domingo, dezembro 20, 2015

O dr. Ladislau e a bela russa da bomba de gasolina


A jovem, que há pouco, na noite fria e chuvosa de Amarante, atestava o depósito do meu carro, falava um português irrepreensível. Os seus olhos, contudo, não enganavam.

- De que país é? 

- Sou da Rússia, disse com um belo sorriso.

Não estranhei. Mas, atentando para o rasgado dos olhos, inquiri:

- De que região da Rússia? 

Talvez para não entrarem em demasiadas explicações, estou preparado, desde há muito, para ouvir, dos imigrados russos em Portugal com quem me cruzo, a resposta "de Moscovo" ou "da região de Moscovo". Ela não foi por aí mas, sempre a sorrir, ainda tentou afastar a minha curiosidade:

- Sou de uma ilha ...

- Em que zona? 

Deve ter estranhado um pouco, mas foi ainda vaga:

- É uma ilha a norte do Japão.

De repente, a minha memória deu um "salto" de mais de meio século. De uma conversa numa tarde, no Centro de Estudos Geográficos do Liceu Nacional de Vila Real, aí por 1964. 

O Centro tinha sido criado por iniciativa do Dr. Ladislau, um professor de Geografia oriundo de Braga, que com isso dera alento a um grupo de interessados pelo tema, sob o imparável impulso do Sérgio Moutinho, que já se foi há muito. Dele faziam parte o José Barreto, o Elísio Neves, o Carlos Leite, o Ribeiro e mais dois ou três. Reuniamo-nos e discutíamos, publicávamos um boletim impresso na Minerva Transmontana, o "Meridiano". Graças a esse extraordinário professor, um homem que via muito mal mas que sabia como ninguém motivar o nosso interesse e a nossa curiosidade, conseguíamos então romper a modorra da vida chata de um liceu de província.

- É de Sacalina? 

A jovem quase que parou o que estava a fazer e, olhando para mim, agora com os olhos rasgados muito abertos de espanto:

- Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.

O frio da noite e a pressa dos passageiros não me deu tempo para lhe perguntar se, como dizia Tchekov, "em Sacalina não há clima, só há mau tempo", razão porque foi, durante muitos anos, um sinistro lugar de degredo. E vinha ainda muito menos a propósito dizer-lhe que foi graças a uma conversa com o Dr. Ladislau, que um dia me falou dos conflitos da Rússia com o Japão, em tempos a propósito de Sacalina e até hoje sobre as Curilhas, que eu ouvi falar pela primeira vez da ilha onde ela nascera, que era mesmo capaz de apontar o seu lugar no mapa e que agora, meio século mais tarde, estava ali a fazer uma "figuraça", na bomba de gasolina da Prio em Amarante, sob a chuva miúda do inverno do Marão, à saída para Padronelo. 

Se têm dúvidas, passem por lá, falem com a bela "sacalinense", a quem há pouco me esqueci de perguntar o nome.

(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)

sábado, dezembro 19, 2015

Mesa desmarcada


Já recebi vários remoques telefónicos e presenciais: "então este ano não organizaste o jantar da Mesa Dois?!". É verdade, por uma vez, deu-me uma de cansaço e decidi não meter mãos à obra (porque é obra!) e reservar um espaço (com estacionamento possível, onde se coma bem e barato, onde se possa fumar, com lugar para cerca de 80 pessoas), escolher o menu e os vinhos, contactar as cerca de oito dezenas de pessoas que, desde 2004, com falhas pontuais e ausências definitivas pela lei da vida, fui reunindo, uns dias antes do Natal. Depois, até à hora do repasto, era sempre preciso "check, re-check and check again", porque há os (e as) que acham que aquilo é uma espécie de "cash & carry", onde, se nos dá na mona ou na preguiça, se pode deixar de ir à última hora. 

A "Dois", a "Mesa Dois" desse excelente e inigualável bar que é o Procópio, nos últimos anos, já não é o que era. O Nuno Brederode Santos, seu imorredouro patrono, deixou de aparecer por lá. Essa ausência certa conduziu à rarefação dos "habitués", antes certos de aí poder ouvir a ironia divertida dos seus comentários, a animar uma tertúlia que fez história. 

Já nem sequer às 4ªs feiras, dia da convocatória residual regular (a 6ª feira é mais optativa), a mesa surge composta: apenas uns escassos e nem sempre garantidos parceiros por lá surgem, para confirmar a regra das crescentes ausências. Nem eu próprio consigo estar à altura dos mínimos, confesso. Além de que há amigos cujo estado de saúde impede ou dificulta aparecer, bem como outros que entretanto se foram. A última baixa definitiva foi o José Fonseca e Costa.

É verdade que a "Dois", por definição, tem vocação para ser uma trincheira política. O 25 de abril deu-lhe os alvores do seu destino, o cavaquismo forneceu-lhe por uma década um grande mote, ao passo que os "pafiosos" da "troika" não conseguiram nunca alegrar-nos o espírito crítico para além de um nível de adjetivação banal. Agora, uma vez mais com amigos chegados ao poder, a "Dois" perde algum estímulo crítico. Há sempre que esperar pelas crises para poder vir ao de cima o nosso melhor...  

Até lá, repito esta elegia nostálgica do (poeta) António Dias:

Elegia para a Mesa Dois do Procópio

"Não mais, amigos, já não existe
À roda da Dois a alegre companhia..."
Assim clamava, emocionado, o ancião.
Era quarta à noite. Do velho triste
Uma lágrima a alva barba humedecia,
Fazia tremer-lhe a voz a emoção.

"Lá nasceram poemas e amores,
Se reformou a Pátria, surgiram filosofias;
Esgrimiram-se epigramas, brilharam teses,
E litros de whiskey, de gin e de licores
Fluíam entre névoas de fumo. Alegrias
Quase sempre; tristeza às vezes, 

Mas sempre o cintilar da amizade.
Calou-se melancólico e um suspiro
Agitou-lhe o peito venerando. Amargurado,
O senhor Luís rasgou, com gravidade,
O velho letreiro, qual histórico papiro,
Onde se lia a palavra "Reservado".

Ao balcão, a Alice esconde a comoção.
É a crise, claro, o euro, o mercado
Tem muita força o que tem que ser.
Um bando adolescente e trapalhão 
Já desgasta o veludo avermelhado.
A mesa Dois acaba de se render.

Jamais o Procópio escapará à dor,
Terá a sua natureza amputada.
Mas é assim: o tempo tudo arrasa.
Afasta-se, solene, o provecto orador.
O cajado nodoso ajuda-o na jornada
Em direcção ao Restelo, onde é a sua casa.

O palhaço triste

Ando a falar demasiado do MRPP, dizem-me alguns amigos, embora outros, pela certa, achem que nunca será demais referir esse marco marxista-leninista da vida política portuguesa que lhes alimentou os sonhos. Mas é verdade: tenho destacado por aqui o "emeérre", nos últimos tempos, com alguma frequência. Nunca por lá tendo andado, sinto uma ternura geracional por essas organizações que coloriram os dias e as paredes do Portugal revolucionário. A diverte-me analisar o percurso e o modo como gerem esse seu passado todos quantos abandonaram esse "farol da luta da classe operária". Deu-me, além disso, imenso gozo ler sobre as polémicas que recentemente atravessaram os resíduos daquele partido, cuja linha política tem hoje tanto de caricato como de bizarro.

Por anos, como é sabido, Arnaldo Matos foi a cara do MRPP. Depois, por tempos, pareceu desaparecido em inação. Aos poucos, contudo, deu-se o seu regresso à vida social de Lisboa. Engravatado a aperaltado preceito, com ar e barriga de bom burguês, mantendo apenas aquele bigode para o qual foi expressamente criada a palavra façanhudo, vi-o surgir na assistência de alguns colóquios e conferências em que participei, tendo sempre ao lado de Garcia Pereira, "líder" que lhe sucedera nas funções. Nunca lhe então ouvi uma única palavra e, constato agora, só me posso felicitar por isso. 

