empenhado em provocar uma confrontação como a que está a ocorrer em torno de Mariupol, cidade dominada pelo exército de Kiev, e cuja tomada pelos separatistas poderia significar, para Moscovo, a concretização do "sonho" de ligação terrestre da Federação Russa à península da Crimeia, até agora uma espécie de "ilha", difícil de manter por via marítima. O aproveitamento do fator climático, isto é, a oportunidade das próximas semanas de tempo razoável para facilitação de ações militares, pode ter aqui algum papel.

Esta tensão localizada, somada a outros incidentes que mostram o que muitos sabiam já há muito - que o "acordo de Kiev" era muito difícil de subsistir -, está a criar uma crescente tensão entre a Rússia e o ocidente, isto é, a NATO, isto é, os Estados Unidos. A União Europeia tem aqui um papel subsidiário, com a Alemanha e França a "fingirem" ser poder, quando, na realidade, estão "mortas" para restabelecerem os seus negócios com Moscovo mas, ao mesmo tempo, não querem desagradar aos Estados do Centro e Leste, sob uma liderança inconstante da Polónia, cuja relação traumática com a Rússia lhes cega a racionalidade.

Estes Estados, dentre os quais os países bálticos alimentam uma linguagem mais belicista, confiam muito pouco na União Europeia e colocam todas as suas cartas na NATO, o que é o mesmo que dizer nos EUA. Porque já perceberam, e bem, que se 'isto der para o torto", só a força militar americana os pode salvar.

O drama essencial nesta conjuntura é, a meu ver, a assimetria nos modelos decisórios.

De um lado está a NATO, sujeita a regras claras, a uma "accountability" democrática, que nunca será facilmente mobilizável por pulsões "jingoístas" de alguns parceiros mais impacientes. Mais do que a sua força militar, que será tanto mais valiosa quanto não tiver de ser usada, a NATO consagra um corpo de compromissos muito fortes. Mas, precisamente porque assim é, a NATO não pode nem deve prestar-se a servir de escudo ao aventureirismo de alguns dos seus Estados, por muito importantes que eles sejam no seu seio. A decisão americana de enviar algumas centenas de pára-quedistas para a Ucrânia representa um desses atos que, sendo um risco americano na essência, configura um risco colateral para toda a Aliança.

Do outro lado está a Rússia. Para além da coreografia constitucional que lhe é própria, a realidade mostra que o poder, em Moscovo, não está sujeito a "checks-and-balances" similares aos do lado ocidental. Ora isso converte a Rússia num poder com contornos muito mais imprevisíveis no seu processo de decisão política, em particular, militar. E, por isso, os riscos potenciais do lado da Rússia são muito mais elevados.

Por tudo isto, o sentido de responsabilidade do lado da NATO torna-se ainda maior. A NATO não deve alimentar uma linguagem confrontacional e deve abster-se de atos de cariz militar, em termos de manobras e outros procedimentos de mobilização de tropas e meios de ação, que possam configurar um modelo de provocação suscetível de ser aproveitado pelo "outro lado". Noutro sentido, a NATO deveria definir no seu seio, de forma muito clara, mas sempre respeitando estritamente o seu estatuto e os mandatos multinacionais aplicáveis, o que entendem ser as "linhas vermelhas" que a Rússia não poderá ultrapassar, sem o que um conflito se tornará inevitável. E fazê-los saber a Moscovo, “alto-e-bom-som”.

A Guerra Fria provou que Moscovo é um leitor atento dos sinais claros que receba por parte de quem está disposto a fazer-lhe frente. O novo poder no Kremlin não é igual ao que existia durante a União Soviética. Por muitos defeitos que tenha, há mesmo que convir que é um pouco melhor.

(Publiquei este artigo no “Observador”, em 2015… há sete anos! Subscrevo-o linha por linha)

8 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Excelente. Convém rectificar o "são" por "não", na linha ""Crimeia" são surge".
E acrescentar que não surge porque num território onde mais de 80% dos cidadãos falam russo, só pode ser russo.
O gesto de khrouchtchev foi um erro que se paga a prazo.

A NATO serà , nao sei por quanto tempo, o tumor maligno incrustado na Europa, que impedirà o sonho duma Europa de Brest a Vladivostock. E que existe unicamente para proteger os interessses imperialistas americanos, dos vendedores de armas ao Microsoft...

José disse...

Gosto muito do Observador e sou fan da sua rádio.

E acho, sempre, muita graça a ver como toda a gente que desanca no Observador por "ser de direita", "ter patrocínios" e outros demais pecados imperdoáveis, não perder uma oportunidade para lá aparecer.

Agora, até temos a Susana Peralta como comentadora fixa num programa de debate deste "órgão de direita". Buuuuuuuuu....

Luís Lavoura disse...

