domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

“Observare” o ano de 2021


Sem entrar no domínio das previsões, fizémos, no primeiro ”Observare” de 2021, uma análise ponderada às grandes questões internacionais, antecedida de uma radiografia da nova administração americana. Pode ver aqui.

Daqui a dias, há eleições


Na eleição presidencial a escolha é fácil. Tudo se resume à resposta a uma simples questão: dentre os candidatos que agora se apresentam, qual é aquele que, em face da experiência e das provas já dadas, apresenta um perfil que mais garantias oferece de poder vir a desempenhar, nos próximos cinco anos, com equilíbrio, moderação e capacidade de diálogo com os vários setores - políticos, institucionais, económicos e sociais - da sociedade portuguesa, o cargo de presidente da República? Eu não tenho a menor dificuldade em escolher.

Le Carré


Não deixa de ter graça ver o próprio John le Carré surgir, “à la Hitchcock”, no “Tinker Tailor Soldier Spy”, há pouco, no AXN.

“Melhorada”

Algumas pessoas (a começar por mim) diziam-me: “O teu blogue tem uma letra muito pequena”. Outros, que não eu, comentavam: “Aquilo precisava de uma corzita!”. Porque não me apetece (por ora) ver debates eleitorais, andei para aqui a mexer no “template” e fiz umas mudanças. Como dizem os brasileiros: dei uma “melhorada”! Se resultou ou não, só os que notaram é que podem dizer alguma coisa (“Mas mudaste alguma coisa? Já não me lembro como era...”). Dá deus as nozes...

sábado, janeiro 02, 2021

“Observare”


Daqui a pouco, como sempre logo depois do noticiário da meia-noite, de sábado para domingo, na TVI 24, sob a coordenação de Filipe Caetano, Luís Tomé, Carlos Gaspar e eu, em mais uma edição do “Observare”, analisaremos o ano internacional de 2021.

Carlos do Carmo e a manhã


Num filme, há pouco, ouvi Rui Vieira Nery ironizar, numa conversa com Carlos do Carmo, pelo facto de o não poder convidar para ir assistir a uma aula sobre o fado, num curso que dava na universidade. É que as aulas eram às oito da manhã e a manhã não era o “forte” de Carlos do Carmo! O cantor sorriu, silencioso.

Um dia, em Paris, depois de um espetáculo que fez no Chatelêt, perguntei a Carlos do Carmo se, por acaso, estaria disponível para almoçar connosco, no dia seguinte, na embaixada. Respondeu-me: “Não leve a mal, embaixador, mas eu nunca aceito almoços. A minhas manhãs são sempre muito longas... Mas tenho muito gosto em que possamos jantar. Almoçar, não me dá jeito!”

Passaram poucos meses. Eu já vivia em Lisboa. Ia a sair do “Ibo”, um restaurante no Cais do Sodré, e cruzei, na esplanada, Carlos do Carmo e Júlio Pomar, a jantar com as respetivas mulheres. “Ó Júlio! Um dia, em Paris, eu disse ao nosso embaixador que não podia aceitar um convite dele para almoçar. Na altura, fiquei preocupado em que ele tivesse ficado ofendido pela minha recusa. Quero que sejas minha testemunha de que eu só janto!”. E Júlio Pomar, seu grande amigo, confirmou, com aquela gargalhada enrolada que tinha. 

A pasta


Começou ontem a quarta presidência portuguesa das instituições europeias. Escrevo “instituições europeias” e não “União Europeia” porque, em rigor, a União Europeia só existe desde 1993. E a nossa primeira presidência teve lugar em 1992.

Hoje, amanhã e depois, contarei aqui três histórias, ocorridas em cada uma dessas presidências.

A primeira é da presidência de 1992. Foi nesse agosto, há quase três décadas, na conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia.

À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, a dois passos da nossa embaixada, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento formal na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos. O ambiente quase que fazia lembrar as palavras da canção de Aznavour: ”Ils sont venus, ils sont tous là"...

Do “nosso” lado, também, estavam todos os MNEs dos então “doze“, com Deus Pinheiro a representar a presidência portuguesa, cuja delegação eu integrava, como chefe interino da nossa embaixada em Londres.

Era a Jugoslávia em desagregação e em sangrento conflito que por ali se discutia, por esses dias.

Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós".

As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso.

À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram largas mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Com as mãos ocupadas, decidi só ir buscar a pasta no fim do almoço. E fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado, de um qualquer país. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa.

À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala, por um braço estendido de um agente, à altura da sua cabeça. Toda a sala devia perguntar-se, entre a ansiedade e o temor, sobre o que estaria naquela pasta. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, numa loja logo abaixo do cinema, era do tipo "de engenheiro", com duas bolsas, e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas bem aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente que ainda hoje me encanta. Lembrava-me a mesma pasta que o velho MNE francês, Maurice Schumann, usou, desde o liceu até ao fim da sua vida política.

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!".

Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta incrivelmente velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Não recordo a cara de Deus Pinheiro, imagino mesmo que nem me olhasse, apenas desejoso que o nome de Portugal não ficasse associado àquele incidente.

Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim.

sexta-feira, janeiro 01, 2021

“Blake & Mortimer”


Uma bela maneira de começar o ano é ler o último ”Blake and Mortimer”, com o velho Olrik à mistura.

Foi uma das prendas de Natal que ofereci a mim mesmo, enviada pela Amazon, com mais alguma livralhada francesa.

A Presidência europeia


Conversa com a deputada europeia Margarida Marques sobre a quarta Presidência portuguesa da União Europeia, que hoje se inicia.

Pode ver aqui.

O nosso fado

 


quinta-feira, dezembro 31, 2020

A figura do ano


Não tenho a mais leve hesitação em afirmar que a figura do ano de 2020, em Portugal, é a ministra da Saúde, Marta Temido. Com Graça Freitas a seu lado, mas com a responsabilidade política que a esta não incumbe, Marta Temido mostrou o estofo de uma grande servidora pública, com a firmeza, pontuada de humanidade, de uma responsável política. O facto de se ter tornado no alvo predileto dos detratores do Serviço Nacional de Saúde é a maior “medalha” que lhe pode ser atribuída, embora eu espere, com toda a franqueza, que outras venham a tê-la como destinatária.

A outra cidade


Vamos chamar as coisas, que não as pessoas, pelos seus nomes.

Na minha juventude, lá por Vila Real, a homossexualidade masculina era um tema estranho, de que, em absoluto, se não falava em família. Nos círculos adolescentes em que andava, quase sem exceção, o assunto era abordado de forma “grossa”, contundente, como se houvesse a necessidade precaucionária de criar uma barreira agreste de palavras entre nós e esse (outro) mundo.

A homossexualidade feminina essa, então, era um tabu: havia umas senhoras que viviam juntas, mas era tido como maldade daí deduzir que se tratava de algo mais do que uma conveniente amizade. E, às vezes, quem sabe, até podia ser o caso.