A razão porque hoje cito Arnaldo Matos é muito menos simpática. É que, por declarações recentes que fez, se atesta já o irreversível deperecimento intelectual da figura, único modo de ser possível desculpar as anormalidades - e meço as palavras - que disse, referindo-se aos atentados de Paris e aos respetivos autores. Se não vejam:

- "É o imperialismo a causa real, verdadeira e única do ataque a Paris. Agora os franceses já sabem que a guerra de rapina movida pelo imperialismo francês em África e no Oriente Médio tem como consequência inevitável a generalização da guerra à própria França, à capital desse mesmo imperialismo moribundo". 

- "Não só não foi um massacre, como foi um acto legítimo de guerra; não foi cometido por islamitas, mas por jiadistas, isto é, combatentes dos povos explorados e oprimidos pelo imperialismo, nomeadamente francês; e acima de tudo – coisa que estes revisionistas de pacotilha intentam ocultar – foi praticado por franceses, nascidos em França, vivendo em São Dinis e noutros bairros do Paris suburbano. Pois é, os combatentes de Paris não são islamitas estrangeiros; são irmãos de sangue do filósofo Alain Badiou e de outros ideólogos do Partido Comunista de França (marxista-leninista-maoista)".

- "a lógica profunda do ataque a Paris não é o terror, não é o horror, não é a crueldade; a lógica é a lógica da guerra, dente por dente, olho por olho, até derrotar o inimigo. Terror, horror, crueldade são os ataques aéreos, de mísseis de cruzeiro, de artilharia, de drones, conduzidos pelo imperialismo, designadamente francês, sobre os homens, os velhos, as mulheres e as crianças das aldeias e das cidades de África e do Médio Oriente, para roubar-lhes o petróleo e as matérias-primas. Os atacantes de Paris nem chocolates roubaram: levaram a guerra aos franceses, apenas para acordá-los: para lembrar-lhes que o governo e as forças armadas do imperialismo francês estão, em nome da França e dos franceses que julgam ter o direito de se poderem divertir impunemente no Bataclan, a matar, a massacrar, a aterrorizar com crueldade inenarrável os povos do mundo".

- "Os direitos do homem, os direitos humanos fundamentais são uma exigência do mercado capitalista, para poder explorar, sob uma cobertura jurídica, os operários. Os direitos humanos fundamentais são uma forma ideológica de dominação dos operários, porque respondem a uma necessidade do modelo económico hegemónico do capitalismo e tendem à reprodução desse modelo". 

Quando se chega a este estado de insanidade, o internamento em instituição psiquiátrica é o mínimo que se pode recomendar. Mas, em período natalício, talvez seja de aproveitar Arnaldo Matos para os circos de inverno que por aí andam, para renovar a classe dos palhaços. Neste caso, o palhaço triste. 

Muito lá de casa...

Um dos candidatos que estas eleições presidenciais oferecem à escolha dos portugueses é uma figura que, durante anos, entrou na nossa casa com grande frequência. Não tocou à porta, mas esteve connosco na sala, conversando sobre tudo e sobre todos, de futebol a política, de “faits divers” às finanças, da justiça aos espetáculos, da lombada de livros às questões de saúde, etc, etc.

Sobre tudo tinha ideias, de tudo parecia que sabia um pouco, num modelo a que os italianos chamam de “tudólogo”. Diz coisas certas? Claro que sim, a par de outras que são tão discutíveis como as que qualquer um de nós costuma ter. Educado, inteligente, informado, às vezes um tanto “pela rama”, outras um pouco mais profundo, o tal candidato provou que quase nada do mundo lhe era alheio. Ou parecia ser. A sua melhor definição foi-me dada um dia por um amigo: “estou quase sempre de acordo com ele, exceto quando conheço bem os assuntos!”
No cenário de fundo da vida da esmagadora maioria dos portugueses adultos, o tal candidato é uma figura que nunca esteve distante. Os mais velhos lembram-no como jornalista, outros como político ou como jornalista político, muitos outros simplesmente como professor – e nós sabemos como ser “professor” sempre por cá funciona subliminarmente como um fator de prestígio para credibilizar o que se diz. A maioria dos contemporâneos recordá-lo-á como opinador, primeiro na rádio, depois nas televisões, nestas tendo vogado entre canais. No desporto, não é do Benfica nem do Sporting, antes pelo contrário, não sendo também do Porto. Todos o identificam com um partido mas também já o ouviram criticar, sem exceção, os líderes desse mesmo partido. Todos? Todos! Mesmo que ele próprio tenha também cumprido um dia essa função…
Para muitos dos portugueses, esse candidato sugere a intimidade que temos com um primo distante, daqueles que irrompe nos casamentos ou nos batizados. Não o conhecemos bem, mas é insinuante, simpático e dialogante. Conta anedotas, é espirituoso, desenha uma presença agradável, sai-se com tiradas inteligentes, às vezes iconoclastas, as mais das vezes jogando no “mainstream” do senso comum. Algumas mulheres acham-lhe piada, alguns homens apreciam-no como divertido e eternamente bem humorado. Todos o tratamos pelo primeiro nome, claro. É muito lá de casa…
Há uma década, quando Cavaco Silva foi candidato a presidente, recordo-me do modo complacente como alguns, mesmo nele não votando, encararam com resignada aceitação a sua eleição, não obstante ser “do outro lado”. Dizia-se que era um homem “rigoroso”, “austero”, uma figura "em quem se podia confiar”. Depois, foi eleito e saiu-nos na rifa o que temos visto!
Imaginem agora que outro alguém, também “do outro lado”, mas a quem ninguém se atreverá a colar os qualificativos sossegantes que ingenuamente concedíamos ao presidente cessante, volta a ocupar Belém! Ah! “Mas este tem muito mais graça, é divertido! Vai ser um tempo interessante!” Pois, pois! Esperem pelas crises, pelos dias em que as coisas não estejam a correr bem! Depois não me venham dizer que não avisei!    
(texto publicado no Acção Socialista)

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Encharcada


- Alinhas comigo numa encharcada, a meias?

A proposta de um amigo, no final de um divertido almoço pré-natalício de "implicados" no 25 de abril, com almirantes e generais à mistura, não foi suficiente para me seduzir. Tenho de poupar os meus excessos de trigliceridos, colesterol e glicose para os abusos nas festas que aí vêm. De seguida, desaparecidos que sejam os efeitos mais perversos, lá para meados de janeiro, vou ter de fazer a rotineira visita ao cardiologista. 

Gabava eu esta minha "heróica" resistência a outro amigo e este logo me disse:

- Tu vais ao cardiologista depois do Natal? Eu já fui antes. Melhor ainda: desde há uns anos vou sempre a três.

- A três cardiologistas?

- Sempre! É que nem todos te dizem o mesmo. Eu sigo sempre aquele que me recomenda menos cuidados...

Pensando bem, devia ter comido a encharcada no Clube Militar Naval, quanto mais não fosse para acompanhar o excelente espumante de Freixo de Espada à Cinta que um dos convivas ofereceu à "tropa". Como dizia o outro: é o que se leva desta vida... Ou, como um dia também ouvi, só se vive uma vez e esta parece que é a última.

Ventos da pequena história


Não faço ideia se a imprensa internacional destacou o assunto na agenda das curiosidades, mas seria imperdoável se não tivesse ficado bem registado o caso da desistência de uma candidata às eleições presidenciais portuguesas, alegadamente por virtude da documentação para a instrução da respetiva candidatura ter sido levada pelo vento que assolou os Açores. Creio que nunca o famoso anticiclone tinha tido uma intervenção política tão significativa...

