A jovem, que há pouco, na noite fria e chuvosa de Amarante, atestava o depósito do meu carro, falava um português irrepreensível. Os seus olhos, contudo, não enganavam.
- De que país é?
- Sou da Rússia, disse com um belo sorriso.
Não estranhei. Mas, atentando para o rasgado dos olhos, inquiri:
- De que região da Rússia?
Talvez para não entrarem em demasiadas explicações, estou preparado, desde há muito, para ouvir, dos imigrados russos em Portugal com quem me cruzo, a resposta "de Moscovo" ou "da região de Moscovo". Ela não foi por aí mas, sempre a sorrir, ainda tentou afastar a minha curiosidade:
- Sou de uma ilha ...
- Em que zona?
Deve ter estranhado um pouco, mas foi ainda vaga:
- É uma ilha a norte do Japão.
De repente, a minha memória deu um "salto" de mais de meio século. De uma conversa numa tarde, no Centro de Estudos Geográficos do Liceu Nacional de Vila Real, aí por 1964.
O Centro tinha sido criado por iniciativa do Dr. Ladislau, um professor de Geografia oriundo de Braga, que com isso dera alento a um grupo de interessados pelo tema, sob o imparável impulso do Sérgio Moutinho, que já se foi há muito. Dele faziam parte o José Barreto, o Elísio Neves, o Carlos Leite, o Ribeiro e mais dois ou três. Reuniamo-nos e discutíamos, publicávamos um boletim impresso na Minerva Transmontana, o "Meridiano". Graças a esse extraordinário professor, um homem que via muito mal mas que sabia como ninguém motivar o nosso interesse e a nossa curiosidade, conseguíamos então romper a modorra da vida chata de um liceu de província.
- É de Sacalina?
A jovem quase que parou o que estava a fazer e, olhando para mim, agora com os olhos rasgados muito abertos de espanto:
- Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.
O frio da noite e a pressa dos passageiros não me deu tempo para lhe perguntar se, como dizia Tchekov, "em Sacalina não há clima, só há mau tempo", razão porque foi, durante muitos anos, um sinistro lugar de degredo. E vinha ainda muito menos a propósito dizer-lhe que foi graças a uma conversa com o Dr. Ladislau, que um dia me falou dos conflitos da Rússia com o Japão, em tempos a propósito de Sacalina e até hoje sobre as Curilhas, que eu ouvi falar pela primeira vez da ilha onde ela nascera, que era mesmo capaz de apontar o seu lugar no mapa e que agora, meio século mais tarde, estava ali a fazer uma "figuraça", na bomba de gasolina da Prio em Amarante, sob a chuva miúda do inverno do Marão, à saída para Padronelo.
Se têm dúvidas, passem por lá, falem com a bela "sacalinense", a quem há pouco me esqueci de perguntar o nome.
(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)
(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)