A cidade tinha então os seus “maricas”, conhecidos e “recenseados” pela voz pública. Eram poucos, uma dezena ou uma dúzia, quase todos identificados por ademanes no comportamento, alguma bizarria no vestuário e nos jeitos do andar, caricaturas que eliminavam quaisquer residuais dúvidas na sua catalogação.

Eram figuras tidas como tal nas conversas entre amigos (homens, sempre), objeto fácil para ditos em tom jocoso (às vezes, de forma semanticamente bem agressiva), pessoas que, em alguns casos (em especial se fossem mais pobres ou “distantes”, na coreografia física que apresentavam), se arriscavam a ser brindadas com apartes pelas ruas, provindos da “coragem” de grupos machistas que os cruzavam.

O “teste do algodão”, para consolidar qualquer rumor sobre alguém, era descortiná-lo em algum “trottoir” por perto do RI 13, cuja fauna fardada se dizia fazer as suas delícias. A notícia corria, célere, cruel e o julgamento era definitivo.

Às vezes, se o visado tinha maior importância social, e eram menos evidentes os sinais exteriores da sua condição sexual, ele era incluído na classe mais equívoca dos “solteirões”, um estatuto que, na prática, os deixava à espera de melhor “prova”.

Nos dias de hoje, com a abertura da sociedade, e com a saudável evolução das mentalidades a moldar-nos a atitude (falo também por mim), podemos melhor imaginar o que terá sido o drama de muitos homossexuais numa cidade com a matriz fechada de Vila Real dos anos 50 ou 60 (e quem diz Vila Real podia dizer Bragança, Leiria, Portalegre e urbes afins).

É que eles, na realidade, não deviam ser uma dezena ou uma dúzia! Quantos mais não haveria, escondidos, reprimidos, no sofrimento da clandestinidade da sua condição, a ter de ser superada por uma fachada de comportamento mais ou menos machista, que, em alguns casos, pode ter mesmo forçado ao teatro de um casamento.

Vila Real, como o país em geral, em meia dúzia de décadas, cresceu imenso em transparência, em auto- reconhecimento, em denúncia da hipocrisia. E, também por isso, cresceu em humanidade. As discriminações não desapareceram por completo, muitos preconceitos ainda persistem. Mas há um imenso mundo de diferenças. A liberdade também passou por aqui.

quarta-feira, dezembro 30, 2020

Pela mão do sogro


“Este não é um avião oficial. É meu!” Com um sorriso vaidoso, naquela cara em cujos traços se percebia a proximidade da China, o embaixador do Casaquistão, junto da OSCE, Rahkat Aliev, acolheu assim os seus quatro colegas, idos de Viena, que se tinham deslocado ao seu país, numa viagem que ele próprio fazia questão de acompanhar. Partíamos, nessa manhã de 2004, de Almati para Astana. 

A mim, nesse dia, o primeiro de quatro que iria passar no Casaquistão, ia caber-me fazer, em Astana, a nova capital (a mais de 1000 km da antiga, Almati), uma conferência didática para diplomatas casaques, explicando o que significava o encargo de fazer uma presidência da OSCE, responsabilidade que Portugal tinha tido pouco tempo antes e que o Casaquistão ambicionava fazer. 

Fiquei com alguma inveja pelo facto de, nessa hora, os meus colegas andarem a passear pelos mercados da “Brasília” local. Ainda fui a tempo, contudo, de os acompanhar à torre Bayterek no centro de Astana, no topo da qual, colocando a mão numa reprodução dourada da mão do presidente Nursultan Nazarbaev, se ouve, em todo o esplendor, o hino do país. (Uma experiência, à época, só comparável à que mais tarde iria ter, ao observar a estátua dourada do então ditador do Turquemenistão, Saparmurat Niyazov, a mover-se a acompanhar a luminosidade do sol, na capital Asgabat).

Tudo correu bem, com muito vodka e caviar a acompanhar-nos a todas as refeições, nessa visita ao Casaquistão. Embora fosse, como os outros, uma mera “democradura” (uma democracia que tentava disfarçar uma real ditadura), era talvez, há que reconhecer, o menos mau do países da Ásia Central.

Nós levávamos na agenda um conjunto de questões para colocar às autoridades locais - em matéria de observância das regras democráticas, de Direitos Humanos, de liberdade de imprensa, de proteção das minorias, de respeito pelo Estado de direito, de presos políticos, etc. Os casaques apresentaram-nos, como era de regra, o “mundo ideal” que por ali se disfrutava. A “fact-finding mission” era completada com a audição de opositores e ONG’s. Era tudo quanto podíamos fazer. Tratar-nos muito bem fazia parte da tentativa do governo de fragilizar o rigor do nosso relatório. 

O embaixador casaque, Rahkat Aliev, que nos acompanhava, não era, contudo, uma pessoa qualquer: era genro do presidente do seu país, o eterno Nursultan Nazarbaev. 

E era uma figura muito conhecida no seu país, embora não pelas melhores razões. Tinha sido chefe dos impostos, subdiretor da polícia política e vice-ministro. O tempo veio a provar, sem margem para dúvidas, que estava envolvido em desvio de bens públicos, em negócios fraudulentos, com off-shores à mistura, acumulando uma imensa e ilegítima fortuna. Depois desse tempo em que o cruzei (ainda o tive, um dia, a almoçar em casa, em Viena), andou fugido entre a Áustria, Malta e Chipre, viu o seu estatuto diplomático suspenso, vindo a ser detido por acusações de fraude, raptos, torturas e assassinatos.

Tinha, entretanto, acabado a vida política num dissídio violento com o sogro. Sobre este, viria a publicar um livro que vale pela graça de um belo título (o trocadilho só funciona em inglês): “The Godfather-in-law”, que deu origem a um filme.

Rahkat Aliev viria a morrer, com apenas 53 anos, numa prisão austríaca, num suicídio sobre o qual ainda hoje se mantêm muitas dúvidas.

