terça-feira, janeiro 18, 2011

Europa

É sempre estimulante ouvir falar Hubert Védrine, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, no governo de Lionel Jospin. A sua leitura da Europa e do mundo aparece marcada, nos dias de hoje, por uma dose de realismo que quase roça o cinismo (embora etimologicamente, cinismo esteja muito longe de querer dizer o que hoje aparenta: cínico seria alguém que teima em dizer não e em abalar o conformismo, o que cola melhor a Védrine).

Ontem à noite, num grupo de amigos, Védrine fez um elogio rasgado de Barack Obama, que considera uma personalidade extremamente inteligente e muito mais avançado do que a América contemporânea - o que, a seu ver, pode justificar muitas das dificuldades políticas que enfrenta e os obstáculos que vai ter de ultrapassar para ser reeleito. Obama terá interiorizado já que os EUA só poderão ambicionar a ter uma "liderança relativa" do mundo - um conceito redutor de poder que os atuais americanos estão ainda longe de poder aceitar.

Sobre as relações EUA-Europa, Védrine é de opinião que os europeus não perceberam a "agenda" sob a qual Obama foi eleito, que tem essencialmente a ver com a saída da crise social interna e, no plano global, com o dédalo estratégico em que a administração Bush envolveu o país, nomeadamente na zona do Golfo. Daí a "desilusão" provocada deste lado do Atlântico pela pouca importância dada por Obama à Europa, onde a não existência de problemas prementes conduz, naturalmente, à desaparição em Washington de uma desnecessária retórica de proximidade prioritária, de que nem sequer Londres já beneficia.

Muito curiosa foi a fórmula que Vérdrine utilizou para caricaturar o modo como os americanos olham para o processo integrador do "velho continente", onde dão preeminência quase absoluta ao reforço e estabilidade da NATO. A União Europeia, para os EUA, não sendo levada a sério como entidade política com identidade própria ("e há alguma razão para que devessem ter uma ideia diferente?") é vista como uma espécie "departamento económico da NATO", razão pela qual, aos olhos de Washington, não há nenhuma razão para que as fronteiras (europeias) de ambas não coincidam (daí a insistência na entrada da Turquia para a UE).

Mais do que poder dar ou não razão a Védrine quanto a esta visão americana, talvez nos devamos interrogar, cada vez mais, sobre se há uma real razão para que o outro lado do Atlântico nos olhe assim.

Ainda os escritores

Já aconteceu a algum dos leitores deste blogue entrar numa refeição, com diversos convidados, e, dentre eles, vir a calhar a seu lado, precisamente, o autor do livro que na véspera começou a ler? Pois foi isso que me ocorreu, hoje, com Michel Houellebecq, autor do "La Carte et le Territoire", obra vencedora do prémio Goncourt de 2010. Como tive o azar da minha leitura andar ainda pelas páginas 50 e tal, quase não me atrevi a falar-lhe do livro...

Um dia, no Rio de Janeiro, numa das minhas frequentes visitas à Academia Brasileira de Letras, fui apresentado a um dos seus 40 "imortais", o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Trata-se de um cronista fascinante, que uma ou duas vezes por semana escreve deliciosos textos no "Estado de S. Paulo". Ao tempo que vivia no Brasil, eu não perdia nenhum. Por coincidência, uma semana antes desse encontro, tinha acabado de ler uma sua autobiografia, intitulada "Quase memória". Disse-lho. O escritor, com o ar benevolente de quem acredita pouco que os diplomatas possam ler muito, retorquiu: "Ah! sim? Espero que tenha gostado..." E passou adiante. Aí eu insisti: "Diga-me uma coisa! Ao ler o livro fiquei com uma curiosidade: quando fala daquela falsa viagem do seu pai a Itália, para enganar os amigos, isso passou-se mesmo assim?". Cony abriu muito os olhos, "viu-me" pela primeira vez e exclamou: "Oh! Mas o embaixador leu mesmo o livro?!".

