quarta-feira, janeiro 19, 2022

O mapa




Encontrámo-nos no Chiado, há dias. Tinhamos iniciado o nosso conhecimento em Angola. Ele pertencia a uma empresa portuguesa, eu trabalhava na nossa embaixada, onde estive colocado entre 1982 e 1986.

Já não nos víamos há muito tempo. Por isso, surpreendeu-me, quando exclamou: “Ainda me lembro do seu mapa. em Luanda!” Por um instante, não percebi. Depois, como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”.

Em Luanda, tinha a meu cargo, além da área da cooperacão, a recolha da informação político-militar. Vivia-se a era de guerra civil, entre o Estado angolano e a guerrilha da UNITA. A nossa “intelligence”, nesse tempo, não tinha por lá ninguém dedicado ao tema. Por isso, cabia-me a mim ajudar o embaixador na elaboração dos relatórios sobre a evolução da situação que se vivia por todo país. Tarefa nada fácil. Salvo escassos voos para capitais de províncias, não nos era permitido sair de Luanda, nem tal era seguro. Tinhamos apenas um consulado em Benguela.

Acresce que o ambiente político bilateral era oficialmente muito tenso, com as relações entre os governos de Lisboa e Luanda marcadas por acusações e bastante desconfiança, potenciada esta pelo facto da UNITA atuar, em Lisboa, com uma liberdade que irritava fortemente as autoridades angolanas. Portugal era, em especial por isso, zurzido com regularidade no “Jornal de Angola”, a voz impressa do regime. 

Valha a verdade que, nos contactos pessoais locais, essa tensão era menos evidente. Os angolanos são dos povos mais cordiais com que contactei e, mesmo nesses tempos complexos, todos criámos amizades, que, no meu caso, até hoje perduram. Digo mesmo mais: se a vida era então difícil para nós, diplomatas, ela era bem mais difícil para a generalidade dos angolanos com quem contactávamos. E, paradoxalmente, era graças a essas pessoas que tudo se tornava um pouco mais fácil. Nunca esquecerei isso.

A embaixada trabalhava assim de forma deliberadamente discreta, procurando não correr o risco de pisar quaisquer linhas vermelhas, à luz dos limites que a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas impunha.

Um diplomata não é um espião, não usa meios ilegítimos, apenas coleta dados que sejam publicamente acessíveis e, naturalmente, procura juntar todos os elementos relevantes que possa recolher ou que, por qualquer via, lhe cheguem. A experiência obrigava a aferir sempre as coisas à luz de dois critérios essenciais: a credibilidade da fonte e a verosimilhança da notícia.

Luanda era um contínuo vespeiro de boatos, às vezes de desinformação. A todas as pessoas da embaixada, do Consulado-Geral ou dos serviços comerciais, chegavam diariamente “notícias”, que era preciso “recortar”, para as transformar em “informação” útil. Retirar de tudo aquilo o que pudesse ser a ”fotografia” da realidade era uma tarefa muito complicada. Mas fascinante.

Interessava-nos mapear constantemente a situação em todo o território angolano, procurando saber com precisão onde estavam cidadãos e interesses portugueses (o que, às vezes, era facilitado pelo respetivo recurso aos serviços consulares), tentando antecipar os riscos que corriam, em função da evolução do conflito no terreno, que era decisivo interpretar diacronicamente. Não podíamos, por exemplo, permitir a colocação de cooperantes, pagos pelo Estado português, em locais que entendêssemos perigosos, independentemente a opinião das autoridades angolanas. Já tínhamos mesmo pagado o preço de erros cometidos nesse âmbito.

Como é óbvio, num quadro de guerra civil, era vital ir acompanhando a relação de forças entre as duas partes, bem como as zonas por onde andavam os militares cubanos que assessoravam as forças armadas angolanas - as “gloriosas FAPLA”, na linguagem mediática oficial e única. E também era importante, no cômputo político desse tempo de Guerra Fria, onde o Portugal de então tinha o seu “lado”, saber onde e quantos “cooperantes” de “países de Leste” por ali andavam, bem como aquilo que faziam.