Verdade seja que, neste morno tempo de campanha presidencial, este terá porventura sido o seu episódio mais excitante. Ao que vou lendo, os candidatos dedicam-se a refeições e conversas corporativas, transportados por ondas grisalhas de apoiantes, perante um país que parece esvaído num cansaço político, depois da saga da indigitação governativa. Nada que deva desagradar muito ao putativo incumbente que dispõe da mais óbvia notoriedade mediática, que entra na semana natalícia com expetativas elevadas, devendo, no entanto, cuidar em não ser filmado a comer bolo-rei, como sucedeu a alguém há uma década, embora tenha sido a nós que saiu a fava...

Imagino que a António Costa não apeteça falar muito de eleições presidenciais. Como tem sido triste regra recente, o PS balcanizou-se entre candidatos que se reclamam da área do partido, conduzindo este a mais uma situação embaraçosa. Não optar entre os voluntários pareceu-me ser uma atitude sensata, embora também possa ser lida como desvalorizante da escolha. E, como o passado recente provou à saciedade, o lugar tem muito maior importância nos equilíbrios internos do que por vezes se supõe.

Passados que foram meses de excitação e combate político, fica-se com a sensação de que o país está a viver um tempo de desejada “acalmação”, não obstante ainda emerjam, aqui ou ali, histriónicas ressacas, típicas das saídas inesperadas do poder. Atentas as expetativas baixas com que o novo executivo foi recebido, a autoridade serena do primeiro-ministro, a qualidade muito respeitável da sua equipa e o inesperado “bom comportamento” dos seus companheiros de jornada induz uma imagem de estabilidade em que, há semanas, ninguém apostaria.

Entramos daqui a dias em 2016. Se o défice deste ano se aguentar, se o Banif acabar por não correr mal, se os patrões aceitarem pacificamente o salário mínimo, se o orçamento vier a estugar ambições excessivas e a fazer sorrir Bruxelas, quem sabe se tudo não pode vir a correr pelo melhor?! Ah! Mas é muito importante que o senhor Draghi tenha muito boas festas para que nós todos tenhamos um ano novo feliz.

quinta-feira, dezembro 17, 2015

A Europa, a Turquia e os refugiados


Star Wars


Um dia de 1980, o "número dois" americano em Oslo, Paul Bremer (que iria tornar-se "infamous" quando foi o primeiro "administrador" do Iraque, depois da invasão de 2003), convidou-me para uma sessão privada do filme "The Empire Strikes Back", o segundo filme da série "Star Wars", que tinha acabado de sair na América e de que ele tinha uma "advanced copy".

Recordo-me bem desse fim de tarde. Éramos aí umas 20 pessoas e eu passei uma "seca" inenarrável, até se desembocar nas inevitáveis pizzas com cerveja ou Coca-Cola, com que se fechou a noite. Detesto ficção científica, não tinha visto o primeiro filme da série (como não vi nenhum dos posteriores), não tinha a menor curiosidade por aquelas figuras, que todos os circunstantes conheciam de cor e salteado. A série "Star Wars" não me diz rigorosamente nada. 

Ontem, ao ver a excitação que por aí vai com o sétimo filme da série, dei por mim a ter pena de mim: por que diabo nunca consegui entusiasmar-me com a ficção científica, seja em filme, seja em livros? Com uma imensa técnica a servi-los, reconheço que esses filmes são de uma beleza plástica fantástica, como tenho notado nos extratos que observo. Mas levar a sério aquelas figuras de capa e espada luminosa? Pronto, já sei, a culpa tem de ser minha... 

Sindicalismo diplomático

Ontem, no palácio das Necessidades, foi reeleita a lista para a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), a cuja assembleia geral presido. Embora com algumas "baixas" que a conjuntura determinou, a lista eleita no ano passado dispôs-se a continuar por mais um mandato. Nem tudo aquilo a que nos propusemos foi conseguido (longe disso!), mas creio que, na atitude e na determinação, foi possível continuar a afirmar a vontade dos diplomatas portugueses de verem crescentemente dignificado o seu papel no seio da Administração Pública. 

Contrariamente a visões caricaturais preconcebidas, os diplomatas não reivindicam prebendas ou tratamentos de exceção, apenas por uma questão de prestígio ou estatuto protocolar. Com toda a legitimidade, desejam que uma carreira cujo acesso se faz através das mais exigentes provas de toda a função pública, que tem uma rotação de locais de exercício laboral que não tem par, que obriga a uma espécie de "dupla exclusividade" (pelo facto do cônjuge ter frequentemente de deixar de trabalhar), que implica um inconveniente saltitar de escolas dos filhos, bem como muitos outros aspetos específicos de condição profissional (necessidade de manter residência simultânea em Portugal e no estrangeiro, sujeição a sistemas de saúde diversos, frequentes riscos excecionais de segurança, etc), seja objeto de um estatuto profissional mais completo e cuidado, que comporte regras transparentes, que reduza a discricionariedade, que ajude a moderar a imprevisibilidade e possa dar maior estabilidade aos seus quadros. Não obstante os constrangimentos orçamentais que todos compreendemos e aceitamos, há muito a fazer para dar às novas gerações de diplomatas, a quem compete o futuro da representação externa do país, expetativas de uma digna realização profissional.

Em tempo: a assembleia geral da ASDP aprovou ontem um voto de pesar pelo recente falecimento do embaixador José César Paulouro das Neves, que era o sócio n. 2 da Associação.

quarta-feira, dezembro 16, 2015

A carreira e a vida


Luis Pinto Coelho pode não ter sido uma personalidade diplomática fascinante, mas acabou por tornar-se numa figura bastante interessante.

Governador civil, deputado do Estado Novo, comissário-nacional da Mocidade Portuguesa e professor universitário, este fiel servidor do salazarismo foi escolhido em 1961 para embaixador português em Madrid, cargo que desempenharia até Marcelo Caetano ascender ao poder, em 1968. Como diplomata político, a memória que dele guarda o Palácio das Necessidades não o eleva além da mediania.

Mas Luis Pinto Coelho acabaria por ter um percurso de vida bastante curioso. Tendo-se apaixonado em Madrid por uma americana lindíssima, sacrificou o seu lugar para poder viver ao lado da mulher de quem gostava. Nessa opção - contra tudo, contra todos e, em especial, contra as convenções da época - viria a mostrar uma dimensão humana muito interessante. Afastado de Madrid, Caetano dar-lhe-ia tempos mais tarde um lugar de conselheiro cultural no Brasil e, finalmente, colocá-lo-ia como embaixador em Buenos Aires, onde o 25 de abril o foi encontrar. Passou o resto da sua vida em Espanha, onde chegou a ser modelo fotográfico, nunca renegando as suas convicções salazaristas - o que, aliás, só lhe fica bem.

A sua neta, Sofia Pinto Coelho, publicou há meses uma memória carinhosa do seu avô, que eu havia lido com algum interesse. Na passada semana, assisti, por acaso, na SIC a um filme baseado nesse livro. Confesso que achei curiosa essa revisitação de uma existência pouco comum.  

Ainda a ONU e Portugal

No final dos anos 70, um grupo de cidadãos de diferentes cores políticas e oriundas de setores muito variados decidiu tomar uma iniciativa com o objetivo de reforçar a visibilidade das Nações Unidas no seio da sociedade portuguesa. Por muitos anos, durante a ditadura, as Nações Unidas haviam sido apresentadas como um "inimigo". Com uma imprensa censurada, a imagem da ONU tinha um tom sempre negativo, com a ação no seu seio dos países do "terceiro mundo", que apoiavam os "terroristas" que atacavam as nossas "possessões", a ser diariamente diabolizada.