Quero ter a ingenuidade de pensar que, por esse instante, a profissão diplomática, em geral, me ficou a dever o favor de poder tê-la feito subir um pouco na consideração de um dos grandes das letras brasileiras.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

António Lobo Antunes

Simplesmente comovente é como posso qualificar o espetáculo "Estado Civil", a que ontem à noite assisti no  espaço do MC93, em Bobigny, nos arredores de Paris. Feito a partir do texto de uma entrevista dada por António Lobo Antunes à jornalista Maria Luísa Blanco, editada em 2002, o trabalho traça, de forma criativa e com uma simplicidade cénica muito rica, o percurso pessoal do escritor, ligando extratos das conversas a textos das suas obras e cartas. É um retrato vivo do Portugal contemporâneo o que acaba por resultar deste excelente espetáculo, onde as memórias familiares de infância (de uma infância em que todos descobrimos traços que nos são comuns) e os traumas evidentes de um percurso profissional dedicado a mentes perturbadas se somam às inquietações eternas da memória lusa da guerra colonial, tudo visto à luz dessa bizarra melancolia, saudosa e torturada, que parece ser o nosso eterno destino e, quem sabe?, o segredo do "esplendor de Portugal", que Lobo Antunes ironicamente celebra num dos seus livros.

Durante todo este primeiro semestre de 2011, diversos textos e pretextos servirão para celebrar a genialidade do escritor, numa temporada teatral (e não só: haverá leituras, gastronomia e muito mais , neste conjunto de eventos intitulado "Ce soir je n'y suis pour personne sauf pour António Lobo Antunes") de 50 sessões organizadas pelo MC93, dirigido por Patrick Sommier, uma estrutura de criação cultural independente que, para o efeito, se aliou à editora francesa de Lobo Antunes, Dominique Bourgois. "Estado Civil" é o primeiro espetáculo dessa série, a poucos dias do lançamento da 25ª tradução francesa do autor. 

domingo, janeiro 16, 2011

Noite em Budapeste

Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio. Eu acompanhava-os, bem como o meu amigo András Gulyás, o conselheiro diplomático do presidente húngaro, que conhecera, há quase 20 anos, em Luanda.

Substituindo nessa viagem o ministro dos Negócios Estrangeiros, eu havia estado com Jorge Sampaio, horas antes, num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões da NATO iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se compreensivelmente tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci esse olhar. 

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade. Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de história, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Portugal, como todos reconhecem, comportou-se de forma impecável perante os países que eram candidatos à integração. A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia, preside aos seus destinos, desde há dias. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro. Göncz, hoje com 89 anos, deixou a presidência há mais de uma década. 

Com todo o respeito pelas instituições de cada Estado, constitui hoje uma nossa obrigação comum velar para que os valores que subscrevemos no quadro dos tratados europeus - na esfera da democracia, da liberdade, do respeito pelos direitos fundamentais e da preservação do Estado de direito - sejam observados, sem restrições, em todo o espaço da União. De Lisboa a Tallin, passando por Budapeste, claro.

Em tempo: o meu amigo András Gulyás, a quem este post entretanto chegou, escreveu-me a recordar o encontro que relatei. Os blogues também servem para reencontrar velhos amigos.

sábado, janeiro 15, 2011

Tunísia

As reações, em geral cautelosas, particularmente da comunidade internacional ocidental, face às mudanças em curso na Tunísia estão a ser interpretadas de forma negativa por certos setores com expressão mediática, nomeadamente aqui em França. Alguns comentadores interpretam as declarações de poderes políticos externos, que começam a exprimir alguma simpatia com a nova onda democrática tunisina, como um mero exercício de cinismo ou mesmo de hipocrisia, atentas as relações que a generalidade desses poderes mantinha com o regime deposto de Ben Ali. E,  em especial, condenam a falta de uma aberta atitude de apoio, desde a primeira hora, àquilo que parece poder ser um novo tempo político no país, iniciado na rua e com expressão já nas instituições.

Acho que devemos ser prudentes e ter o sentido da medida das coisas. O regime deposto na Tunísia, cujo perfil político não oferecia dúvidas a ninguém, era o interlocutor reconhecido da comunidade internacional. Não eram desconhecidas as suas limitações em matéria de respeito pelos Direitos Humanos ou pelos princípios democráticos, mas era-lhe igualmente creditado um esforço de desenvolvimento económico e social, embora com um saldo seguramente distribuído de forma condenável. Mas a Tunísia não era - longe disso! - um "pária" no mundo internacional. Pelo contrário era, no seio do mundo árabe, um parceiro com o qual, por exemplo, a União Europeia mantinha um diálogo estruturado - o qual incluía, como é bom que se saiba, uma chamada regular de atenção para questões tão importantes como os presos políticos ou a liberdade de informação. Se os países democráticos, europeus ou não, só mantivessem relações com Estados que respeitam a pureza dos princípios democráticos e outras práticas que são caraterizadoras do Estado de direito, o seu universo diplomático seria muito reduzido. O diálogo com regimes "diferentes" constitui um elemento essencial do quadro diplomático internacional - e isso não é cinismo, é mero realismo, só condenado por quem nunca teve responsabilidades em matéria de relações externas.