Às sete


“Ó diabo! Já são sete!”. A frase, ao final da tarde das terças-feiras, é comum, lá por casa. É às sete horas que, por regra, começo o artigo que agora leem. Podia ser mais cedo? Podia, mas não era a mesma coisa. Escrever sem a pressão do tempo, não faz o meu género. (Não sou como aquele relojoeiro, em frente ao mercado de Campo de Ourique, a quem, há alguns tempos, confiei um relógio para conserto e que, perante insistências minhas sobre se o trabalho já estava feito, me disse, sem se rir: “Desculpe lá, mas eu não funciono sob pressão do tempo!“. Para quem trabalha com relógios...). Habituei-me assim, já não mudo. No início, confesso, o método angustiava-me. “Mas, ao menos, pensas sempre, com antecedência, no que vais escrever?”, perguntou-me, um dia, um amigo, a quem revelei este meu comportamento, que, para ele, lhe criaria uma insuportável ansiedade. Claro que, em geral, penso, mas também lhe disse que, muitas vezes, a escolha sobre o tema que esta coluna vai abordar é feita à última hora, sob um impulso momentâneo. “Mas não tens coisas guardadas, para o caso de te faltar a imaginação?”. Quando lhe jurei que não tinha, não me acreditou. Mal ele sabe que a questão se me colocou, ainda há pouco: vou escrever sobre quê, nesta que é a minha última crónica de 2020? Talvez devesse falar sobre isso mesmo, sobre este ano que nos fez perder um ano, que já não vamos recuperar, um ano que nos encheu de medos, de desconfianças, de raiva até. Depois, pensei melhor: não vou “dar confiança” a este ano sinistro, dedicando-lhe um artigo. Não merece. Vou então escrever sobre 2021, o ano que só por muito azar não será melhor do que o anterior? Seria uma banalidade. Mas, então, falar de quê? Já sei! Vou escrever sobre mulheres! Ensandeceu de vez, pensou o leitor. Talvez não. Falar sobre Ursula Van der Leyen é assinalar o papel decisivo que a presidente da Comissão Europeia, nesta tormenta, soube desempenhar, com soluções imaginativas para estimular a economia comum e organizar o processo, tão rápido quanto possível, de distribuição das vacinas. Falar sobre Angela Merkel é notar a “força tranquila” de uma dirigente que mostrou estar à altura da liderança da União, em período bem complexo. Falar de Marta Temido e de Graça Freitas é distinguir, com gratidão, duas senhoras que, apesar das hesitações e erros que uma navegação à vista sempre implicaria, deram ao país uma lição notável de dedicação ao serviço público. É isso! Já descobri tema para esta crónica!

terça-feira, dezembro 29, 2020

Diz a Comissão...

Lido agora na imprensa: “Os boletins de voto "já seguiram para impressão" (com um candidato que afinal o não é) porque, justifica a Comissão Nacional de Eleições, era "materialmente impossível" ficar à espera de saber quais as candidaturas efetivamente regulares e aceites em definitivo pelo Tribunal Constitucional.

As eleições são no dia 24 de janeiro! Digno de uma república de bananas!

A demagogia medrosa

É de uma imensa demagogia não vacinar, com prioridade, os titulares dos órgãos de soberania, como se fez em todo o mundo “normal”.

Somos um país onde reina um temor cobarde da menor reação populista.

Ironias da vida


Viver junto de alguém, há várias décadas, é garantia de que conhecemos bem os seus gostos? Nem por isso. Se assim fosse, no dia de ontem, eu e a minha mulher não teríamos ido (juntos) às lojas trocar as prendas que um deu ao outro na noite de Natal. Sem o menor problema, claro.

A RTP e as eleições presidenciais


A RTP acaba de anunciar que vai dar a Vitorino Silva, conhecido como Tino de Rans, toda a cobertura jornalística a que este candidato presidencial tem direito. O serviço público de televisão e radiodifusão não tem “filhos” e “enteados”: além de naturalmente cumprir a lei durante a campanha, deve, nesta fase, garantir uma igualdade de oportunidades, em termos de divulgação jornalística da mensagem de quem reuniu todos os requisitos legais para concorrer ao sufrágio. As outras estações podem atuar como bem entenderem. A RTP não poderia proceder de outra forma. Ponto.

Viva o “Diário de Notícias”!


Hoje, o “Diário de Notícias” regressa “às bancas” como jornal diário em papel. Alguns acharão isto uma reação etária, mas quero dizer que fico muito satisfeito por ver este grande jornal português, uma referência única na nossa imprensa, de novo no prelo. Só posso desejar que a iniciativa tenha sucesso. Felicito Rosália Amorim, a diretora, por ser a cara deste dia. E deixo aqui esta imagem clássica de 1930, de Stuart Carvalhais. Já agora, lembro também que, tal como eu, ele nasceu em Vila Real.

segunda-feira, dezembro 28, 2020

28 de dezembro de 1973


Nem sempre, naquele local da Praça de Londres, existiu um banco. Em 28 de dezembro de 1973, era um “snack-bar”, primeiro chamado “Café Londres”, depois “Café de Paris”. A meio da manhã, dispensado da minha tropa, ali cheguei, sorridente, dizem. Ia de gravata preta. Com um casal amigo, descemos a praça e calcorreámos a avenida Guerra Junqueiro até um cartório que por lá existia. Aí foi celebrado o ato. Aí terminou um namoro de quase uma década. A gravata preta era o luto por deixar de ser solteiro. Os dois amigos passaram a cunhados. Ninguém mais testemunhou. E fomos almoçar a Sesimbra. O cartório já não existe, mas o casamento sim, 47 anos depois. Fica a nota.

domingo, dezembro 27, 2020

A vacina


Em tempo de vacinas, lembrei-me desta historieta.

O nome não interessa. Era um homem simpático, uma daquelas figuras que, lá por Vila Real, faziam umas horas de trabalho na Mocidade Portuguesa. Na pior das hipóteses, por subordinação ideológica, na melhor, para acrescentar uns tostões ao seu salário. Alguns, contudo, deviam acumular.

Um dia, para uma das minhas idas à boleia pelo estrangeiro, necessitei de um saco alpino. Alguém me disse que poderia pedir um, de empréstimo, na Mocidade Portuguesa. Fui falar com o tal tipo que, com a maior disponibilidade, se prontificou a emprestar um saco. Combinei um encontro com ele no café Excesior e dali fomos, depois do jantar, a pé, rua Direita adiante, até à Mocidade, onde hoje é o Arquivo Distrital.

Para encher conversa, pelo caminho, disse-lhe que tinha ido, nesse dia, apanhar a vacina contra a cólera, então exigida pela França a quem ia de Portugal. (Dias depois, chegado à fronteira, em Handaye, fui obrigado a engolir dois comprimidos anti-cólera, porque o franceses deviam desconfiar dos nossos boletins de vacinas).

O nosso homem comentou: “Isso da vacina contra a cólera devia ser obrigatório, para toda a gente. É que há cada vez mais malucos!”.

No momento não percebi e perguntei: “Mas o que têm os malucos a ver com a vacina?”.

“Tudo! Ainda há dois dias apanharam um doido em Lordelo, a partir carros, aos berros, cheio de “cólera”. Se a vacina contra a cólera fosse dada a toda a gente, reduzia-se muito a ocupação dos manicómios. Mas deve ser cara!”

O nosso homem estava mesmo convencido de que a cólera tratada pela vacina equivalia à “cólera” que, às vezes, afeta o comportamento de alguns. E que o regime, só por falta de dinheiro é que não reduzia a “cólera” que andava pelo país. Por piedade, e também porque ainda não tinha o saco alpino na mão, guardei um prudente silêncio.

“Observare”


Os efeitos da pandemia na ordem internacional estiveram em natural destaque no balanço de 2020 feito no último “Observare”, na TVI 24. Também ali falo da surpresa positiva que é Ursula Van der Leyen, dos inescapáveis efeitos nefastos do Brexit para a União Europeia, da revelação que foi a primeira-ministra neo-zelandeza, da tragédia da gestão de Bolsonaro e das hipóteses do Irão poder regressar a um diálogo político construtivo, entre outros assuntos destacados pelos meus colegas de painel.