O 25 de abril mudou a perceção de Portugal no plano externo, mas a imagem das Nações Unidas, das suas virtualidades, do fantástico trabalho dos seus diferentes órgãos e agências, ficou ainda longe de ser reconhecido entre nós. Em inícios de 1978, fui contactado para integrar o grupo fundador de uma estrutura tendente à promoção da imagem da ONU em Portugal. Recordo que tivemos várias reuniões no escritório das Nações Unidas em Lisboa, no edifício Imaviz, tendo eu próprio sido o autor dos estatutos da ACNUP (Associação de Cooperação com as Nações Unidas em Portugal). Tendo partido para o estrangeiro em 1979, desliguei-me entretanto da associação.

Recordo agora algumas pessoas que estiveram entre os fundadores da ACNUP: António Costa Lobo, Carlos Eurico da Costa, João Palmeiro, Rui Machete e José Policarpo. Esse mesmo: o futuro cardeal patriarca. 

terça-feira, dezembro 15, 2015

ONU - 60 anos de presença portuguesa

Passaram ontem os 60 anos da presença de Portugal nas Nações Unidas. A data foi assinalada discretamente. De relevante, apenas li um bom artigo do MNE português no "Público".

Portugal entrou para a ONU dez anos depois da criação da organização. Em 1945, a escassez de credenciais democráticas inviabilizara o nosso acesso, embora, anos depois, em 1949, o óbice curiosamente não existisse para o ingresso na NATO, onde, pelos vistos, o nosso país era tido como parte do "mundo livre". Só em 1955, um largo acordo Leste-Oeste viria a permitir a entrada de Portugal, a par de outros Estados.

Não iria ser nada fácil o percurso português na ONU. Os ventos sopravam a favor da descolonização, mas Portugal "assobiava para o lado", como se o assunto lhe não dissesse respeito. As nossas colónias tinham passado a ser denominadas "províncias ultramarinas", pelo que o problema era "dos outros", que não entendiam que entre Melgaço e Ocussi a questão era apenas de coordenadas geográficas. 

O desfecho da tensão instalada entre Portugal e a União Indiana em torno do estatuto do Estado da Índia, no final dos anos 50, fez prenunciar o vendaval político que o início da luta angolana pela independência, em 1961, iria instalar em permanência. Com a criação nesse ano do Comité Especial para a Descolonização - o chamado "comité dos 24" - ficou criada uma frente que iria passar a atazanar a diplomacia portuguesa. A ONU transformou-se num dos principais palcos da nossa visibilidade externa, num acossamento constante, que viria a conduzir ao afastamento forçado de Portugal de algumas agências da organização. A ditadura e a política colonial, que tornaram o nosso país "orgulhosamente só" no mundo, iriam ter nas Nações Unidas a sua "bête noire". 

A Revolução portuguesa de 25 de abril de 1974, abriu o mundo multilateral a Portugal, que, de um dia para o outro, passou a ser o "enfant chéri" da ONU. Menos de cinco anos depois, o nosso país ascendia pela primeira vez a um lugar de membro não permanente do Conselho de Segurança. Aí regressaria em 1997/98 e 2011/12, sempre com prestações de grande qualidade, que muito prestigiaram a nossa imagem. Pelo meio, ficaram algumas décadas de presença muito profissional e competente de Portugal nas várias instâncias da organização e suas agências. A luta pelo direito de autodeterminação de Timor-Leste iria confirmar-nos como um país com sólidos princípios e uma persistência e coerência notáveis. A participação portuguesa em diversas operações de paz no quadro onusino grangeou-nos também o respeito generalizado.

Portugal pode e deve orgulhar-se pelo que fez nas Nações Unidas ao longo das suas seis décadas de presença. E deveria dizê-lo mais alto.

segunda-feira, dezembro 14, 2015

14 de dezembro de 1986


Foi há 29 anos. Foram 7-1. Eu estava lá. Foi uma bela tarde.

A ilusão francesa


Este fim de semana, testemunhámos a concretização de umas das grandes ilusões da política francesa. O facto da Frente Nacional, de Marine Le Pen, não ter conseguido ganhar em nenhuma das regiões francesas, não obstante os resultados espetaculares obtidos na primeira volta destas eleições, significou apenas que uma aliança de votos entre a esquerda e a direita democráticas conseguiu o quase milagre de evitar esse desfecho.

Desde há vários anos que assistimos a este "teatro" democrático: os eleitores esquecem as suas clivagens e juntam-se em torno do candidato que melhor colocado possa estar para impedir a vitória do candidato da extrema-direita. É um "truque" que, até agora, tem funcionado, muito embora, neste sufrágio, as brechas tenham sido já evidentes. Por isso, nada nos garante que, no futuro, as coisas continuem a processar-se assim.

O partido de Marine Le Pen surpreendeu, uma vez mais: entre a primeira e a segunda volta subiu em número de votos, tendo obtido ontem o seu melhor resultado de sempre. As próximas eleições serão as presidenciais de 2017, onde Marine Le Pen tentará de novo a sua sorte.

Alguma França continua a pensar ser possível, por meros arranjos de natureza político-partidária, manter, por exemplo, a atual situação em que a FN, dentre os 577 deputados da sua Assembleia Nacional, tem apenas três (!) representantes próximos daquele partido. Ora quase um em cada três franceses vota Frente Nacional! Percebo e simpatizo com esta "barragem" republicana contra a sinistra extrema-direita, mas um juízo de razoabilidade democrática deve levar-nos, por um mero bom senso, à conclusão de que isto é política e institucionalmente insustentável.

Não será o prosseguinento destes entendimentos que, a prazo, travará a tragédia que seria - para a França, para a Europa e, por via desta, para Portugal e em particular para os portugueses que vivem em França - o surgimento da FN em lugares de poder. Só uma mudança das condições político-sociais que levam ao voto dos eleitores em Marine Le Pen pode alterar este estado tendencial de coisas. Isso significaria novas políticas e a recuperação da confiança, por parte do eleitorado, nos partidos mais moderados, à esquerda ou à direita. Se tal não suceder, estar-se-á apenas a adiar o inevitável.

ps - deixo uma fotografia de uma parede em Paris. Pensem nisto!

domingo, dezembro 13, 2015

"Olhar o Mundo"


Neste fim de semana, coube-me comentar a situação política internacional no programa da RTP "Olhar o Mundo", dirigido por António Mateus.

Os temas abordados são: a situação no Brasil, as eleições legislativas espanholas, o saldo da "parceria estratégica" estabelecida entre Portugal e a China há uma década, a nova determinação americana e o envolvimento britânico na guerra ao Estado Islâmico, o quarto de século passado sobre o Acordo de Dayton que garantiu a paz na Bósnia-Herzegovina, a primeira volta das eleições regionais francesas, as perspetivas abertas por um novo presidente argentino, as profundas mudanças políticas na Venezuela, as dificuldades económicas que Angola atravessa e os grandes desafios a que a cimeira do clima, em Paris, pretendia responder.

O programa pode ser visto aqui.

As pontes esquerda-direita

Marcelo Rebelo de Sousa referiu ontem, numa entrevista ao "Expresso", que, ao tempo em que era líder do PSD (1996-1999), tinha criado, com o então primeiro-ministro António Guterres, uma "miniestrutura de relação permanente", constituída por Isabel Mota e por mim, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo". É um episódio da "pequena História" que, porque revelado, vale a pena recordar.

Desde o início do seu governo, em 1995, António Guterres considerou importante ter o PSD "a bordo" para as grandes questões europeias. Embora com algumas "nuances", as posições dos dois partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer).

Recordo-me de uma reunião entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, no gabinete do primeiro, em S. Bento, algures em 1996, comigo e com Isabel Mota presentes, em que ficou estabelecido que ambos dialogaríamos com regularidade sobre as posições em temas europeus que pudessem ter implicações importantes para o país. O PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com o PSD, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas.

