Não me passa hoje pela cabeça (já me passou um dia, mas arrependi-me vivamente) almoçar ou jantar no Alfa Pendular, entre Lisboa e Porto ou vice-versa (agora, vou no vice-versa). A qualidade do produto trazido ao lugar não me agrada minimamente, e isto é apenas um piedoso “understatement”.
Nos tempos do velho Foguete, o comboio prateado que fazia este trajeto creio que quase no dobro do tempo, havia uma carruagem restaurante, com mesas próprias com pequenos candeeiros, onde se tomavam as refeições.
Marcavam-se estas no início da viagem, havendo dois turnos de serviço. Quando as refeições estavam prontas para serem servidas, surgia pelas coxias um empregado que tocava uma pequena sineta, ao mesmo tempo que ia anunciando em voz bem alta: “Primeira série!”. Uma hora e tal mais tarde, lá surgia a “segunda série!”. E, a essas chamadas, os comensais que haviam reservado iam para a carruagem restaurante.
Fui sempre um cliente da “segunda série”, porque esta permitia mantermo-nos à mesa por mais tempo, beber mais do que um café, nesses anos em que ainda tínhamos fígado para fechar a refeição com uma dose de aguardente velha (em balão aquecido, o que era feito, a nosso pedido, à falta de lamparina, com um pano embebido em água quente). Lembro-me também que, escolhendo a tal “segunda série”, só saíamos da mesa já por Vila Franca ou por Espinho, dependendo do sentido do comboio. E que belas conversas tive por aquelas mesas, de que agora não consegui arranjar uma imagem decente para ilustrar este post!
Como a comida vinha em travessas (na antiga tradição portuguesa de serviço à mesa), os empregados da Wagons-Lits serviam individualmente cada cliente. Ora a estabilidade do comboio era então muito periclitante, pelo que eles faziam uma cuidada coreografia para não provocarem “desastres” irrecuperáveis na roupa dos utentes.
A “segunda série” tinha, aliás, um pormenor “técnico”, nas idas para o Porto. Havia um ponto do percurso para Norte, creio que ali pela Pampilhosa, onde um qualquer intrincado de linhas fazia o comboio abanar mais furiosamente. Víamos então os funcionários pararem o serviço e aguentarem-se no corredor, por uns instantes, com as travessas na mão, num equilíbrio hesitante, até que tudo acalmasse. Era um momento aguardado com sorrisos pelos “connaisseurs”. Sempre admirei aqueles hábeis “jongleurs” da restauração ferroviária, de que agora me lembrei, nestas horas com pouco aqui para fazer, neste Alfa sem alma nem wifi decente.
Tinham mais graça aquelas viagens antigas? Provavelmente não. Nós é que olhávamos com outros olhos aquele “cosmopolitismo” de trazer por casa, a versão lusa do “Expresso do Oriente” a que então tínhamos direito. Ah! E éramos mais novos...