sábado, agosto 25, 2018

O Chiado a arder


A notícia caiu de chofre: alguém, de Lisboa, pelo telefone, informou que o Chiado estava a arder. Houve uma reação coletiva de choque, no seio da delegação oficial que eu integrava. Estávamos numa visita de trabalho a Oslo, na Noruega, naquele dia 25 de agosto de 1988. 

Nesse tempo, não havia telemóveis, a única televisão portuguesa não era captável fora do país, nenhum de nós tinha, como era óbvio, um aparelho de rádio de ondas curtas. Os pormenores disponíveis eram, assim, muito escassos. Falava-se da possibilidade do incêndio poder atingir o largo do Carmo e mesmo a Bénard e a Brasileira, levando o Grémio e a Bertrand. Telefonou-se de volta para Lisboa, mas as informações continuavam muito incertas. A ideia de que o Chiado - todo o Chiado! - corria o risco de desaparecer fez-me uma estranha impressão, transmitiu-me uma rara sensação de perda irrecuperável.

Não sou lisboeta. A minha memória do Chiado é quase toda adulta, da cidade para onde fui viver em 1968. De criança e do Chiado, lembro-me apenas da excitação de andar nas escadas rolantes do Grandela, nos anos 50. Para um miúdo ido de Vila Real, onde o único elevador da cidade (do edifício da Gomes) nunca até então funcionara, aquelas ruidosas engrenagens eram o "máximo" da modernidade. No imaginário, as cenas do "Pai Tirano" fizeram o resto. E claro que viria a fixar a memória queiroziana da montra da Férin, onde o Artur Corvelo ia ver se os "Esmaltes e jóias" se vendiam. 

Daquilo que depois viemos a saber que se perdeu, eu apenas era visitante, com alguma regularidade, da Valentim de Carvalho. Fora também cliente episódico do José Alexandre, mas (ironias do destino...) não tenho ideia de alguma vez ter entrado no Jerónimo Martins nem, muito provavelmente, no Martins e Costa. A Ferrari também não fazia parte dos meus percursos, nos anos em que trabalhei pelo Calhariz e em que o Chiado entrava no meu quotidiano. E, de certeza segura, nunca fui cliente da Perfumaria da Moda nem da Casa Batalha, que haviam de ser vítimas irrecuperáveis da tragédia.

Tenho a imagem muito nítida da rara angústia que me atravessou nessas horas, ao pressentir, na desaparição do Chiado, a amputação de uma parte do meu próprio património pessoal de memória. Hoje, em perspetiva, acho mesmo um tanto exagerada a reação emocional que então me atravessou. Quem é de Vila Real compreenderá melhor se eu disser que foi como se me tivessem dito que toda a rua Direita estava a arder. 

Regressado a Lisboa, no dia seguinte, fui, de imediato, ver os estragos. Depois, com o tempo, tudo se tornou mais natural. Passados os anos, como toda a gente, convivi e desesperei com as “engrácicas” obras. À medida que elas se concluíam, fui-me habituando ao "novo" Chiado, embora o resultado final esteja muito longe de ser do meu agrado. Mas isso é uma outra história. 

O que agora me interessa deixar expresso é que a notícia do incêndio do Chiado, em 25 de agosto 1988, faz hoje precisamente 30 anos, passou a ser ser uma das mais emoções fortes de toda a minha vida.

6 comentários:

Anónimo disse...

O repórter da TSF transmitia recorrendo a duas cabinas telefónicas ali por perto :) Outros tempos...

Como lisboeta, do que eu me lembro é dos Armazéns do Chiado. Não havia coisa mais linda no mundo do que aquela secção de brinquedos, para a qual se ia descendo umas escadas à direita da entrada. Grandes vitrinas cheias de soldadinhos alinhados (exércitos inteiros, quase!): nortistas, sulistas, americanos, alemães, ingleses, árabes, soldados da rainha, esquimós, índios e cowboys, as tendas, os barcos, os cavalos... Ah, paraíso! A partir daí, era sempre a perder.

As poucas idas ao Grandella sempre souberam a segunda divisão e o Jerónimo Martins, só servia para os comboios e alguns acessórios para o "action man".

alfacinha disse...

O Chiado a arder ,lembro-me bem porque estava no hotel Borges muito perto do desastre
bjs

AV disse...

Estava fora. Lembro-me do sentimento de estupor e de devastação ao ver as fotos nos jornais e de pensar que a Baixa nunca mais seria a mesma.
Tenho memórias de, em muito pequena, estar com o meu avô, de que gostava muito, na Brasileira, e de ir uns poucos anos mais tarde, às compras ‘na Baixa’, com a minha mãe, em dias demasiado longos que eu achava um suplício. Já quando era estudante, passava por lá quase diariamente, num atalho que usava, subindo a rua do Carmo, atravessando a rua Garrett, e descendo depois a rua do Alecrim em direção aos comboios. Gostava muito desse passeio, que sempre me descontraía, e me dava a sensação de deixar o bulício e o fumo da cidade para trás.
Apesar do meu sentimento inicial na altura do fogo, continua a ser um lugar que me é querido e um percurso que gosto de fazer nos meus regressos a Lisboa. Os fogo não destrói afectos, afinal.

Anónimo disse...

Do Chiado tenho muitas memórias. Uma delas era uma "mercearia fina", de seu nome Martins e Costa", a meio da rua do Carmo, lado direito, ao subir. De todas as vezes que por ali passava, sempre admirava as suas montras, com produtos, alguns importados e outros nacionais, com um "gosto" decorativo excecional. Esta não renasceu!

Anónimo disse...

Do Chiado....
Lembro-me de nos anos 50 a minha Mãe dizer ao condutor do veículo:
Para o Alto do Chiado se faz favor.
E assim foi até aos finais dos anos 50.
Depois foi o parque de automóveis do Largo de S. Carlos quando precisava de deixar o carro para ir às livrarias do bairro, menos a Sá da Costa que não frequentava.
O Chiado também foi as quartas-feiras à noite por via da ópera em S. Calos quando alguns pensavam em ir cear depois do espectáculo.

A partir de 1975 a área do Chiado não era frequentada senão por revolucionários barulhentos. Desde os estudantes de Belas Artes a sindicalistas.
A frequência daquele bairro tornou-o menos frequentável. Por isso apareceu depois as Amoreiras.
Quando do incêndio achei prático ir-se refazer uma parte da área pois já nada era semelhante ao que foi. Hoje.... só lá vou quando é imperioso.

Mas...... eu apenas sou um "cobarde" não-politizado e a minha memória está a ser mais selectiva.

dor em baixa disse...

Quando o desastre ocorreu o Chiado já perdera a sua centralidade lisboeta. O caos em que ficou convenceu-me que o Chiado já não escapava à morte. Poderia nascer ali outra coisa - área de negócios, hotéis modernos, qualquer coisa nova - mas o velho e afamado Chiado acabara para sempre, pensei na altura.
Foi com surpresa e muita satisfação que vi, após as obras, que o Chiado não só sobrevivia como até ganhava nova alma. Com o "boom" do turismo, upa, upa.
Fico muito contente com o sucesso do Chiado.

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