Isabel Mota, hoje administradora da Fundação Calouste Gulbenkian, tinha sido secretária de Estado do Planeamento durante governos de Cavaco Silva e era uma especialista na matéria europeia. Eu tinha acabado de assumir funções como secretário de Estado dos Assuntos europeus, depois de ter sido subdiretor-geral do setor e, simultaneanente, representante adjunto de Portugal no "grupo de reflexão" europeu para a revisão do Tratado de Maastricht. Muitos anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, ambos viríamos a encontrar-nos de novo numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

O meu antecessor na secretaria de Estado dos Assuntos europeus, durante os governos de Cavaco Silva, havia sido, durante uma década, Vitor Martins, um técnico altamente qualificado, que fez um excelente lugar político e com quem eu colaborara intimamente (entre 1986/88 e 1994/95). Quando o substituí no cargo, muitas pessoas ficaram surpreendidas pelo facto de eu ter confirmado, no meu gabinete, alguns dos seus adjuntos, circunstância que julgo quase inédita nas transições de governos entre a esquerda e a direita em Portugal. Alguns desses técnicos manter-se-iam até ao termo das minhas funções, cinco anos e meio depois.

O meu diálogo com Isabel Mota consubstanciava-se numa troca regular de informações, tanto mais que o PSD acompanhava os mesmos temas no âmbito do Partido Popular Europeu. Isso fez-se, em especial, durante as negociações do Tratado de Amesterdão, em que me coube o papel de negociador português, e do quadro financeiro da União para os sete anos seguintes, a "Agenda 2000", cuja coordenação negocial cabia, como era de regra, ao secretário de Estado dos Assuntos europeus.

Esse diálogo, que sempre vi como muito proveitoso, não evitou algumas pequenas "accrochages" entre o governo e o PSD sobre temas europeus, quase sempre tituladas por mim, pelo lado do governo. Recordo-me de pequenas polémicas na imprensa envolvendo Luis Marques Mendes, Pacheco Pereira e o próprio Marcelo Rebelo de Sousa. Com Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", sobre a questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, agora confesso, não era muita.

Depois da saída de Marcelo Rebelo de Sousa da liderança do PSD, substituído por Durão Barroso, a minha interlocutora do lado do PSD passou a ser Maria Eduarda Azevedo. Devo dizer que construí um relação de boa amizade com ambas as minhas interlocutoras "laranja", que dura até hoje.

Creio que a revelação ontem feita por Marcelo Rebelo de Sousa trouxe para público, pela primeira vez, a existência dessa eficaz "ponte" europeia entre o governo socialista e o PSD, nos idos de 90. Uma relação que, nos últimos tempos do segundo governo Guterres acabou por ter algumas dificuldades, não apenas pela crescente crispação política interna, mas igualmente pelo facto das estruturas do PS, nomeadamente os seus deputados ao Parlamento europeu, serem, por esse mecanismo, como que excluídas desse diálogo. No período decisório sobre o Tratado de Nice, cuja negociação também titulei por parte de Portugal, o diálogo entre o governo e o PSD seria conduzido diretamente por António Guterres com Durão Barroso, acompanhados nesses contactos por Maria Eduarda Azevedo e por mim. 

Nos dias que hoje correm, quando o antigo conceito de "arco da governação" não atravessa as suas melhores horas, não é com certeza muito popular defender que PS e PSD devem manter, entre si, um diálogo regular, como polos naturais de alternância política que nunca deixarão de ser. Contudo, acho que o cultivo desse diálogo se deve manter para as grandes questões de Estado, muito em especial para a política externa e, neste âmbito, para os grandes temas europeus. Quanto mais não seja para constatatar divergências...

sábado, dezembro 12, 2015

Miró


Lembram-se do tempo em que era "imperativo", para saldar as dívidas do país, vender a coleção de obras de Miró que faziam parte do património do BPN? Recordam-se de quando o assunto foi suscitado pela oposição e tudo foi feito pelo então governo para "despachar" aquelas obras? Têm na ideia que a PGR travou a venda das obras e que isso permitiu que a Parpública fosse forçada a não alienar aquele património?

Hoje mesmo, o ministro da Cultura, João Soares, anunciou ter oferecido à Fundação de Serralves a possibilidade de expor a coleção de obras de Miró. Que pertencem ao Estado português. Há algumas coisas a mudar, como se vê.  

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Os riscos do medo


Há muito que a agenda europeia é dominada pelos medos. Foi, aliás, o medo perante a ameaça soviética, nos tempos da Guerra Fria, que cimentou a construção europeia, razão por que alguns consideram que, para além de Schumann e Monnet, há mais alguém que merece algum crédito pela solidificação do projeto integrador: Josef Stalin…

Aquilo a que Fourastié chamou os “trinta gloriosos” anos, entre o final da Segunda Guerra e a crise petrolífera de 1973, trouxeram à Europa crescimento, prosperidade e emprego, criando, deste lado do Atlântico, uma sociedade de consumo similar àquela que os EUA já gozavam. Do lado “de cá” da “cortina de ferro”, permaneceram sempre óbvios os temores defensivos. Mas o medo essencial na Europa morava então nas casas e nas ruas do “socialismo real”, tutelado por Moscovo.

Com os tempos económicos a serem menos favoráveis, com os alargamentos sucessivos a induzirem uma imparável diversidade e a conduzirem a uma objetiva mudança de natureza da União, esta tornou-se muito mais desigual. E, com o tempo, bastante menos otimista. O euroceticismo começou a bater à porta dos europeus, mais a uns do que a outros pela assimetria dos efeitos, fruto dos egoísmos nacionais que tornam Bruxelas o bode expiatório de tudo quanto corre mal em casa, adubado pelas quebras de solidariedade num projeto que se sente cada vez mais economicista e só residualmente tributário dos valores que haviam estado na sua origem.

Os medos regressaram em força às populações europeias e o projeto integrador, em lugar de ser visto como uma defesa para esses receios, começou a ser olhado como a verdadeira causa dos problemas. Se os alargamentos já haviam induzido o medo às deslocalizações de empresas, a imigração económica somou-se como uma nova ameaça ao emprego e, mais do que isso, induziu pulsões securitárias de novo tipo, afetando a bondade da livre circulação. A isso acresceu, nos últimos tempos, a questão dos refugiados e, ainda mais recentemente, a vaga terrorista, que veio “legitimar” o mal-estar intercultural e inter-religioso que já emergia em muitos países.

Este complexo quadro é o terreno ideal para quantos hoje advogam um recuo no processo integrador. Para Portugal, é muito claro que qualquer diluição desse paradigma seria muito negativo e agravador da nossa perifericidade.

Deixo um alerta específico: qualquer cedência ao Reino Unido, no seu pedido de “devolução” de poderes, que pudesse configurar um recuo nos direitos dos nossos trabalhadores seria um precedente muito nefasto. É que nunca se sabe se, aberta a porta, a senhora Marine Le Pen não poderia começar a ter algumas outras ideias…  

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Pedido de Ajuda


Alguém pode acreditar que estas são as traseiras do Palácio onde, na noite de ontem, o chefe do Estado ofereceu um banquete oficial a um convidado estrangeiro, de um espaço museológico com pergaminhos, onde se situam as instalações do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (!!!) e, last but not least, do Ministério da Cultura? 

Um dia, num Conselho de ministros em que estive presente, vai para 20 anos, recordo-me deste "escândalo" ter sido aflorado. Não me recordo de pormenores do que então se decidiu. A única coisa que sei é que as coisas estão ainda hoje no estado que se pode ver na imagem e passível de ser observado por quem suba a Calçada da Ajuda a caminho de Monsanto.

Há mais de dois anos, escrevi por aqui isto:

A "malapata" de Santa Engrácia acabou nos anos 70. Fizeram-se entretanto o CCB e imensos quilómetros de autoestradas, pavilhões gimno-desportivos, rotundas, milhares de obras, muitas delas inúteis, para encher o olho e o bolso patobravista autárquico. Terá também havido dinheiro para construir, de raíz, um novo e muito discutível Museu dos Coches. Neste mar de fundos, por que será que o Palácio da Ajuda permanece como o parente pobre do nosso mais valioso património histórico-arquitetónico?