Mas posso também perceber que alguma da hesitação da comunidade ocidental tenha, por detrás, uma outra preocupação: o receio de que um certo tipo de evolução política possa abrir a porta à emergência, em termos de influência ou poder, das forças integristas islâmicas, cuja progressão no seio da sociedade tunisina Ben Ali tinha combatido. É este, muito provavelmente, o dilema que atravessa alguns Estados amigos da Tunísia. Os quais, no entanto, estarão seguramente muito interessados em ver emergir, a partir do novo poder político em Tunis, uma sólida democracia, respeitadora dos grandes princípios que marcam a comunidade ocidental e geradora de um efeito benéfico extra-muros, induzindo o respeito pela vontade popular noutros países da região. Se possível, sem serem necessários os elevados custos humanos que a revolta do povo tunisino está a ter de suportar.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

"A última missão"

Nos idos de 1974, creio que no mês de Agosto, era eu adjunto da Junta de Salvação Nacional, fui um dia apresentado a um oficial pára-quedista que tinha como missão estruturar um grupo de milicianos que, no quadro da "intelligence" militar, deveriam refletir sobre a realidade nacional. Vinha convidar-me para integrar esse núcleo, que ficaria sediado no Palácio da Ajuda, onde hoje é o ministério da Cultura. Lembro-me de ter hesitado, por várias razões. Acabei por fazer parte do grupo em Outubro de 1974, já depois da desaparição da Junta.

Esse oficial era o major Moura Calheiros, um homem de fala suave e sorriso sereno e, ao que sei, também então estudante em "Económicas". O grupo viria a ser composto por gente muito diversa, curiosamente com orientações políticas bem distintas, do então PPD ao MES, do PS ao CDS, alguns sem partido conhecido. E, curiosamente, que eu saiba, ninguém do PCP. Profissionalmente, havia de tudo: futuros diplomatas, como o João Lima Pimentel e eu; economistas, como Agostinho Roseta, António Romão, Brandão de Brito, António Alves Martins, Carlos Figueira, Junqueira Lopes,  Jorge Calheiros, António Luís Neto; engenheiros, como Armando Sevinate Pinto ou Otto Uwe Leichsenring; licenciados em Direito, como Abel Gomes de Almeida, Rocha Pimentel, Sampaio Caramelo ou Alexandre Pinto Monteiro. Mas também um psicólogo, Vitor Moita, e um jornalista, Simões Ilharco, bem como pessoas oriundas de outras áreas profissionais. Durante alguns meses, nesse setor da 2ª Divisão do EMGFA, dirigido pelo depois general Gabriel Espírito Santo, produzimos vasta reflexão sobre o país mutante em que então vivíamos, "briefávamos" diariamente os nossos superiores e preparávamos textos de análise para a chefia da Revolução. Depois do 11 de Março, esse serviço foi extinto e seguimos vias militares diferentes, em especial no "verão quente" que se seguiu. Antes de sermos todos "mandados para casa", no segundo semestre desse ano, porque os milicianos já não eram necessários. 

Ao longo do ano de 1975, fui encontrando o major Calheiros pelos corredores do MFA, em dias exaltantes e noites exaltadas. Já funcionário diplomático, tive ecos das dificuldades da sua tarefa no âmbito dos pára-quedistas de Tancos, no quadro do 25 de Novembro.  Nunca mais ouvi falar dele.

Há semanas, li uma referência a um livro seu. Foi-me difícil adquiri-lo. São quase 700 páginas de uma memória dos tempos da guerra colonial, tendo como pretexto a sua integração numa missão de resgate dos restos mortais de companheiros, caídos em combate na Guiné. É um texto de tocante simplicidade, que revisita - com olhos de profissional militar, mas com uma visão humana muito serena e compreensiva - os tempos da luta e os seus ambientes, comparando figuras e situações de ontem e de hoje, da sociedade da África descolonizada e do que sobreviveu da memória de Portugal nesses palcos da nossa última aventura pelo mundo.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Nós e a Europa

A convite de uma tertúlia que mensalmente ouve um palestrante durante o almoço, dei ontem, em Lisboa, a minha perspetiva sobre o estado da Europa, o seu papel no mundo e o lugar de Portugal nesse cenário.

