Foi há 21 anos, na Finlândia, no final de novembro de 1999.
Eu tinha chegado a Helsínquia, desfeito de cansaço, ido de Seattle, no extremo noroeste dos Estados Unidos, onde tinha chefiado, por alguns dias, a delegação portuguesa à frustrada - e famosa, pelos imensos conflitos de rua - reunião da Organização Mundial de Comércio.
Cabia-me representar Portugal na “troika”, presidida pela presidência finlandesa, que ia ter uma reunião de “diálogo político” com a Índia, em nome da União Europeia.
Semanas antes, numa conversa com Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, tínhamos comentado a anomalia que era a União Europeia ter estabelecido “parcerias estratégicas” com os EUA, Canadá, Rússia, China e Japão, sem que isso acontecesse com a Índia e o Brasil. Essas “parcerias” são o estádio mais elevado de relação política entre as duas partes, colocando quem as titula no topo das prioridades das relações externas da União.
Já na sala da reunião, no ministério finlandês dos Negócios Estrangeiros, tendo ao meu lado Chris Patten, o comissário para as Relações Exteriores da UE, fomos avisados de que a MNE finlandesa Tarja Halonen tinha ficado retida no parlamento, por algum tempo mais. O diretor político finlandês transmitiu-me o pedido da ministra para que, até à sua chegada, eu iniciasse os trabalhos e chefiasse a ”troika”. Assim fiz.
Apoiado nas “speaking notes” preparadas pelo secretariado-geral do Conselho, que disciplina um pouco o nosso intravável improviso, lá avancei pela agenda da reunião. Num dos pontos, o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, que chefiava a respetiva delegação, referiu quanto a Índia lamentava não dispor ainda de um quadro de diálogo mais estruturado com a UE, como aquele que uma “parceria estratégica” poderia proporcionar.
Veio-me então à ideia a conversa com Jaime Gama. Discretamente, perguntei a Chris Patten, sentado à minha direita, o que é que a Comissão acharia se a presidência portuguesa, que teria início dentro de escassas semanas, lançasse o processo de uma “parceria estratégica” entre a UE e a Índia. Patten garantiu-me que, por parte da Comissão, essa seria uma ideia muito bem vinda. Na resposta ao ministro indiano, assumindo por instantes o “chapéu” de futura presidência, anunciei que, se concordassem, Portugal iria testar junto dos parceiros essa possibilidade. Os indianos ficaram encantados!
Menos encantados terão ficado os finlandeses, que terão visto, no anúncio da nossa iniciativa, uma implícita desvalorização do “diálogo político” (um nível inferior de interlocução) que ali se tinham proposto desenvolver. A cara do diretor político finlandês assim o denunciava.
Minutos depois, Tarja Halonen assumiu a chefia da “troika”. No intervalo para o almoço, informada do ocorrido, disse que teria preferido que eu a tivesse consultado antes de tomar a iniciativa. Expliquei que reagira ao comentário do ministro indiano. E aproveitou para sublinhar que, semanas antes, no Dubai, eu tinha também aproveitado uma reunião por ela presidida, com países do Golfo, para propor a realização, em Bruxelas, sob nossa futura presidência, de uma reunião com a UE com o Conselho de Cooperação do Golfo. Ela não deixava de ter alguma razão...
Mas a questão da Índia não ficava por ali. Para o assunto poder ter “pernas para andar”, era preciso obter um acordo unânime dos parceiros. E, para isso, era necessário Jaime Gama usar todo o seu peso político, desde logo, junto dos “key players” dentro da UE - o Reino Unido, a França e a Alemanha.
Telefonei a Gama, ainda de Helsínquia, dando-lhe conta do que tinha feito. Concordou, em absoluto. Disse-lhe que, agora, se tornava necessário ele conseguir “segurar” a questão, logo na semana seguinte, na reunião do Conselho de Ministros “Assuntos Gerais” (como, à época, essas reuniões se chamavam).
Mas nem tudo ia correr como eu pensava. “Não vou poder ir a Bruxelas a esse Conselho. Você é que vai chefiar a delegação portuguesa”, disse-me Gama. Era a noite face ao dia. Gama tinha, com os seus colegas, uma relação de intimidade e confiança, agregada a um peso político, que não se comparava com a minha, que lidava, em regra, com os secretários de Estado, ao meu nível, num “campeonato” diferente.
Mas lá fui a Bruxelas.
Comecei por abordar Robin Cook, o ministro britânico, que, como eu previa, foi muito aberto. Sempre era um membro da Commonwealth a ter o estatuto de “parceiro estratégico”. E disse-me que Patten já tinha falado com ele do assunto. O profissionalismo da diplomacia britânica era uma evidência.
O francês Hubert Védrine, dos três ministros aquele com quem eu tinha uma melhor relação pessoal, foi mais cauteloso. Não tinha qualquer objeção de fundo, mas o “Quai” tinha de apreciar o assunto, à luz dos vários equilíbrios envolvidos.
Restava Joschka Fischer, o “verde” MNE alemão. A corrente nunca passou entre nós, desde o início. Foi “dismissive”, vago, pouco interessado, colocou algumas objeções, inventadas no momento. Aqui iríamos ter um problema, pela certa.
Regressei a Lisboa, chamei o embaixador indiano em Portugal e disse-lhe que seria essencial que, na sua capital, fosse feita, com caráter de urgência, uma forte pressão junto dos embaixadores francês e alemão, para facilitarem a aceitação da proposta portuguesa, que dentro de dias seria formalmente apresentada. Aconselhei-o mesmo a que, se possível, também fosse desencadeada, ainda em Nova Delhi, uma ação de sensibilização juntos dos restantes embaixadores europeus.
Assim poderá ter acontecido, ao observar o modo fácil como, nas semanas seguintes, o assunto evoluiu no quadro institucional de Bruxelas. Graças à iniciativa portuguesa, a “parceria estratégica” UE-Índia ficou consagrada para todo o sempre. (Anos de depois, em 2007, uma nossa iniciativa idêntica viria a fixar a parceria UE-Brasil).
Lembrei-me hoje disto, ao ver anunciado que o encontro da “parceria estratégica” entre a União e a Índia será um dos pontos altos da próxima presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2021.