Só tinha uma pessoa à minha frente, na fila para a compra de bilhetes da TAP, no edifício que então existia na esquina do Marquês para a Braamcamp, de que há pouco descobri esta deliciosa imagem.
Estávamos precisamente em 1976, que coincide ser o ano da fotografia. O cavalheiro que estava a ser atendido, e para quem eu, até então, mal tinha olhado, disse o nome para a senhora do balcão: “Américo Maltez Soares”.
Há campainhas de memória que soam, face a certos estímulos. Olhei de lado o homem. Era ele, o Maltez. O capitão Maltez. Ali estava a figura que, tantas vezes, de pingalim na mão, eu tinha visto a atiçar a polícia de choque, com um zelo sádico e odiento.
De cabelo curto, olhar penetrante, o Maltez era um mestre da repressão. Devo-lhe umas boas corridas pelas ruas, em diferentes contextos, em manifestações oposicionistas, nos tempos da ditadura que ele serviu com dedicação e empenho.
Foi ele quem, pessoalmente, agrediu à bastonada Fernando Lopes Graça, num 1° de Maio no Rossio. Foi ele quem invadiu a Capela do Rato. Foi ele quem desencadeou a violenta repressão no funeral de Ribeiro Santos e em tantas e tantas outras ocasiões. O Maltez, homem do Exército destacado na PSP, era unha com carne com a Pide, como vim a saber quando, como militar, estive na Comissão de Extinção da dita.
Nos idos de 1969, no hall do ISCSPU (o “U” ainda existia nesse tempo…), tinha-o visto parlamentar com Adriano Moreira e Narana Coissoró, que tentavam evitar que as forças de choque, por ele chefiadas, colocadas em frente ao Palácio Burnay, levassem a cabo a missão de encerrar e selar as instalações da Associação Académica.
Alguns de nós, membros dos corpos gerentes da dita Associação, nessa cena que não terá durado mais de 10 minutos, íamos avançando dilatórios argumentos para atrasar a ocupação, por forma a dar tempo à operação de retirada do precioso equipamento de reprografia, que era transportado em braços que saíam pelo portão que dava para a Travessa do Conde da Ribeira. Tratava-se de material para edição de panfletos e coisas análogas, pelo que era importante evitar que o malta do Maltez lhe deitasse a mão. Não deitou!
E agora, na TAP, ali estava ele, parecia-me que um tanto debilitado fisicamente, com uma senhora jovem ao lado, no anonimato confortável da democracia que ele tanto se esforçara para que não acontecesse.
Pensei cá para mim: “Digo alguma coisa ao homem?” Apetecia-me. Eu estava sozinho, nem sequer podia altear uma conversa num tom que pudesse atazanar verbalmente quem tanto mal e pancada tinha espalhado por Lisboa.
Decidi arriscar. Sem o olhar, fingindo estar a pensar alto, disse, de forma a ser ouvido por ele: “Quem havia de dizer! O capitão Maltez por aqui!” E continuei a olhar para o lado.
O Maltez virou-se, olhou-me com aquele olhar que milhares de democratas recordam, sem dizer uma palavra. Mirei-o então bem de frente, direto nos olhos, algo desafiante (mas nervoso, confesso, porque “old habits die hard”), sem dizer mais nada. Ele voltou-se de novo para o balcão, tratou das suas coisas e saiu, sem me olhar. A senhora da TAP nem se chegou a aperceber do (não) incidente. Mas, satisfazendo a minha curiosidade, disse-me que “aquele senhor ia a Londres, por razões médicas”.
Não sei quando é que o Maltez morreu. Em 2002, pelo que apanhei na net, viu a sua carreira “reconstituída” postumamente por um governo da democracia. Foi promovido a coronel e ressarcido financeiramente dos “injustos” incómodos e percalços que a sua estimável carreira possa ter sofrido pela inoportuna sublevação levada a cabo pelos seus camaradas de armas.
O Maltez pode ser coronel à luz da lógica da Caixa Geral de Aposentações. Para a minha geração será sempre o odioso “capitão Maltez”. E faz parte daqueles capitães de quem só nos lembramos por más razões.
O que uma fotografia antiga nos pode trazer à memória!