O grupo convidante era constituído, na sua maioria, por figuras conhecidas do nosso meio empresarial, entre os quais alguns antigos responsáveis por pastas governamentais. Era um ambiente saudável e dialogante, onde se cruzavam linhas ideológicas diversas - um ambiente que tenho pena, enquanto cidadão, que não se reproduza ao nível da sociedade política portuguesa, nos tempos de dificuldade que são os nossos.

Durante a discussão que se seguiu às minhas palavras, senti uma generalizada perplexidade quanto ao futuro do projeto europeu, sobre a capacidade de sobrevivência do euro e mesmo algumas dúvidas sobre a nossa possível política de alianças, nesse contexto. Verdade seja que o caráter algo interrogativo da minha intervenção também não foi de molde a proporcionar muitas pistas animadoras. Deixei, contudo, muito claro que entendo que a Europa continua a ser o nosso destino prioritário e inevitável, não obstante também considerar que a situação atual justifica um maior esforço de diversificação de laços e de interesses, no quadro da nossa política externa. Exatamente como está a ser feito.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Tribo peninsular

A cena passa-se nas Nações Unidas, nos anos 80. Foi-me contada, há dias, por um dos  ilustres protagonistas. À luz das convenções mais contemporâneas, pode haver quem a considere "politicamente incorreta". Mas eu arrisco.

Um grupo de trabalho sobre questões africanas suspende os trabalhos por uns minutos. Dois diplomatas, um espanhol e um português, trocam graças e, num presumível "portuñol", demonstram uma cumplicidade que surpreende alguns circunstantes.

Um dos diplomatas africanos, oriundo de um país fortemente dividido por conflitos étnicos, pergunta: 

- Os espanhóis e os portugueses, sendo vizinhos, não têm conflitos?

- Já os tivemos, e bem fortes, no passado. Mas isso já lá vai - responde o português.

- Sabes, nós, no fundo, pertencemos à mesma tribo - adianta o espanhol.

- Ah! São da mesma tribo! Assim já percebo porque é que vocês se dão tão bem! - conclui o africano.

terça-feira, janeiro 11, 2011

FMI (2)

Os efeitos de uma possível entrada do FMI (para sermos mais rigorosos, do "mecanismo de estabilização europeia", associado ao FMI) têm sido algo escamoteados entre nós.

Neste contexto, vale a pena anotar a perspetiva de José Manuel Correia Pinto sobre o "programa" político-económico que estará subjacente à vontade de alguns de verem as "receitas" do FMI aplicadas em Portugal:

"Qual é esse programa? A receita é conhecida. A pretexto de garantir recursos por um determinado período de tempo, aliás a juros bem elevados, o FMI arrogar-se-á o direito de exigir mais despedimentos, inclusive aqueles que agora não são possíveis, como na função pública; baixar os salários, incluindo o salário mínimo; limitar ao mínimo os apoios sociais ou mesmo eliminá-los, como será o caso do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego, etc.; liberalizar e embaratecer os despedimentos; acabar com o serviço nacional de saúde como serviço universal tendencialmente gratuito; onerar pesadamente o ensino, nomeadamente o superior; limitar os descontos das entidades patronais para a segurança social, estabelecendo igualmente um tecto para os descontos dos subscritores e para as próprias reformas, de modo a acabar com o princípio da solidariedade intergeracional e a abrir por esta via o caminho para a privatização da parte “rica”da segurança social; enfim, privatizar tudo que ainda houver para privatizar."

Será verdade?

As colónias e a censura

Nos tempos da ditadura, era estritamente proibida na nossa imprensa qualquer referência ao conceito de "colónias portuguesas". Toda a publicação periódica era sujeita a censura (mais tarde eufemisticamente designada como "exame prévio") e termos como esse eram zelosamente banidos de qualquer texto, pelos "coronéis" da rua da Misericórdia.

Um dia, a revista "O Tempo e o Modo", já numa sua fase politicamente radical, encontrou um método de contornar a proibição e decidiu utilizar o termo "colónias portuguesas" numa área da publicação por onde, seguramente, os censores não passariam os olhos: o preçário das assinaturas. Isso aconteceu apenas num único número (n.º 77, de Março de 1970), como a imagem seguinte documenta:

Desconheço os eventuais problemas que "O Tempo e o Modo" possa ter tido por esta divertida ousadia, que nunca vi referida, mas que aqui deixo registada.

