Nos últimos anos, os portugueses têm vindo a criar o sentimento de que a capacidade de gerirem o seu próprio destino está cada vez mais limitada. Se durante algum tempo acreditavam que a sua soberania era partilhada com a de outros, no quadro europeu, hoje estão já maioritariamente convictos de que essa autodeterminação, naquilo que lhes é essencial, já quase desapareceu. Quando olham para os “diktats” que lhes surgem de Bruxelas ou de Frankfurt, embora suspeitando que, na realidade vêm de Berlim, muitos dos nossos concidadãos assumem já uma atitude fatalista, às vezes fermentando uma raiva que, cedo ou tarde, acabará por alimentar um euroceticismo com inevitáveis consequências políticas.
Há qualquer coisa de “colonial” neste sentimento de resignação, a ideia de que se vive sob uma imparável e irreversível tutela externa. Um dia, os nossos agentes políticos irão entender que parte do seu atual desprestígio perante os cidadãos deriva da crescente perda de legitimidade que essa dependência externa induz na sua imagem - isto é, de que serve elegê-los, se são outros quem dita as regras? O período da “troika” agravou muito esta perceção e, mais recentemente, o saldo das crises bancárias e as fortes limitações externas impostas a um governo que procura testar alguns caminhos diferentes também tem ajudado a sedimentar essa ideia.
De um certo modo, embora isso possa parecer estranho a quem me lê, esta noção de que fomos desapossados do poder e da soberania induz alguma “preguiça”. Eu explico. Se é “de fora” que chega o quadro normativo em que nos movimentamos, se é daí que emanam as “ordens” que nos condicionam, se a Europa exerce o seu poder fiscalizador como a ASAE atua num restaurante, então, pensarão muitos, para quê fazer mais do que isso? Bastará ir cumprindo aquilo que nos ditam e os dias irão correndo.
Ora a realidade é que essa abulia cívica é não só o caminho inexorável para a estagnação como traz consequências muito deletérias quanto à capacidade do país recuperar alguma da margem de manobra perdida e, pouco a pouco, reganhar espaço no terreno exterior. E digo isto independentemente do destino da atual solução governativa.
O que aí virá na vida europeia, as novas tensões que estão a abalar realidades que julgávamos quase perenes na nossa ideia do futuro, os novos equilíbrios que a relação da Europa com os EUA – qualquer que seja o futuro do TTIP – vai provocar, num contexto de agravamento que tenho por expectável na relação ocidental com a Rússia, tudo isso deve obrigar a que coloquemos algumas questões a nós próprios. São perguntas cujas respostas não nos torna independentes dos outros, mas que podem ajudar-nos e voltar a intervir de forma mais decisiva nos destino do país que é o nosso.
Desde logo, sobre o grau do nosso envolvimento no projeto europeu. Pretendemos prosseguir um integracionismo “à outrance”, que tem sido a nossa opção, ou é nossa intenção reservar algumas margens de soberania, aproveitando a crescente deriva para uma integração diferenciada que parece poder marcar o processo europeu futuro?
Ainda neste quadro, optamos por manter a “aliança” com Berlim, que tem sido a linha nunca interrompida desde antes da nossa adesão, ou encaramos a possibilidade de reforçar uma linha “sulista”, sob uma possível liderança francesa, esgotada que esteja, por impotência de Paris, a preservação do “eixo” com Berlim? Nesse cenário, que corresponderia à fixação de uma linha divisória entre o Norte e o Sul da Europa, teríamos de estar preparados para as consequências dessa opção na atual unidade do euro.
E se o Reino Unido sair da União, o que não espero nem desejo? E se ficar, reforçando as suas “exclusões”, eventualmente polarizando outros Estados onde as reticências a Bruxelas só têm condições de prosperar? Continuamos o nosso atual tropismo de “fingir de Benelux” ou, num choque de realismo, sentindo que não basta voluntarismo para sustentar políticas que dependem da capacidade económica, optamos por uma maior diferenciação na adesão às política, mais ponderada e menos automática?
E o Atlântico em tudo isto? E se enveredarmos pela preservação da nossa riqueza marítima, retirando-a da tutela europeia em que, lentamente, parece diluir-se? Que parceiros podemos convocar, autonomamente, para esta aventura?
Há muito trabalho de casa que necessita de ser feito. E, sem ele, nada feito.
(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios", na sua edição especial de 13º aniversário, com outros 38 convidados)