O triste episódio do dissidente saudita assassinado no consulado de Riade em Istambul trouxe-me à memória um episódio com quase 20 anos.
Estávamos, creio que por esta altura do ano, em 1999, em plena presidência finlandesa da União Europeia. Portugal era membro da "troika" e preparávamos então a agenda para a nossa presidência, que teria lugar no primeiro semestre de 2000.
Por esses dias, fui ao Dubai, como responsável português dos Assuntos Europeus, com a ministra finlandesa dos Negócios Estrangeiros, Tarja Halonen, para uma reunião ministerial entre os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e a UE. O CCG tem como país mais importante a Arábia Saudita, incluindo ainda o Bahrein, o Kuwait, o Omã, os (sete) Emirados Árabes Unidos e o Qatar - este último, nos dias de hoje, em crise política com os restantes, em especial com a Arábia Saudita.
Dos então Quinze países da UE, menos de uma meia dúzia decidira fazer-se representar a nível de membros do governo. Isso foi "premiado" pelas autoridades do Dubai com a oferta do nosso alojamento no fabuloso Burj Al Arab, um hotel em forma de vela, de 7 estrelas, então aberto há muito escassos meses. Os delegados dos países que haviam decidido fazer-se representar por embaixadores ou altos funcionários foram colocados numa unidade hoteleira bastante mais modesta.
A agenda de relações externas prevista para a nossa futura presidência era bastante ambiciosa, mas tinha pouca expressão na área do Médio Oriente. O tema veio à baila numa conversa minha com o MNE do Oman, que eu já conhecia de uma anterior reunião, dois anos antes, em Mascate. "Portugal tinha toda a vantagem em organizar uma reunião com o Conselho de Cooperação do Golfo para o ano. Sabemos que vocês têm uma especial sensibilidade para esta região", disse-me o ministro Al-Zawawi (que está no cargo desde 1997!). Fiquei a pensar no assunto, durante os três dias de passados no Dubai. Chegado a Lisboa, "vendi" a ideia a Jaime Gama e, oportunamente, avisámos os nossos parceiros. A reunião UE-CCG far-se-ia nesse primeiro semestre de 2000.
Hoje, tenho fortes dúvidas sobre se foi uma boa ideia.
Na soturna sala do Justus Lipsius, em Bruxelas, em que nos reunimos, meses mais tarde, com o grupo de ministros do Golfo, todos com trajes brancos que, à nossa vista, pareciam idênticos, que já nos haviam obrigado a um penoso almoço acompanhado de sumos e águas minerais, a discussão, para além de temáticas económicas, acabou por cair, a certo ponto, em temas de Direitos Humanos.
Havíamos tido o cuidado de atentar bem nas notas que o Secretariado-Geral do Conselho nos preparara e Jaime Gama, que presidia pelo lado da UE, adotou uma linguagem de medida firmeza: era preciso não nos afastarmos do "discurso" europeu, mas cada presidência podia adaptá-lo com maior ou menor sabedoria. As mesmas coisas podem dizer-se de formas diferentes. E nós sabíamos fazer isso muito bem, sem a menor perda de eficácia. Mas não podíamos evitar, da parte de algumas delegações, que surgissem intervenções bastante "maximalistas" no tom. E isso veio a acontecer. Alguns ministros que não tinham ido ao Dubai, poupando então a presidência finlandesa, "vingavam-se" ali e dificultavam o nosso exercício.
A reunião, a partir de certa altura, acabou por ser o bom e o bonito! O lado árabe, capitaneado pela Arábia Saudita, reagiu violentamente a algumas das intervenções, invocou "ingerência" nos assuntos internos da região e a reunião descambou num "bate-boca" tenso e incómodo, de certo modo, diluindo os aspetos positivos que, até então, tinham merecido um confortável consenso, nomeadamente em matéria económica. Jaime Gama, com a placa da presidência da UE à frente, voltou-se a certa altura para mim, que chefiava a delegação portuguesa, com um olhar que tinha a seguinte transcrição semiótica: "Que raio de ideia você teve de incluir esta reunião na nossa presidência!". E tinha toda a razão.
As monarquias do Golfo habituaram-se, desde sempre, a uma grande complacência do mundo ocidental pelas suas práticas, quer em matéria de valores democráticos, quer em termos de Direitos humanos, fruto de uma "realpolitik" com cheiro a petróleo que tem sido a regra do jogo do cinismo internacional. O que agora aconteceu no consulado saudita na Turquia não desmerece a prática anterior. A experiência mostra que, depois de alguns sobrolhos carregados, o mundo euro-americano regressará por lá, à cata de encomendas e de bons negócios, colocando os princípios e os valores nos parêntesis da conveniência.