Pode ver o programa aqui.

sábado, dezembro 26, 2020

“Observare”


Logo após o noticiário da meia-noite, de sábado para domingo, estaremos no Observare, na TVI 24, para fazer o balanço da vida internacional em 2020.

Foi-se o Zé Aguilar


O Zé era um pouco mais velho do que eu. Começou por morar, lá em Vila Real, na Miguel Bombarda, ao tempo em que eu vivia na Alexandre Herculano, no mesmo grande quarteirão. Com a Teresa e o Jorge (Jói), o Zé era filho do homónimo Dr. José Aguilar, advogado e escritor das horas vagas, fotógrafo de mérito, figura muito marcante da cidade, de quem o Zé terá herdado um pouco o tom de voz - e a profissão, claro. A mim e ao Zé juntaram-nos as iniciativas lúdicas do João Ladislau, que, na nossa juventude, inventava coisas levadas da breca. Organizámos uma volta ao circuito, em bicicleta, com várias metas: à medida que os atletas completavam os percursos, as metas eram desmontadas e iam para outro local, com os ciclistas a aguardar para partir de novo, de Sumol em punho. Com o Zé e o João fiz, de vela na mão, de gatas, o aventuroso percurso das canalizações, então ainda não inauguradas, claro, do novo saneamento da Marginal, insultando os passantes de dentro das gateiras. A família do Zé mudou depois de casa, para o Diogo Cão e viamo-nos menos. Mas ainda nos cruzámos bastante em noites do Club de Vila Real, onde o Zé era o terror do senhor Fernando, como autor de “partidas” memoráveis. Foi depois para a universidade, de onde um dia veio “doutor”, para a cidade, de início para secretário do Governo Civil. Em 1969, comigo do lado da oposição e ele do regime, já marcelista, tivemos ferozes debates à mesa da Gomes, com o João Bé do meu lado, na provocação às autoridades então dominantes. O Zé dizia que eu não conseguia discutir sem ter uma caneta na mão, que fazia rodar no vidro das antigas mesas da Gomes (digo antigas, porque me chegou que as atuais são de mármore). Daí em diante, para o resto da vida, não terá havido uma única vez em que o Zé me encontrasse sem que ele próprio não sacasse, de imediato, de uma caneta, rindo-se, preparando o prolongamento de uma suposta discussão. A verdade é que, depois desse tempo, nunca discutimos muito, embora continuássemos em polos oposto das ideias da política. Mas rimos sempre imenso. Reencontrámo-nos, um dia, aos abraços, na tropa, em Lisboa, onde ambos fomos garbosos oficiais de Ação Psicológica. O Zé regressou, entretanto e em definitivo, a Vila Real. Eu mantive-me, para sempre, a viver fora. Viamo-nos nas férias, trocávamos histórias, graçolas, ressublinhávamos, quase sempre por provocação dele, as nossas continuadas diferenças. Um dia, “contratei-o” como advogado, para um diferendo qualquer, para resolver uma vizinhança incomodativa para a casa do meu pai: ganhámos. A última vez em que falámos, mais longamente, foi à mesa da Pompeia, num final de tarde, numa bela iniciativa do Elísio Neves. Soube então dos seus regulares encontros, pelo mundo, com o José Luis Carneiro, nosso colega de infância, em viagens e aventuras magníficas, que nos contou. A pandemia, disseram-me há pouco, levou-nos agora o Zé, cuja luta contra o vírus eu ia acompanhando, nos últimos dias. Tenho qualquer coisa de fatídico, nos períodos de Natal, lá por Vila Real, no tocante à perda de amigos pessoais: foi nesse tempo que levámos a enterrar o Sérgio Moutinho, o José Araújo, o Manuel Fernandes, o Eduardo Lopes de Silva. Agora, estando fora da cidade, não vou poder acompanhar o Zé até à sua última morada, como os jornalistas sem imaginação costumam descrever os funerais. Deixo ao Jói e a toda a restante família do meu velho amigo Zé Aguilar um abraço, raivoso de impotência e de imenso pesar.

sexta-feira, dezembro 25, 2020

Que galo!


Não sendo religioso, tenho uma imensa dificuldade em entender o que poderá esta senhora esperar da sua ida à Missa do Galo. Com que espírito participará na celebração? Como é que a igreja católica acolhe, no seu seio, pessoas com este tipo de atitude? Como é que os meus amigos católicos (a maioria dos meus amigos são católicos, creio) olham para este gesto, à entrada na igreja, por parte de uma sua co-crente? Não estou a ironizar minimamente, podem crer. Estou a transmitir a simples perplexidade de um ateu, que gostava de poder perceber.

Brexit


As questões relativas às pescas foram dos capítulos mais difícil de fechar no processo negocial entre a União Europeia e o Reino Unido. A gravata de Boris Johnson na conferência de imprensa final dá bem conta disso.

quinta-feira, dezembro 24, 2020

O príncipe desencantado


José Cutileiro integrou uma geração dourada a quem a fortuna, num tempo em que isso era privilégio de poucos, proporcionou uma educação no exterior. Essa sorte a pouco o levaria, além do diletante bocejo estrangeirado, não fora o caso de Cutileiro concentrar um conjunto incomum de qualidades intelectuais e de trabalho. O olhar sobre o país onde nasceu, e o modo como melhor ficariam protegidos os seus interesses permanentes, começou bastante moldado pela sua experiência britânica. Essa leitura acabaria, depois, tributária da convicção de que o atlantismo era um determinismo geopolítico, e não apenas uma entre outras vertentes na equação da nossa ação externa. Porque colava bem ao conservadorismo estratégico das Necessidades, isso facilitou a sua imersão no mundo diplomático democrático. De um europeísmo cauteloso, atento às alianças que pudessem compensar as nossas fragilidades, Cutileiro caldeou, nas suas reflexões sobre o mundo global, uma postura realista, mas que, a meu ver, ficou sempre aquém do cinismo. Leiam-se os seus escritos sobre as temáticas internacionais, para se perceber os valores essenciais que eram o referente do seu pensamento. Em Cutileiro, temos sempre de resistir à tentação fácil de confundir o ator político-diplomático com a diversão caricatural das personagens dos Bilhetes de Colares, um mundo onde ele dá corpo, num português de lei, com disfarçada ternura patriótica, à exasperação de quem vê o país ficar na soleira daquilo que ele gostaria que ele fosse.

 

(A “Visão” convidou-me a escrever, para a sua edição desta semana, um perfil do embaixador José Cutileiro, uma das 14 personalidades destacadas pela revista, dentre as figuras desaparecidas em 2020.)

Quantos somos?

Dia após dia, como numa guerra, esperamos pelos mortos. O número chega-nos, sem falha, pela hora de almoço. E comentamo-lo, numa escala comparativa, com os mortos de ontem, com os de outros países, numa espécie de campeonato em que já estivemos melhor classificados. Às vezes, distraído entretanto por afazeres, dou comigo, só ao final do dia, a perguntar: e hoje, quantos mortos houve?

