Há dois dias, falei por aqui de boleias. De quando isso era corrente e do modo como essa prática tem vindo a ser afetada pelo correr dos tempos.
Hoje deixo uma memória de uma dessas boleias que “apanhei”. Já não me recordo bem qual a cidade do sul da Alemanha que, naquele dia de século passado, eu pretendia alcançar. Recordo-me que, a certo passo, parou um automóvel, conduzido por um cavalheiro idoso. Num inglês algo macarrónico mas suficiente, confirmou o meu destino e convidou-me a entrar no carro.
Nesse instante, dei-me conta que era uma pessoa que não utilizava os pedais da viatura, devido a uma acentuada deficiência física. Junto ao volante, tinha manípulos para o acelerador e o travão. Terá sido porventura o olhar menos discreto que deitei para tão pouco usuais instrumentos que levou o meu disponível anfitrião a explicar que havia sido ferido na Segunda Guerra, na frente leste. "Foram os russos que me fizeram isto", disse, com uma voz cortante, para logo acrescentar: "E foram também os russos, durante a invasão do meu país, que mataram a minha mulher".
Não me recordo da minha reação, porque havia muito pouco que eu pudesse dizer, perante a tragédia que afetara, de forma tão brutal, a vida aquele homem. O tempo que vivíamos era de plena Guerra Fria, havia ainda duas Alemanhas, com o Muro bem no seu lugar, os soviéticos e a sua influência estavam por muito perto, apenas a algumas dezenas ou centenas de quilómetros.
O meu condutor sentiu-se estimulado a continuar a falar contra os russos, contra o comunismo, contra o executivo alemão da "grande coligação", entre os cristão-democratas da CDU e os social-democratas do SPD, que então governava em Bona (como hoje governa em Berlim), em particular contra o então MNE Willy Brandt, que ele achava "um traidor", um esquerdista "vendido aos vermelhos". Ora eu, à época, até considerava Brandt um excessivo moderado, e a expressão "social-democrata", no nosso jargão político-radical de então, tinha uma sonoridade quase insultuosa. Por uma proverbial prudência, mantive-me calado, evitando qualquer comentário que pudesse aumentar a quase ira que jorrava do discurso prolixo e incessante do meu interlocutor.
"Mas isto vai mudar, você vai ver! Aqui na Alemanha, estamos a organizar um novo partido, o NPD, e vamos dar a volta a isto. Um destes dias, vamos acabar com esses vermelhos e vamos criar um regime novo. A Alemanha é um grande país. Temos de resgatar a nossa memória e deixar de ter complexos quanto ao regime que tivemos durante a guerra, que só foi derrotado pela aliança entre as democracias corruptas do ocidente e os bandidos comunistas. Vou hoje para uma reunião do NPD onde, com gente que combateu na Wehrmacht, mas também já com muitos jovens patriotas, estamos a preparar o futuro. Os Brandts e estes democratas traidores que nos governam vão ter a devida lição".
Importa lembrar, chegado a este ponto, que o NPD foi um partido neonazi criado em 1964, que nunca conseguiu fazer-se eleger para o parlamento federal, mas que chegou a estar representado em assembleias estaduais. A sua influência foi sempre muito diminuta na política alemã e alguma radicalização da conservadora ala bávara dos cristão-democratas, a CSU, de Franz-Josef Strauss, terá contribuído para esse inêxito. Nos dias de hoje, o NPD já não existe, mas há agora a AfD, a Alternativa para a Alemanha, um novo modelo de extrema-direita que começa a ter um preocupante sucesso eleitoral.
Mas voltemos à viagem. Ela estava a ser-me muito incómoda. Ia-me enterrando cada vez mais no banco do automóvel, desejoso que aquilo acabasse rapidamente, perturbado por aquele insólito encontro com uma Alemanha que apenas pelos jornais sabia que existia. Mas, ao mesmo tempo, olhando para o drama pessoal daquele homem, até era levado a entender que ele pudesse pensar da maneira que o fazia. Num certo momento, num cruzamento, tive uma inspiração: disse-lhe que, afinal, tinha mudado de ideias e que ficaria por ali, mudando os meus planos de percurso. Parou, eu retirei a mochila do banco de trás, agradeci a amabilidade da boleia e, quando me preparava para fechar a porta, ouvi-o perguntar "Você disse que era português?" Confirmei, para logo o ouvir de volta: "Que sorte que você tem de viver num país que tem à frente o Salazar. Aquilo é que é um homem!".
Não tenho a certeza, mas, baralhado como eu estava e desejoso de me ver livre do neonazi que, no fundo, tão amável tinha sido para comigo, confesso que não estou nada seguro de não ter dito que sim, que estávamos “felizes” com o paroquial ditador de Santa Comba que nos tinha saído em rifa, o qual, no mundo sinistro dos seus comparsas europeus, até passava por moderado.