O novo ministro da Cultura, João Soares, que foi um magnífico presidente do município lisboeta, tem, agora, mesmo à porta do seu gabinete, esta tragédia arquitetónica com que Lisboa convive há demasiados anos. Juntamente com Fernando Medina, que hoje dirige com saudável dinamismo a Câmara municipal, e com António Costa, que chefia o governo depois de muito tempo de sucesso no mesmo posto, seria importante que conseguisse encontrar uma solução para este estado de coisas. Ninguém reclama o impossível "completamento" do palácio, mas também se aguarda que não se acabe num remate modernaço, com ruínas e vidro. É que as "ruínas" da Ajuda não têm dignidade para serem salvas, são apenas um fruto "santaengraciano" da inércia e do desleixo.

Leia-se sobre este assunto o artigo de Paulo Ferrero no Público de hoje. 

Conselho de Estado


Devo dizer que não tenho uma opinião muito elevada sobre o papel do Conselho de Estado no nosso ordenamento constitucional. Com todo o respeito que, por razões formais, os órgãos e as instituições da República devem merecer a qualquer cidadão, confesso que não dou ao Conselho de Estado uma grande importância. E desconfio que os presidentes da República também não. Se assim não fosse, fariam uma leitura alargada das razões para a respetiva convocação e utilizá-lo-iam com muito maior frequência. E não é isso que acontece.

E por que o não fazem? Desde logo porque a opinião da esmagadora maioria das figuras institucionais que o compõem é quase sempre conhecida de antemão. Uma ou duas pode criar pontualmente alguma surpresa, mas, conhecendo-as, elas não fugirão muito ao "script" da instituição que titulam. O mesmo acontecerá, com certeza, às personalidades indicadas pelos partidos. A regra (também há exceções) leva a que a sua posição coincida com a da formação partidária que os indicou. Restam as escolhas do chefe do Estado, essas personalidades que tanto podem ser próximos do presidente, e que neste caso tenderão a segui-lo, ou nomes destinadas a colmatar a representação de partidos não beneficiados pela votação parlamentar e que, por maioria de razão, tenderão a espelhar a posição dessas mesmas formações (Cavaco Silva não favoreceu este modelo de seleção para o Conselho de Estado).

Não estranho por isso que os presidentes optem por ouvir outras entidades, quando estão em causa decisões importantes. Observámos isso quando Jorge Sampaio se aconselhou por ocasião da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes e, mais recentemente, quando Cavaco Silva auscultou várias figuras ligadas a determinadas instituiçõess, antes de nomear António Costa. Resta saber se, em especial no segundo caso, o chefe do Estado teve alguma surpresa nas opiniões que ouviu (seguramente que a teve no caso de Fernando Ulrich, mas quem conhece o seu espírito independente não terá estranhado muito).

Que pensam os candidatos presidenciais do papel do Conselho de Estado? Marcelo Rebelo de Sousa já o disse, prometendo dar-lhe mais atenção. Vou estar atento para ouvir o que Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém tenham para dizer sobre o tema. Não que isso signifique muito, na realidade prática das coisas, mas sempre ajuda a caraterizar o perfil institucional daquelas ou daqueles em que acabaremos por votar.

Dito isto, a verdade é que os partidos políticos adoram ter representantes no Conselho de Estado, porquanto isso funciona como um fator de prestígio e uma consagração institucional. Se o Conselho é um espelho da sociedade, nomeadamente da sociedade política, tem de facto uma certa lógica que os cerca de 20% de votos que partidos como o PCP e o Bloco de Esquerda representam possam dar lugar a uma presença no órgão. Daí que seja natural que aproveitem o seu apoio aos socialistas para tentarem garantir esse estatuto.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Complacência


Tenho a maior das penas pelas famílias dos adolescentes que morreram quando pintavam comboios numa estação do Porto. E, naturalmente, pelas vidas que se foram. Mas o reconhecimento da tragédia não me leva a ter a menor complacência para com esses atos delinquentes, que anualmente causam à empresa ferroviária portuguesa (isto é, a todos nós) centenas de milhares de euros de prejuízos.

Mas, quase tanto quanto essa atividade, choca-me a atitude de "compreensão", travestida no reconhecimento dessa forma marginal de arte, que hoje é muito comum ouvir-se e ler-se por aí. Como se acaso a marginalidade fosse um valor em si, como se sempre emanasse dos comportamentos desviantes uma espécie de "aura" criadora, como se fosse natural a aceitação de uma cultura de transgressão, mesmo que daí derivem custos para outros. 

Acho muito bem que possam ser dados meios a quem usa com jeito sprays de tinta para alegrar paredes ou casas em ruinas, para criar ambientes de arte de rua em locais apropriados. Mas acho que deve haver mão dura para os delinquentes que delapidam bens públicos e privados, que não resistem a riscar uma parede imaculada, apenas para puro gozo pessoal. E que seja apontada a cumplicidade de quem lhes dá guarida "teórica" e que, muito provavelmente, ficaria furioso se fosse a sua porta ou o seu carro a sofrer esses danos.     

Benn


Há mais de um ano, "deixei-o" morrer, aos 89 anos, sem aqui lhe deixar a  nota devida. A sua saída discreta de cena fez com que não desse o destaque que a figura de Tony Benn justificaria.

Tony Benn foi um proeminente político trabalhista britânico. Ocupou funções governamentais com Harold Wilson e James Callaghan, tendo, posteriormente, feito uma forte inflexão à esquerda, de que foi considerado um dos mais importantes ícones na política britânica das últimas décadas. Entre outras atitudes polémicas, esteve a favor da famosa greve dos mineiros, opôs-se à guerra das Falkland, apoiou o Sinn Féin na Irlanda do Norte e, até ao final da sua vida, converteu-se numa permanente dor de cabeça para as diversas lideranças trabalhistas. Ficou também famosa a sua luta por se manter na Câmara dos Comuns e recusar-se a ingressar, pela herança do título nobiliárquico do seu pai, na Câmara dos Lordes, o que obrigou a uma importante mudança legislativa. Ao todo, foi deputado por 47 anos e a sua voz, marcada por um falar "axim" que o notabilizou, era sempre escutada com grande respeito, não obstante o radicalismo das suas teses.

Benn deixou como herança literária uma coleção de uma dezena de "Diários", muito bem escritos e diz-se que factualmente irrepreensíveis, que hoje são um importante referencial para se conhecer a vida política britânica de mais de cinco décadas. Outros dos seus livros, mais programáticos e até panfletários, têm menor graça.

(Um dia, num almoço com Mário Soares, fiz uma referência a Tony Benn. Soares conhecia-o, embora o não apreciasse, e logo me disse: "Ele diz mal de mim no volume X desses Diários". Lá fui confirmar e era verdade. Benn, no seu esquerdismo, fora muito crítico do papel político de Mário Soares no período posterior à Revolução de 1974, embora o tema Portugal estivesse muito distante dos seus interesses regulares.)

Por que razão falo hoje aqui de Benn? Por uma curiosidade. Há semanas, dera conta que do "governo sombra" do novo líder trabalhista, Jeremy Corbyn, fazia parte, com a "pasta" de "shadow Foreign secretary", Hilary Benn. Nunca tinha ouvido falar nesse nome, nem percebi se era mulher ou homem, mas fiquei com curiosidade em saber se era parente de Tony Benn. Era filho.