Para que queremos nós esses mortos, os infetados, os recuperados, os que estão nos cuidados intensivos? Para opinar sobre esta vaga, sobre cujo pico lançamos apostas, idênticas às que fazemos sobre o calendário de eficácia da vacina? Não confessamos que, afinal, não sabemos nada, que muito poucos sabem alguma coisa, que todos navegamos bastante à vista, mas que, nem por isso, nos coibimos de ter sempre uma opinião - à luz do que veio no jornal, da notícia, verdadeira ou falsa, partilhada pela rede social, do que foi dito pelo enésimo especialista que vimos na televisão.

Tiraram-nos tudo, não nos tirem o Natal, ouve-se agora. Com razão. São as crianças a quem se quer evitar o trauma de ter como presente uma reunião de família embrulhada em frieza, são os mais velhos, que os últimos tempos revelaram bem frágeis, a quem se não quer privar de um mínimo de festa, que sabe-se lá por quanto tempo poderão ter. Perdemos um ano, outros perderam a vida, outros os parentes e amigos, muitos perderam o emprego, o negócio, a poupança, alguns mesmo já esperança. À mesa da Consoada, afinal, quantos somos?

(Publicado no “Jornal Económico”)

quarta-feira, dezembro 23, 2020

A responsabilização política


Uma entrevista do presidente da República, embora na pele de candidato à reeleição, deitou mais uma acha na fogueira posta a arder sob o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. Há já quem faça contas ao tempo que António Costa o manterá no Governo.

Há muito que se notou que Cabrita é um mal-amado da comunicação social, que nunca pareceu simpatizar com o estilo do ministro, que admito possa ser lido como algo pomposo, quiçá arrogante. Cabrita não promove a captura charmosa dos média, mostrando-se sempre muito afirmativo e distante, projetando a ideia de que tem poucas dúvidas nos caminhos que segue. Acresce que as ironias políticas, que às vezes ensaia publicamente, não parece fazerem parte sua especialidade, embora se diga que, em privado, é um homem com sentido de humor.

Porque governa em minoria, mas também por estilo próprio, António Costa rodeia-se de pessoas sobre as quais possa exercer forte autoridade política e, em muitos casos, em quem tem grande confiança pessoal. É sabido que Cabrita faz parte, há muito, do círculo próximo do primeiro-ministro. No plano operativo, é o que os anglo-saxónicos chamam um "trouble shooter", em português corrente, um "carregador de pianos", disponível para tarefas difíceis. Quem o conhece sabe que é um político com elevado sentido de serviço público, de uma integridade à prova de bala.

O ministro deve sair agora do Governo? É vulgar dar-se como exemplo de uma atitude correta, em matéria de responsabilização política, o caso de Jorge Coelho, que se demitiu de ministro das Obras Públicas depois da queda da ponte de Entre-os-Rios. Devo dizer que, tendo achado de grande dignidade esse gesto, sempre o vi como excessivo.

Um ministro não é responsável pelo facto de um seu serviço sob a sua tutela ter falhado, a menos que se prove que já tinha sido alertado para a possível ocorrência desse tipo de falhas e, por incúria, não tivesse atuado. Ou que não tivesse logo tomado as atitudes apropriadas, na decorrência dos factos. Salvo no tocante ao prolongamento excessivo no cargo da diretora do SEF, o que pode ser levado à conta de ter optado por não querer desestabilizar o serviço, no complexo tempo da pandemia que então se vivia, não me parece, como simples cidadão, que Eduardo Cabrita tenha cometido qualquer erro grave, por ação ou omissão. Sei que vou contra o ar do tempo, mas afastá-lo do Governo, podendo apaziguar algumas consciências e confortar demagogicamente a "vox populi", não ajuda a resolver rigorosamente nada.

terça-feira, dezembro 22, 2020

Notas de um intruso


O dia ia já longo. Eu madrugara, ainda em Corfu, onde estava, há uma semana, como convidado de Georgios Papandreou, à época ministro dos Negócios Estrangeiros grego, num seminário de reflexão sobre temas internacionais.

Nessa manhã, Georgios tinha-me dado “boleia”, num jato oficial grego, que nos levou daquela ilha até Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Relembro, durante a viagem, a paisagem lindíssima, límpida, sobre a costa grega e albanesa, que dificultava a concentração na conversa. De Mostar, onde eu teimei em regressar anos depois, num helicóptero militar alemão, fomos conduzidos a Serajevo, onde ia ter lugar a sessão de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Pousámos no que me pareceu ser um estádio de futebol, ao lado do que ia servir para centro de conferências. Era o dia 30 de julho de 1999.

Essa sessão reunia “o poder do mundo”, para utilizar uma expressão que, na minha infância, ouvia, usada como significado coletivo de quem realmente conta nas decisões. A capital da Bósnia-Herzegovina, cenário de uma imensa tragédia armada no passado, era talvez, nesse dia, a cidade mais bem guardada do globo.

A reunião era organizada e dirigida pelo chefe de Estado finlandês Martti Ahtisaari, que tinha a presidência da União Europeia, e o trauma da situação balcânica tivera o condão de para ela convocar as grandes vedetas da política mundial. 40 países estavam ali presentes, ao mais alto nível.

Juntei-me a António Guterres, que viajara de Lisboa acompanhado pelo secretário de Estado da Defesa, José Penedos. O nosso encarregado de negócios em Serajevo, Luís Barreira de Sousa, por artes que nunca entendi bem, com o argumento de que tínhamos a presidência europeia seguinte, havia conseguido colocar Guterres na mesa principal, junto de Ahtisaari. Com o assento destinado a Portugal dessa forma vazio, cabia-me ocupá-lo, dada a preeminência hierárquica que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus tinha sobre o da Defesa.

Sentei-me na mesa, com Jacques Chirac, figura imensa, à minha esquerda, e José Maria Aznar, de fato claro, à minha direita.

Cumprimentei ambos. Tinha falado muitas vezes com Aznar, que me conhecia bem. Embora tivesse estado já em diversas ocasiões e reuniões com Chirac, ele não fazia a mais vaga ideia de quem eu era.

Ainda a sessão se não iniciara e já o meu colega espanhol, Ramón de Miguel, surgira, de trás, a perguntar-me, ao ouvido, a razão pela qual Guterres obtivera o lugar de destaque de que usufruia no topo da mesa. Porque a solidez das razões desse “upgrading” protocolar, que lhe adiantei, não emergiam como muito convincentes, vi Aznar, logo informado, ficar um pouco mais crispado do que de costume, perdendo aquele esgar, que nele faz o lugar de sorriso, no perfil de “señorito” que os espanhóis patentearam para sempre no mundo.

Por uma qualquer razão não evidente, a sessão teimava em não começar. Notei que Chirac ficava cada vez mais nervoso. Olhava para a presidência e fazia uns ruídos de óbvio desagrado. Não dava a confiança de me perguntar nada, mas olhava, de quando em vez, de viés, para mim. “Quem será este tipo?”, devia pensar. A certo passo, sempre visivelmente irritado, talvez não tendo nada melhor para fazer, perguntou-me: “Vous êtes qui?” Declinei a minha função e a ele, sem a menor reação facial, saiu-lhe um: “Ah! Oui! Je vois!”. E continuou agitado, mexendo-se na cadeira. A certo ponto, exasperado, exclamou, num comentário geral, já um pouco alto: “Qu’est ce qu’on attend pour commencer?” E fazia gestos para o distante Ahtisaari.

