Aquele nosso governante aguentava muito pouco a bebida. Nessa noite, no bar do hotel, nesse país distante, a soma de uns whiskies ao vinho da refeição, que havia sido tomado no restaurante onde o embaixador português nos levara a jantar, com o “jetlag” da viagem a não ajudar, tudo ajudava a fazê-lo sair dos seus limites comportamentais da prudência.
A certo ponto, na conversa em que envolvia a meia dúzia de membros da delegação presentes, dei-me conta de que passara a tratar um deles por tu. Era alguém que ele conhecia há muito pouco tempo e de quem fazia uma substancial diferença em idade. O interlocutor, talvez surpreendido mas sentindo o terreno aberto, abandonou o modo formal de tratamento e passou a usar o primeiro nome do político. E, à medida que ganhava confiança, embora de forma sempre educada, foi-se permitindo atitudes de instantânea, logo imprudente, intimidade.
Eu assistia àquilo divertido, porque, conhecendo ambos melhor do que eles se conheciam entre si, pressentia como as coisas iam acabar. O nosso grupo manteve-se à conversa no bar, por mais algum tempo. Depois, sempre num ambiente de galhofa coletiva, fomos para os nossos quartos.
O dia seguinte ia começar cedo. Quando entrei na sala dos pequenos almoços do hotel, o nosso governante já estava sentado a uma mesa, de cara fechada. Saudei-o formalmente, sentei-me e, em silêncio, iniciei a refeição. O político manteve-se sem dizer uma palavra e eu, nesse tempo sem iPhones para ver as notícias matinais, concentrei-me num jornal qualquer que apanhara no balcão.
Foi então que deu entrada na sala o colega com quem o governante confraternizara ruidosamente na noite anterior. Conhecido “blagueur” e brincalhão, o recém-chegado vinha, claramente, no prolongamento do “mood” da noite anterior. Trazia mesmo umas piadas engatilhadas e logo se dirigiu ao político de modo informal.
Embora o dia estivesse límpido, pressenti que se ia levantar borrasca. E eu próprio me levantei, em busca de ovos mexidos com bacon.
Estava a meio dessa magna tarefa quando ouvi, vindo da nossa mesa, um tom de voz a subir. Olhei e vi que o governante deixara o seu mutismo e se dirigia com coreográfica rispidez ao meu colega de delegação, sob o olhar espantado de outros hóspedes. Era uma questão de serviço, um documento que faltava ou uma diligência que não fora feita, já não sei bem. Optei por ganhar algum tempo junto às vitualhas, para evitar a zona de conflito. Mas não foi preciso. Num ápice, o nosso político zarpou da mesa e saiu da sala.
Fui-me então sentar, como se nada tivesse ocorrido, mas vi que o meu colega estava ainda lívido da reprimenda recebida. “Tu viste-me este gajo! Agora deu-lhe para me desancar sobre uma coisa de nada. O tipo dormiu mal ou quê? Tu que o conheces melhor, por que diabo achas que ele reagiu assim?”. Estava siderado, chocado. “Ainda ontem, lembras-te, o gajo parecia um porreiraço, nos copos, lá no bar, e agora passa-se!”
Quando as pessoas não percebem, e se queremos ser úteis, temos de dizer-lhes. Eu disse: “Meu caro, conheces as regras do “one night stand”* ? Aplicam-se aqui. O que aconteceu ontem, ficou lá. Hoje, já é o dia seguinte”.
O meu colega era (e é) um tipo teimoso, mas rápido. Minutos depois, vi-o a tratar o político com a necessária distância. E a nossa visita àquele país acabou por correr muito bem, não achas, João?
(Nota: se acaso o leitor não souber o que é o “one night stand” deve ir ao Google)