Há dias, nos Comuns, Benn filho fez um discurso sobre a guerra da Síria. Opondo-se abertamente ao seu líder, a intervenção de Hilary Benn, que passou, de repente, a figura de destaque da política britânica, constituiu uma defesa muito forte do envolvimento britânico no conflito com o Estado Islâmico. Tenho a convicção de que Tony Benn não teria gostado das teses do discurso do seu filho, mas teria ficado orgulhoso com a magnífica qualidade do mesmo. A quem tiver uns minutos, aconselho fortemente a visualização dessa excelente peça de oratória, clicando aqui.

Este post leva uma imagem de Tony Benn. A seu tempo, e se o vier a justificar de novo, o seu filho Hilary será para aqui chamado no futuro.

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Manuel Pinto Machado


Conheci Manuel Pinto Machado há muitos anos, quando era um colaborador muito próximo de Adelino Amaro da Costa. Fomo-nos encontrando por aí, ao longo dos anos, nomeadamente ao tempo em que foi a figura central da UCCLA.

Há pouco mais de um ano, tive o gosto de o encontrar, aquando de uma palestra que fiz no Instituto Democracia e Liberdade - Adelino Amaro da Costa, a  que ele me deu o gosto de assistir. Conversámos então pela última vez, como a imagem documenta. Soube agora que a vida lhe pregou a partida decisiva. Aqui fica o registo sentido.

domingo, dezembro 06, 2015

França

Mais número menos número, os resultados das eleições regionais francesas, cuja primeira volta teve lugar hoje, revelaram que um em cada três franceses favorece a linha política de Marine Le Pen, a lider do "Front National", o partido criado pelo seu pai e para o qual tem vindo a conquistar uma posição cada vez mais sólida da política francesa. 

Ao longo dos últimos anos, Marine Le Pen cuidou em afastar-se de algumas das bandeiras mais repugnantes que Jean-Marie Le Pen sempre teimou em titular, tais como a desculpabilização do colaboracionismo com a Alemanha nazi, a desvalorização dos crimes contra a humanidade praticados pelo regime hitleriano e uma diversidade de tomadas de posição racistas e xenófobas que o tinham tornado "infréquentable" no cenário político francês.

Explorando os receios provocados pela crise económico-social, com fortes impactos no emprego, pela insegurança pública e, mais recentemente, pelo agravamento dos choques culturais e religiosos que o advento do islamismo radical consagrou, Marine Le Pen estruturou um discurso nacionalista de "proteção" dos franceses, que se revela crescentemente apelativo. Nestas que são as últimas eleições antes das presidenciais de 2017, um bom resultado para o "Front National" representará a confirmação de uma deriva em direção a uma França cada vez mais radicalmente conservadora.

A direita democrática, representada pelo "Republicanos" do regressado Nicolas Sarkozy, vai situar-se neste sufrágio acima do Partido Socialista de François Hollande, que não conseguiu capitalizar a melhoria da apreciação de imagem que a forma como geriu a crise securitária lhe havia trazido nas sondagens. Há quem pense que Sarkozy poderá ser tentado a radicalizar o seu discurso político, disputando franjas do eleitorado de Le Pen, o que não deixará de trazer consequências importantes no equilíbrio político interno do país.

Os próximos tempos confirmarão se o crescimento eleitoral do partido de Marine Le Pen virá ou não a atingir valores ainda mais elevados. Se isso ocorrer, se passar a ser vista como uma potencial vencedora das eleições presidenciais de 2017, com imediato impacto no panorama legislativo e governamental, então a França do futuro será uma outra coisa muito diferente. E a Europa também, claro. Será então tarde para os setores da comunidade portuguesa, que hoje se deixam seduzir pelas propostas do "Front National", perceberem o embuste em que caíram e o que lhes pode vir a acontecer.

O segredo (de polichinelo) de justiça

Diz S. Exª a senhora Procuradora-Geral da República, citada por um jornal: "Todos os magistrados do Ministério Público, todos os magistrados judiciais, todos os funcionários, todos os advogados e todos os intervenientes que por qualquer forma tenham acesso aos processos têm de fazer um esforço conjunto" sobre as quebras de segredo de justiça.

Um "esforço conjunto"? E não ajudaria a esse "esforço" se os inquéritos da PGR sobre as quebras do segredo de justiça no seu seio fossem conclusivos, se dessem origem a processos e decisões disciplinares? Quantos magistrados e funcionários foram até hoje punidos por esses crimes diários? Será que os vários inquéritos sobre a quebra do segredo de justiça ainda estarão ... em segredo de justiça? E qual será a razão que faz com que, nestes casos, e curiosamente, não surjam "quebras" desse segredo? E já repararam que na lista de "intervenientes" a senhora Procuradora-Geral evitou mencionar a palavra "jornalistas"?

Detesto que servidores públicos pagos pelos nossos impostos queiram tomar-nos por parvos. Foi o que fez a senhora Procuradora-Geral com esta sua declaração.

Os izes


Ontem à noite, estive a assistir ao Marítimo-Sporting num café de uma pequena aldeia transmontana. Conheço muito bem aquele espaço desde a minha infância, passo por lá todos os anos, embora muito brevemente, e ainda me recordo dele quando aquela era a única loja comercial a alguns quilómetros de distância. Por ali se vendia um pouco de tudo, funcionando num misto de tasca e de mercearia, ambiente que era muito típico do Portugal rural.

Ao olhar os jovens donos que a loja hoje tem, lembrei-me de uma historieta que sempre ouvia na minha infância e que envolvia uma senhora que, nos anos 30 e 40 do século passado, foi proprietária dessa "venda".

Ao que se contava, as crianças da aldeia, quando agarravam uns escassos tostões, passavam por lá para comprar umas pequenas bolachas que reproduziam as diversas letras do alfabeto, uma novidade que tinha surgido na oferta da "venda". Os miúdos selecionavam, na lata das bolachas, as letras que lhes apeteciam. A dona da loja deu-se no entanto conta de que certas letras, porque mais pequenas em dimensão, iam ficando para trás e assim não eram escoadas. Um dia, a senhora, desagradada com a escolha dos miúdos, reagiu, com a linguagem e na sonoridade da aldeia, numa frase que faz parte da minha mais antiga memória:

- Isto não pode ser! Só lebaides os mezes e os nezes. Habeisde comer também os izes...

Alguém quer hoje comer os "izes"?

Boas festas

Tenho um amigo que, desde há anos, tem por hábito enviar os seus votos de Boas Festas por SMS, ainda durante o mês de novembro. É uma prática algo bizarra, mas já todos nos habituámos a ela. Alguns de nós, na resposta e retribuição que damos, não deixamos às vezes de aludir ironicamente ao insólito do facto.

Este ano, um desses amigos, teve uma resposta interessante: "Agradeço e retribuo e, desde já, aproveito para lhe enviar votos de muito Boa Páscoa".

sábado, dezembro 05, 2015

Debater a Europa


Com António Lobo Xavier, conversei na noite de ontem, em Vila Real, à volta do tema "Portugal na Europa e no euro", perante umas largas dezenas de pessoas que se inscreveram para o jantar promovido pelo restaurante "Cais da Vila" e o escritório de advogados "Cavaleiro & Associados", em mais uma iniciativa integrada no ciclo de debates "Portugal e os Caminhos do Futuro".

Os novos desafios colocados a Portugal pelas profundas mudanças ocorridas na Europa, neste quase trinta anos de presença portuguesa nas instituições comunitárias, em especial as exigências decorrentes da pertença ao euro, foram o eixo das nossas intervenções, complementadas com um debate vivo e interessado por parte do público.

Ando há muitos anos a discutir a Europa e o papel de Portugal no seu seio. O tema é o mesmo, mas é sempre diferente. Não deixa de ser curioso verificar que a Europa nos surpreende, a cada dia, com o surgimento de novas prioridades, com a emergência de novas urgências, que exigem respostas cada vez mais rápidas. O ceticismo que existe sobre a capacidade da Europa enquanto potência convive com a consciência subliminar coletiva de que é no seu seio, e já não necessariamente no espaço das ordens políticas nacionais, que é possível encontrar as soluções mais eficazes para os grandes problemas do continente.