Olhando com mais atenção à volta da mesa, eu tinha reparado que a delegação americana era das poucas que se mantinha de pé. O lugar dos EUA não estava preenchido. Clinton não aparecia.

Chirac não dera conta desse pormenor. Apenas achava estranho que a reunião não arrancasse. Com aqueles gestos largos que eram os seus, o homem da Corrèze, continuava, com umas onimatopeias à mistura, a “berrar baixinho”, para que se desse início à sessão. E repetia: “Mais qu’est ce qui se passe?”.

Divertido, por antecipação, com a reação que sabia que ia provocar nele, lancei, com um sorriso irónico: “Apparamment, on attend le président des États-Unis”.

O que eu fui dizer! (Eu sabia!). Chirac olhou para mim, furibundo, como se fosse eu o culpado, e exclamou: “Qui?! Ah! Non! Mais c’est pas possible!” E levantou os braços para Ahtisaari, esse mesmo já desesperado com o atraso do amigo americano.

Chirac só sossegou quando Ahtisaari se decidiu, finalmente, arrancar com a sessão. Disse umas primeiras palavras, mas logo suspendeu o discurso, olhando ao longe na sala. Fez-se um silêncio. Todos os rostos convergiram para o lugar onde ele se concentrara. Aliás, não era preciso: os flashes dos fotógrafos faziam uma bateria de luzes no meio das quais, com um sorriso beatífico, surgiu, num andar lento e bamboleante, que fazia lembrar o de Richard Gere, a figura de Bill Clinton.

O presidente americano não dava mostras de estar apressado, embora estivesse farto de saber que estava atrasado. Deu-se mesmo ao luxo, antes de se sentar, de ir cumprimentar duas ou três delegações. Ahtisaari, rotundo e nórdico, sem a menor expressão, esperava, atento e venerador, com o seu discurso suspenso (voltaria atrás).

Figurante apanhado no meio de um palco de ocasião, eu divertia-me imenso em ser testemunha privilegiada da cena. Em especial, mirava o meu vizinho da esquerda, que agora bufava, com nervosismo, um imenso mal-estar, por todo aquele rapto de protagonismo que Clinton conseguira fazer à cena. E ouvia-o rosnar, a “sotto voce”: “Alors! Ça commence ou pas?”.

Finalmente, tudo começou. Os intermináveis discursos.

Ao final do dia, regressámos a Lisboa, num C130 da nossa Força Aérea, numa viagem incómoda, com direito a uma sanduíche. Era tudo muito diferente do salmão com caviar que, nessa manhã, o hiper-inflacionado orçamento militar grego nos tinha proporcionado, a bordo do cómodo Gulfstream.

Passaram mais de duas décadas. Para a História, vale a pena dizê-lo, o Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu não deixou uma marca por aí além. Tenho alguma pena. Porquê? Ora essa! Porque um mero acaso fez com que eu tivesse estado, como singular intruso, na primeira linha do seu lançamento.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

O homem a quem roubaram a biblioteca


Não recordo o seu nome e, mesmo se dele me lembrasse, não o diria aqui. Era um homem muito simples, na casa dos 50 anos, que me contava belas histórias da sua infância em João Pessoa, na Paraíba, terra de que sentia saudades que a melhor vida que tinha em São Paulo não conseguia atenuar.

Era o meu motorista habitual quando tinha de me deslocar a São Paulo, ido de Brasília, o que ocorria com alguma frequência, nesses quatro anos em que vivi no Brasil. Era contratado através do Consulado-Geral e eu insistia que fosse sempre o mesmo.

Entre o aeroporto e os compromissos, ou nos intervalos entre eles, eu tinha por invariável hábito passar pela fabulosa Livraria Cultura, na avenida Paulista, de longe o mais completo e bem arrumado lugar de venda de livros em língua portuguesa, em todo o mundo. Por necessidade, por tentação ou por simples vício, nunca de lá saía sem um saco, mais ou menos recheado, de edições brasileiras.

Numa das muitas vezes em que eu acomodava no carro as novas aquisições, esse meu motorista inquiriu:

- O senhor consegue ler todos esses livros que compra?

Expliquei-lhe que não, longe disso!, mas que eu fazia parte de um grupo de pessoas, bastante vulgar, que compra sempre muitos mais livros do que aqueles que alguma vez conseguirá ler, mas que, nem pelo facto de disso ter plena consciência, era capaz de deixar de o fazer. Era uma espécie de "doença", algo dispendiosa mas incurável. Sem surpresa, fiquei com a impressão de não foi sensível a esta minha irónica explicação.

Segundos volvidos, disse-me: 

- Eu também já li um livro.

Aceitei com discreta delicadeza a sua singular revelação e inquiri que livro era.

- Era um livro sobre religião, escrito por um americano, um livro muito bom. Gostava de lê-lo outra vez. Mas emprestei-o a um conhecido que foi para João Pessoa e nunca mais consegui voltar a lê-lo. Já falei com gente de lá, para lho pedirem, mas não mo devolve. Para o ano, quando fôr à Paraíba, vou ter com ele e vai ter de mo devolver. A bem ou a mal.

- Mas há tantos livros! Porque é que não lê outro livro? Por exemplo, a pessoa que escreveu o livro que leu até pode ter escrito outros, tão bons ou melhores do que esse. Sabe o nome da pessoa que escreveu o livro?

- Não sei, não me lembro, mas também não me interessa. Eu só quero voltar a ler esse livro. Não quero ler outros livros.

E calou-se, numa tristeza evidente.

Nunca cheguei a saber como se chamava o livro que o meu simpático motorista brasileiro tinha lido, nem quem era o americano que o tinha escrito. E para sempre senti imensa pena daquele homem, não pelo facto de não querer ler mais livros, mas porque percebo muito bem a angústia de alguém perder aquela que era toda a sua biblioteca.

domingo, dezembro 20, 2020

“Observare”


Abordámos, neste programa, a instabilidade político-militar no norte de Moçambique e a projeção regional da Turquia, nomeadamente no conflito azeri-arménio. Falei da admissão pelo rei do erro sueco no modelo de gestão da pandemia e do banimento da Rússia das competições desportivas internacionais. Recomendei, a fechar, um livro de Fareed Zakaria.

Pode ver o programa aqui.

Velocidades

Ao ver as sondagens (há-as para todos os gostos e ambições) lembrei-me do conselho de Juan Manuel Fangio, quando perguntado a que velocidade se devia conduzir para ganhar uma corrida: “O mais lentamente possível. Basta chegar antes do segundo...” 

António Costa estará a seguir Fangio?

sábado, dezembro 19, 2020

O exagerado

Custou-me a reconhecê-lo, com a máscara, a porta da livraria, hoje de manhã.