De facto, este artigo parece muito atual.
Falta nele mencionar uma coisa. As fronteiras entre as repúblicas da antiga União Soviética (tal como entre as repúblicas da antiga Jugoslávia) eram fronteiras meramente administrativas. Não estavam traçadas com o rigor que se exigiria se fossem verdadeiras fronteiras entre nações. Com a independência dessas repúblicas, as fronteiras administrativas foram promovidas a fronteiras nacionais. O que fez, como é usual (o mesmo se passou aquando da descolonização da África), que povos similares ficassem divididos entre dois lados de uma fronteira. O que faz com que alguns ajustamentos fronteiriços possam ser desejáveis. Isso é, em especial, verdade no caso da Ucrânia, que tem regiões que são predoninantemente habitadas por russos (tal como na antiga Jugoslávia havia regiões fora da Sérvia e fora da Croácia que eram predominantemente habitadas por sérvios e por croatas, respetivamente).

Francisco Seixas da Costa disse...

O José está muito equivocado. Talvez porque não leu o texto todo, não entendeu que ele é de 2005… isto é, de há sete anos. E deve tomar nota de que essa de “não perder uma oportunidade de lá aparecer” não se me aplica. O Observador, onde já fui convidado a escrever várias vezes, mostrou-se sempre aberto a aceitar todos os textos que lá quis publicar. Como, aliás, acontece em todos os outros jornais portugueses (nunca tentei “O Diabo”, é certo). E, não, eu não gosto muito do Observador nem sou fan da sua rádio.

Luís Lavoura disse...

Francisco

não gosto muito do Observador nem sou fan da sua rádio

Não frequento o Observador jornal. Mas ouço a rádio diariamente. E, pode crer o Francisco, ela tem alguns programas muito bons. Tem a vantagem de, tal como as rádios públicas, não passar quase nenhuma publicidade.

Luís Lavoura disse...

Joaquim de Freitas

o sonho duma Europa de Brest a Vladivostock

Você parece estar um bocado fixado na mentalidade de de Gaulle. Anos 50 ou 60 do século passado.

Atualmente, no século 21, a Rússia está cada vez mais interessada na China e menos na Europa. Não tarda muito, todo o gás natural que atualmente aquece os europeus estará a ser vendido à China. E os europeus então passarão muito, muito frio.

Joaquim de Freitas disse...

Luis Lavoura: Sem duvida. Sonho gaullista ! Mas a realidade do capital que transforma seres humanos em mercadorias precisa da utopia que os transforma em “ideias”. A outra opção é continuar no caminho da subserviência à sombra do império americano, que vê na Europa um mercado e nada mais. Nem mesmo um parceiro como vemos todos os dias, na maneira como tratam a Europa, da retirada do Afeganistão à Ucrânia.

Entramos em fase eleitoral, também, em França. A escolha política oferecida aos franceses em uma eleição presidencial desesperadamente estúpida à força de nos vender os seus sonhos pela única realidade possível, aquela onde a esquerda social-democrata, os verdes, a direita, a extrema direita todos aqueles que buscam apenas perpetuar o capitalismo, correm para o leste, a pilhagem dos eslavos e da Ásia, o Terceiro Reich como em si mesmo.

Imaginar que um programa social na França ou na Europa possa existir em tal contexto é não ver a guerra que ameaça.

Do sonho gaullista foi questão há alguns meses em Brégançon, na residência de férias de Macron, no menu das discussões com Putin, que recebeu. Como vê não está enterrado. E é normal.

Utopia? Talvez. Mas no dia em que poderemos combinar a nossa riqueza intelectual, natural e científica para afirmar a Europa, a sua cultura e a sua civilização, para contribuir para o desenvolvimento e a democracia de todo o nosso continente e, assim, das outras margens do Mediterrâneo para constituir um dia esse todo, Europa, África e Oriente Próximo, que Roma havia esboçado e do qual nenhuma vicissitude da História jamais havia apagado o contorno.

Europeus, todos somos, de São Petersburgo a Lisboa,, para o bem ou para o mal. Sinto-me mais próximo dum habitante de São Petesrburgo que dum cowboy mal-educado do Arkansas ou do Texas, que nem sabe onde nos situamos no mapa...

Europeus, somos de Brest a Vladivostok porque Tolstoy e Dostoyevsky, Chekhov ou Bulgakov pertencem à nossa herança comum, a este panteão da literatura mundial onde estão entronizados Shakespeare, Hugo, Dante, Kafka ou Cervantes.

Os czares voltaram-se para a França, Alemanha e Itália quando quiseram abrir a Rússia para o mundo. Porquê ?

Lúcio Ferro disse...

Concordo com a globalidade e atualidade do seu artigo. Mas desta feita (2022) é notório que os EUA estão apostados na dramatização e na agressividade, coagindo inclusive os seus "aliados" europeus (veja-se as declarações unilaterais dos EUA sobre o NordStram), menos os que estão sempre prontos a baixar as calças, como o Santos Silva (portugal tb não conta para nada a não ser para fazer coro com esta cáfila de warmongers). Esta administração americana, neste plano e paradoxalmente, é muito mais perigosa do que a de Trump. É fundamental que comntrolem os seus cães de fila nos mídia, na Nato e no regime proto-fascista ucraniano, mas não parecem dispostos a isso, bem pelo contrário, é dar um vista de olhos pelo washington post, pela cnn, sky e no uk pelo guardian (ditos meios de informação "moderados"). Muito perigosa esta situação, pode chegar um momento em que ninguém terá espaço de manobra para recuar. Curiosamente, ou não, a mediação poderá vir da China, essa sim a grande ameaça ao interesses dos eua...

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