As conversas com cidadãos portugueses vindos das cidades do interior, nas suas deslocações a Luanda, tornavam-se importantes. Por eles, conseguiamos um retrato do ambiente que se vivia em cada cidade, da sua segurança, dos problemas de abastecimento, do ambiente social que se vivia, da atitude face às autoridades e face à UNITA. Esses portugueses eram uma espécie de “honorable correspondants”, para utilizar o modelo que a França criaram nas suas antigas colónias. Às vezes, perante a ausência de dados sobre uma determinada cidade, eu pedia ao Consulado-Geral: “ Se aparecer por aí alguém de X, liguem-me, porque gostava de falar com essa pessoa”.

Angola é muito grande, as cidades tinham mudado de nome e a guerra obrigava-nos a procurar descortinar zonas que nos eram completamente desconhecidas. Os nossos mapas, bastante precários, eram “do tempo do colono”, como então se dizia por lá.

Um dia, recebi uma proposta a que não resisti. Alguém se oferecia para me vender um grande mapa de Angola já com toda a toponímia atualizada. Era impresso na União Soviética! Preço? Duas garrafas de whisky.

O mapa não trazia nenhum segredo de Estado! Era uma mapa normal, copiado dos anteriores, com o desenho orográfico (montes e rios), as estradas (a maioria, por essa época, intransitáveis, por insegurança e degradação) e os caminhos de ferro (então parados). Ter os novos nomes das localidades dava-lhe um sentido prático inestimável.

Pressenti, contudo, estar na “borderline” das regras da Convenção de Viena. O mapa chegava-me por uma via ínvia, fora do mercado (mas onde é que estava o mercado?) A tentação falou mais alto. Comprei o mapa, coloquei-o na parede do meu imenso gabinete no edifício da então rua Karl Marx (tinha sido antes rua Vasco da Gama e é hoje avenida de Portugal) e, nos primeiros dias, foi um corropio de visitas, sob a minha constante ausência de resposta à pergunta “Onde é que arranjaste isto?”. É que, em toda a Luanda, quase não havias lojas abertas, pelo que era impensável haver um mapa “made in URSS” à venda. E eu não fora entretanto a Moscovo, onde seguramente também o não conseguiria obter.

Por esse tempo, no “Jornal de Angola”, eram publicados, com alguma regularidade, comunicados das FAPLA, onde eram (sempre) anunciadas “estrondosas vitórias” sob as forças da UNITA. Comecei a colocar no mapa pequenas marcas desses combates, com nota das datas. Acontece que a UNITA, em Lisboa, passou a difundir comunicados do teor similar, anunciando as “extraordinárias vitórias” das FALA (as suas forças armadas) sobre o “inimigo”, quase sempre também com datas dos incidentes. O mais das vezes, cada “equipa” reclamava vitória no mesmo “jogo”.

Ora a nós, mais do que quem ganhava ou perdia as batalhas, interessava-nos, como observadores, anotar a geografia dos combates. Porquê? Porque isso ia permitindo perceber que, semana após semana, a UNITA, tal como se pressentia, ia ganhando terreno e aproximando-se de Luanda. Lembro-me de, a certa altura, com base na observação cumulativa desses sucessivos episódios militares, e olhando-os sob a lógica das linhas orográficas por onde a progressão era mais fácil, chegar a prever a iminência de determinados ataques dos guerrilheiros a duas cidades. Que acabariam por ter lugar.

Um dia, tive a visita de um militar angolano no meu gabinete. Vinha por um assunto bem concreto, ligado a uma questão técnica qualquer. Olhou o mapa, aproximou-se e viu as notas com as datas dos confrontos. Antes que ele fosse mais longe em qualquer especulação, disse-lhe que tudo era retirado das comunicações oficiais angolanas e dos comunicados da UNITA. Vi que ficou algo perplexo. Desde logo, com certeza, por eu ter o mapa. Por coincidência ou não, nas semanas seguintes, as notícias divulgadas pelas “gloriosas FAPLA” passaram a ser bem menos detalhadas.

Pouco tempo depois, regressei de Luanda a Lisboa. O meu mapa “soviético”, de que o conhecido que encontrei no Chiado se lembrava, por lá ficou. Ainda ali existirá, quatro décadas depois?

2 comentários:

Flor disse...

Dá-me ideia que se esse mapa ainda existir não terá seguramente o mesmo preço de custo.:)

Lúcio Ferro disse...

Flor, se me permite, eu pagaria de bom grado duas garrafas de bom glenfiddich pelo mapa em causa, raios e coriscos que o senhor embaixador tem cá com umas histórias. ;)

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