Lembro-me dele como um radical. E, sempre, com um verbo exagerado.

Careca, mais gordo, mais velho, reformado há muito, mas sempre com aquele sorriso jovial, o mesmo que tinha quando andávamos envolvidos nas "guerras" políticas radicais dos anos 70.

Falámos do país e dos dramas caseiros. E ele saiu-se com esta:

- Felizmente que pertencemos a uma geração realizada. Lembras-te quando lutávamos por uma sociedade sem classes?

Eu lembrava-me, mas não percebia onde ele queria chegar.

- Pois bem! Conseguimos o que queríamos: temos hoje uma sociedade sem nenhuma classe...

Continua um exagerado.

“Long drink”


No ano de 2004, aquele pobre país da Ásia Central, tal como os outros com o nome a acabar em “ão”, mantinha, no essencial, todos os reflexos típicos da época comunista, tal como eu os recordava dos anos 80.

O único hotel disponível, marcado pelas autoridades, era mais do que espartano, com o elevador avariado e uma desfuncionalidade geral irritante. Só os preços tinham um mínimo de "elevação", provavelmente inflacionados para estrangeiros.

Os quartos estavam decorados de uma forma inenarrável, as casas de banho eram dignas de pensões portuguesas do tempo do Estado Novo, as camas suscitavam insuperáveis dúvidas de limpeza. Como era só por uma noite, não valia a pena fazer de tudo aquilo um drama.

Logo que instalado, desci para o "hall", juntando-me aos quatro colegas que comigo vinham de Viena, cúmplices desse périplo de "fact-finding mission", que nos faria fez atravessar todas as cinco Repúblicas da região. É um mundo estranho, com a Rússia a norte, que vai da Turquia às fronteiras com o Irão, o Afeganistão e a China.

Porque, de outras paragens, já trazíamos algumas experiências divertidas, rimo-nos um pouco da situação, sob o olhar patibular de uma matrona mal encarada que, na receção, era um modelo acabado de inospitalidade.

Perguntámos se podiamos beber qualquer coisa, dado faltar ainda algum tempo para o jantar oficial que nos aguardava. Com um gesto displicente, apontou-nos um bar ao fundo da sala. Encostados a um canto do balcão, estavam dois personagens de blusão de couro, manifestamente ali colocados para observar os nossos movimentos.

Os meus colegas pediram refrigerantes, mas eu tive a ideia de querer um vodka tónico, honrando o álcool preferido daquela parte do mundo. Recordo que sempre bebi, ali na Ásia Central, magníficos vodkas!

O barman, que tinha sido educado na mesma escola de simpatia da rececionista, respondeu-me, em macarrónico inglês, que só serviam "long drinks" depois das sete horas. E eram aí seis e picos.

“Long drink”! Achei curioso aquele preciosismo, que ia das “Cuba libre” aos “gin tónico” e a tudo o que diluísse bebidas fortes. Mas o que tem de ser tinha muita força, em especial nesse “Absurdistão” pós-soviético.

Pedi, assim, uma água tónica. Depois, pedi algum gelo. Deixei passar uns minutos. Como eu suspeitara, os dois matulões da segurança bebiam vodka, em pequenos copos. Quando os vi pedir outra dose, disse ao barman que também queria, para mim, uma vodka. Hesitou por um segundo, mas não tinha nenhuma razão para recusar o que acabara de dar aos seguranças. E lá me trouxe um copo com vodka. Dose generosa, para me calar.

Aí, não resisti: com um gesto largo, verti a vodka sobre a água tónica com gelo e exclamei: "Vodka tonic!". Os meus colegas desataram às gargalhadas e tenho a impressão que os seguranças também sorriram. Só temi que o barman tivesse uma Kalashnikov, para poder concretizar o ódio com que me olhava. 

sexta-feira, dezembro 18, 2020

O bom estado da União


A pandemia abateu-se sobre a Europa, como se abateu sobre todo o mundo, de uma forma devastadora: com imensas mortes diárias, com uma tensão inédita sobre os serviços de saúde, com uma disrupção das atividades económico-sociais, com impactos nos mercados de trabalho, com falências e suspensão de atividades produtivas, com a indução de um ambiente de pânico, de desânimo e de desesperança. 

Acresce que os governos nacionais viriam a revelar uma surpreendente diversidade de reações, algumas delas tributárias de abordagens filosóficas e científicas que, pelo menos durante algum tempo, criaram uma espécie de competição entre modelos. Para muitos cidadãos, entre os quais me incluo, foi estranho ver Estados que se pensava marcados por uma cultura sanitária obedecendo a “protocolos” comuns, quiçá desenhados no quadro multilateral, à luz das melhores práticas de casos passados, enveredarem por caminhos diversos, às vezes contraditórios.

Neste ambiente, que assumiu de início proporções de algum desvario, foi interessante assistir a uma atitude crescentemente afirmativa por parte da Comissão Europeia, que tinha então poucos meses de exercício, no esboçar de respostas à crise. E foi reconfortante perceber que, à fragilidade comum, perante uma ameaça de perfil inédito, sucedia uma abordagem sensata, responsável, construtiva. 

A presidência alemã, depois de 1 de julho, revelou uma excelente liderança na coordenação dos Estados membros, funcionando como aliada operativa da Comissão, com o Banco Central Europeu, num novo esforço “whatever it takes”, a mostrar-se como uma base essencial de confiança para os mercados.

O resto, com diálogo e pertinácia, veio de seguida. Foi o estímulo para a produção rápida das vacinas, o trabalho coordenado para as garantir, logo que possível, para todos os cidadãos residentes nos Estados membros. Foi a gestão prudente dos problemas criados à livre circulação de pessoas no espaço europeu. Foi a suspensão da rigidez da condicionalidade macro-económica, com vista a permitir aos diversos governos efetuarem os desembolsos de emergência essenciais para sustentar os impactos nacionais do congelamento das economias, sem com isso serem acusados de estarem a violar as regras europeias. Mas foi muito mais: foi a imediata reflexão, mediada pela Alemanha, sobre a necessidade de ser promovida, a prazo, uma forte injeção de capitais nas economias nacionais, suportados - “hélas”! - por empréstimos europeus, garantidos pelas instituições da União, daí não decorrendo, na parte essencial dessas ajudas, um encargo para as dívidas soberanas. 

No meio disto, a Europa teve de enfrentar a hostilidade celerada do outro lado do Atlântico, o vai-e-vem ciclotímico de Londres, o oportunismo meliante de alguns dos seus próprios Estados. E muitos outros dossiês complexos. Não sei, no momento em que escrevo, onde estamos no Brexit. Mas, aparte esta incógnita, a herança que a presidência portuguesa recebe é séria e responsável.

Suecas



A propósito daquilo que ontem disse o rei sueco, confessando os erros cometidos pelo seu país no combate à pandemia, lembrei-me da primeira vez que fui à Suécia.