Em tempo: um blogue fez uma síntese em dois posts do debate.

Uma agenda para o mundo

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O governo de António Costa parece determinado em dar à política externa um lugar de topo nas suas preocupações. O facto do Ministro dos Negócios Estrangeiros ser o segundo na hierarquia do executivo, e de ter sido escolhido para o posto um qualificado “peso pesado” socialista, é disso prova evidente. Se a isso somarmos a circunstância do MNE ter, pela primeira vez, quatro secretários de Estado, um dos quais dedicado exclusivamente à internacionalização da economia – que é outra maneira de dizer que coordena a AICEP -, fica claro que as Necessidades passam a ter um forte controlo sobre toda a ação externa.

Depois de um tempo em que a obsessão financeira fez estiolar a nossa afirmação internacional, as tarefas de Augusto Santos Silva e da sua equipa são muito exigentes. No plano europeu, vai ser necessário, desde logo … criar uma política! Sem prejuízo da centralidade inevitável das relações com Berlim, é tempo de explorar uma nova geometria variável de alianças, começando por uma participação ativa nas grandes reflexões temáticas europeias. O respeito pelos compromissos assumidos por Portugal em nada é contraditório com a sua eventual associação à revisão de quadros institucionais que o futuro venha a determinar como necessária.
   
A voz e as posições portuguesas têm de ser fazer ouvir, com determinação e coerência, nos grandes debates que aí estão – desde a governança do euro à política de refugiados, do combate ao terrorismo às relações com a Rússia, de uma resposta firme à provocadora agenda de “devolution” britânica até à fixação dos termos da Parceria Transatlântica. E, desde já, será necessário fixar uma posição portuguesa muito clara na revisão do acordo de Schengen e na coordenação das políticas migratórias, bem como definir cuidadosamente o grau de envolvimento nacional no combate coletivo ao Estado islâmico.

Para atenuar o insensato alarmismo lançado pelo chefe de Estado, o governo necessita de diluir rapidamente quaisquer preocupações criadas em torno dos compromissos nacionais no domínio transatlântico. As relações com Washington têm de ser cuidadas desde a primeira hora e a sequência do tratamento da questão das Lages será uma boa oportunidade para tal.

Independentemente do seu futuro político, a Espanha permanecerá o nosso primeiro parceiro comercial. As nossas relações passam por Madrid, e só por Madrid, se me faço entender. Por isso, não nos sendo indiferentes, as questões intra-espanholas continuarão a ser apenas isso mesmo.

Um terreno interessante, que parece pedir um “restart”, é a questão lusófona, com a política da língua associada. Lançar um debate sobre a CPLP, aproveitando para tal a futura presidência do Brasil e o facto do novo secretário-executivo vir a ser um português, pode ser uma oportunidade interessante, até para desmentir a ideia de que os socialistas não se sentem à vontade com os dossiês africanos. Um primeiro teste terá de ser, desde logo, a questão das relações com Angola, um tema delicado mas, como agora se diz, realmente incontornável, para o qual se espera que os partidos apoiantes do governo no parlamento, pelo menos, não atrapalhem.

Importa também, sem ceder a demagogias, retificar alguns erros crassos que se fizeram nos últimos anos em matéria da rede e da estrutura das missões diplomáticas e consulares, aproveitando para tentar refletir sobre o modelo do relacionamento com uma diáspora em crescente mutação.

E, “last but not least”, é da maior importância garantir um acompanhamento, eficaz mas sem o foguetório promocional recente, do extraordinário trabalho das nossas empresas no exterior, procurando, em paralelo, captar investimento produtivo e manter o turismo nas grandes prioridades da economia nacional.

Conhecendo os novos governantes e a dedicação e qualidade da nossa máquina diplomática, devo confessar que me sinto bastante otimista.

(Artigo que hoje publico a convite do "Diário de Notícias")

Entrevista ao Jornal i


sexta-feira, dezembro 04, 2015

Em que ficamos?


Há pouco tempo, assistimos a um espetáculo insólito: no dia em que o governo minoritário PSD/CDS foi derrubado na AR, sindicatos ligados à CGTP organizaram uma manifestação em frente de S. Bento. 

Em Portugal, ninguém põe em causa o direito de reunião de quem quer que seja, dos sindicalistas ao grupo de “tias” que então contestou a legitimidade da união das esquerdas. O 25 de abril fez-se para isso mesmo. 

É essa liberdade que reivindico para exprimir o desconforto que senti com a realização dessa manifestação (a outra era mero folclore e deve ter acabado nos antiquários de S. Bento, p’cebe?). No momento em que, cá dentro e lá fora, se suscitavam fantasmas sobre a inédita opção de António Costa, “cercar” o parlamento traria inevitavelmente à memória o triste episódio de há 40 anos, quando sindicalistas, sob a cobardia ou a impotência do MFA, sequestraram os deputados à Assembleia Constituinte. 

Desta vez é diferente? É, mas não deixa de ser de uma imensa inoportunidade. Além disso, o gesto funcionou como um recado aos representantes eleitos do povo: “lembrem-se de que estamos aqui, que, se as vossas decisões nos não agradarem, cá estaremos na rua para vos contestar”. É como se a vontade expressa pelo povo português nas eleições legislativas ficasse refém dos interesses corporativos das tropas do senhor Arménio Carlos.

Talvez seja ingénuo, porque não estou no segredo dos deuses das conversas “das esquerdas”. Porém, tinha por adquirido que um governo do PS, com o inédito apoio parlamentar do PCP (o Bloco é irrelevante para esta história), poderia vir a contar com um apaziguamento relativo das tensões sindicais, pelo menos por algum tempo. Ao assumir o gesto de reverter o processo de privatização de algumas empresas públicas de transportes, o PS havia dado um passo com um elevado custo, no mínimo político. A gratidão não é um conceito da vida pública, mas imaginei que, pelo menos até assentar a poeira desta crise, os sindicatos revelassem alguma contenção.

Pois não senhor! O que se anuncia é uma onda de greves, nomeadamente na área dos falidos transportes públicos, o setor onde o governo assumiu o mais difícil dos seus gestos. Já se percebeu que a estratégia do senhor Arménio Carlos – estranho já o silêncio do senhor Mário Nogueira, com certeza desejoso de reeditar a miserável campanha que organizou contra Maria de Lurdes Rodrigues – é “esticar a corda”, agora que o saldo financeiro das quotizações sindicais já está garantido nos bolsos da CGTP.

E o PCP, de cujo Comité Central estas figuras fazem parte? Não tem nada a dizer sobre isto?

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, dezembro 03, 2015

Cúmulo

Aquele velho e prestigiado diplomata, que ocupava o lugar de topo da hierarquia da carreira das Necessidades, ouvia com atenção a opinião sobre um funcionário que recentemente fora colocado numa determinada função. As primeiras avaliações sobre ele eram dececionantes. Porém, por razões legais, tão cedo não seria possível mudá-lo de tarefas. O dirigente que lhe transmitia o parecer foi ao ponto de afirmar que o homem lhe parecia, muito simplesmente, "estúpido".

O chefe da carreira perguntou então:

- E ele trabalha?

A resposta também não foi animadora. Além de pouco dotado, o funcionário não era dedicado ao serviço e trabalhava muito pouco.

- Ótimo!

O dirigente que qualificava o funcionário ficou baralhado. Por que razão era "ótimo" que ele fosse um mau funcionário, para além de ser pouco dotado?

- Ó homem, se ele tem de ser estúpido, ao menos que seja preguiçoso...

Geórgia

Na Geórgia, foi eleito e tomou posse um novo presidente. Temos de ser coerentes. Se há provas concludentes de que a eleição dos deputados qu...