Portugal nem sempre teve, em matéria de turismo, a onda cosmopolita que por aí andava nos últimos anos, até à chegada da Covid. Num passado um pouco mais distante, os estrangeiros que nos visitavam eram muito poucos e o Algarve, com a costa do Estoril reservada para os mais abastados, era o nosso destino mais popular.

Terá sido nos anos 60 que se criou o mito das suecas. Desciam das neves e descascavam-se nas nossas praias. Eu não sei se as suecas eram mesmo suecas, ou se as dinamarquesas, noruegueses e outras vizinhanças nórdicas cabiam no conceito. Mas só se falava nas suecas. Liberais nos costumes, bem desenhadas nos corpos, loiras como as imperiais, faziam as delícias de quem, por cá, lhes caía no goto.

O que eu não sabia, confesso, é que essa fama do êxito sueco nas nossas praias era conhecido na própria Suécia.

Um dia, no final dos anos 60, cheguei à Suécia, ido de Portugal, “à boleia” (iniciada na Rotunda do Relógio, em Lisboa, até chegar à fronteira da Noruega. Faria uma idêntica aventura um pouco mais tarde).

Eu tinha saído nesse dia de Copenhague, de mochila às costas, depois de ter passado pela embaixada da China para obter um volume das obras do Mao que me faltava (e que nunca leria). Da capital dinamarquesa, consegui chegar a Helsingør, onde queria conhecer o castelo do Hamlet. Recordo-me ter sido uma “visita de médico”, apenas para marcar o ponto turístico. Tomei depois o ferry para Helsingborg, a cidada sueca em frente, e, dali, tentei arranjar uma boleia para o norte, pela estrada a acompanhar a costa.

Por qualquer razão, a boleia não estava fácil. Depois de quase uma hora de seca, com o tempo a passar, lá parou um carro, guiado por um tipo nas casa dos 40 anos. Disse-lhe que pretendia ficar em Falkenberg. Aleluia! Ele passava mesmo por lá, no seu percurso!

Na conversa, em inglês, vi-o supreendido com o meu “esforço”, de vir de tão longe até à Suécia. “Porquê a Suécia?”, perguntou.

Eu não tinha uma boa explicação, salvo que me apetecia conhecer o mundo. Que razão haveria para ir à Suécia? Os filmes do Bergman eram então, para mim, uma imensa seca, ainda não tinham surgido os ABBA e a única Greta que de lá se conhecia tinha então muito mais Garbo, mas também muito mais idade, do qua aquela de que toda a gente hoje fala (a quem um amigo meu diz que nunca perdoará, por ter destruído a imagem glamorosa das adolescentes suecas que cultivara desde a sua juventude).

A certa altura, depois de termos falado alguma coisa sobre Portugal, ele pareceu ter “descoberto a pólvora” (logo ele, que era contemporâneo de Alfred Nobel, o dos prémios, que inventou o dinamite): “Ah! Já percebi! Você é português! Está tudo explicado: veio por causa das suecas. Nós sabemos que, lá em Portugal, vocês são doidos pelas suecas. Vem na nossa imprensa! É isso! Você veio à Suécia por causa das nossas raparigas! Agora percebi tudo!”

Num instante, eu tinha-me transformado, aos olhos de ele, num sátiro latino, um bárbaro vidrado no pequename nórdico, que tinha atravessado um continente para concretizar alguns sonhos lúbricos.

Eu já não sabia o que havia de lhe responder, tanto mais que, mesmo com muito boa vontade e imaginação, não me ocorria nenhum grande motivo para andar por ali a passear. O tipo, entre gargalhadas, insistia, comigo cada vez mais enterrado no banco do carro: “Mas gosta das suecas, não?”.

A mim, que nunca conhecera nenhuma sueca, mas que também não queria dar parte de fraco, no inglês macarrónico que era então o meu, e porque estava a ficar um tanto saturado por aquele preconceito,  que tresandava a “righteousness” pontuada com risadas, saiu-me então esta pérola: “Ainda não conheci nenhuma sueca. Quando conhecer, logo verei se gosto ou não”.

O homem não terá apreciado excessivamente a minha resposta “grossa”. Passou a falar menos, mas lá me deixou na pousada de juventude de Falkenberg.

Já era tarde, mas continuava imensa claridade. Essa era a “midsummer night”, o dia mais longo do ano, em que a luz, por essas zonas do mundo, não chega a desaparecer por completo e a noite acaba por não se passar como esperaríamos que ums noite normal se passasse.

Na pousada, estava a preparar-se uma ceia coletiva, a ter lugar - recordo-me, porque nunca tinha visto nada assim - num cemitério que era simultaneamente um jardim (descobri agora uma imagem desse espaço).

Conheci, nessa inesquecível e estranha noite, gente de diferentes nacionalidades, que enchia a pousada de juventude. Mas, bolas!, nenhuma delas era sueca.

quinta-feira, dezembro 17, 2020

Vidas


Soube que morreu, há meses. A morte esteve sempre ligada à sua vida. Dirigia a mais reputada casa funerária da cidade. Era um homem de uma imensa delicadeza, o senhor Euclides.

Por quatro vezes, bem contadas, recordo bem, naquelas horas, fora do dia normal, em que, por regra, as tragédias familiares se consumam, tive com ele as curtas conversas telefónicas que sempre é necessário ter.

Em todas, sem exceção, recordo a sua serenidade, a sua atenção e, em especial, a disponibilidade imediata para nos libertar de tudo o que pudesse pesar sobre o momento, sempre penoso, que atravessávamos. “Não se preocupe. Vou já para aí. Eu trato de tudo.” E tratava, com discrição, educação, sem o menor alarde, com um profissionalismo exemplar.

Quando ia a Vila Real e passava junto da sua loja, e se acaso o vislumbrava no interior, sempre trajando entre o negro e o cinzento, entrava a cumprimentá-lo. Fazia-o com gosto, porque era a retribuição mínima que a sua sempre delicada atenção justificava.

Um dia, perto de um Natal, para lhe dar Boas Festas, assomei à sua porta, ali em frente ao Santoalha, ao lado da montra com figuras religiosas e anúncios de alguns mortos que o meu longo afastamento da cidade me faz já desconhecer.

Eu estava, ao tempo, embaixador em Paris e, ao ver- me, o senhor Euclides saiu de trás do balcão, para cumprimentar-me: “Ainda hoje falei do senhor embaixador a um colega de Portalegre. Ele foi a França buscar um cadáver e queixou-se-me das demoras consulares por lá".

Burocrático, tentando mostrar a utilidade da minha função, recordo-me de ter reagido: “Esteja à vontade, senhor Euclides! Quando lhe puder ser útil, é só dizer!”.

Ao virar a esquina, olhando a montra do ourives e com o Bragança ainda com jornais, dei comigo a pensar: entra-se para uma carreira diplomática com o sonho de fazer parte de grandes negociações internacionais para acabarmos a disponibilizar-nos para agilizar negócios da morte.

Enfim, é a vida!

Respeito

A profunda revolta sentida pelo povo palestino, depois de décadas de injustiça e de hostilidade a que continua a ser submetido pelos governo...