"O Tempo e o Modo"* iniciou a sua publicação em 1963, sob a direção e propriedade de António Alçada Baptista, então uma interessante figura da intelectualidade católica pós-Vaticano II, proprietário da Moraes Editora. Dessa fase do nosso "catolicismo progressista", a revista começou a alargar-se à colaboração de setores socialistas e comunistas, os quais acabam por se tornar predominantes na sua orientação no final dos anos 60, já sob a direção de João Bénard da Costa. Em 1970, uma ainda maior radicalização acaba por colocar "O Tempo e o Modo" sob tutela de militantes maoístas, que conduzem ao desaparecimento da publicação. Com a "Seara Nova" e "Vértice",  contudo bastante mais antigas, "O Tempo e o Modo" integra o grupo das influentes e históricas revistas situadas na área da oposição ao Estado Novo.

*Alcipe revelou ontem, num comentário, uma saudável inveja bibliófica. Por este post fica informado que tem ao seu dispor (apenas para consulta, claro) a coleção completa encadernada de "O Tempo e o Modo". 

Português

"Desculpem, mas vou falar em português. Tenho muito orgulho em ser português" - José Mourinho, ontem, ao receber o galardão de "melhor treinador do mundo", atribuído pela FIFA.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

Rocha Vieira

Este é um post que preferia não ter de escrever, mas que, por uma questão de honestidade para comigo mesmo, entendo dever redigir.

O general Vasco da Rocha Vieira é uma personalidade militar e política que, não obstante conhecer mal pessoalmente, há muito me habituei a respeitar e considerar. Prestou elevados serviços ao Estado e tem uma notável folha de atividade pública, que o colocam, definitivamente, num patamar prestigiado da história da nossa democracia.

O jornalista Pedro Vieira é um amigo de há quase três décadas - conhecemo-nos numa passagem sua por Angola -, cujo profissionalismo sempre admirei, desde os tempos de "O Jornal" à "Visão", e com o qual mantenho uma excelente relação pessoal.

Agora, Pedro Vieira escreveu uma biografia de Rocha Vieira. Um livro apresentado numa bela edição da Gradiva, muito bem redigido, bastante documentado, sendo mais do que evidente que o biografado cedeu grande parte da informação ao biógrafo.

Rocha Vieira não necessitava deste livro, Pedro Vieira não necessitava de o ter escrito. Costuma dizer-se que elogio em causa própria é vitupério. E esta obra é elaborada num estilo laudatório que eu pensava já ter desaparecido, por onde perpassam ajustes de contas perfeitamente escusados, remoques que só apoucam o biografado, expressão de ressentimentos que, para mim, são muito pouco consentâneos com a imagem que eu tinha do general Rocha Vieira, a qual procurarei preservar, apesar deste livro. É um livro como uma visão totalmente unilateral, que dispensa, em absoluto, o contraditório, como se o que nele se afirma devesse ser tido como uma incontestável evidência. Em lugar de uma biografia, estamos perante uma hagiografia autorizada do general Rocha Vieira. 

Sei que o Pedro Vieira não vai gostar deste meu post. Mas ele também sabe que eu não escondo nunca o que penso e que, também aos amigos, digo sempre a verdade. E a verdade é que não gostei deste livro.

Diferenças

A televisão pública espanhola decidiu nunca mais transmitir touradas e, no seu livro de estilo, consagrou a tourada como uma forma de violência a que não é legítimo expor as crianças.

A RTP continua a ser a orgulhosa organizadora da "corrida RTP"  e a liderar um forte lóbi de propaganda tauromáquica nos "media" portugueses.

Cada televisão pública da península tem, assim, a sua ética. Diferente.

Coincidências

Ele há cada uma!

Há dois anos, mais ou menos por esta época, fui consultar um médico. Como cheguei cedo, fui para uma pastelaria próxima, fazer horas. Por lá apareceu um velho amigo meu, com quem troquei votos de bom ano. Desde então, só nos voltámos a ver, de raspão, num restaurante, há já muitos meses.

Voltei hoje ao mesmo médico, que, entretanto, mudou de local do seu consultório. No caminho, passei por um café. Lá estava aquele meu amigo*...

Caramba!

*Curiosamente, ele é um dos seguidores deste blogue

domingo, janeiro 09, 2011

Tintin e os polícias

Neste Natal, ao folhear*, numa casa de familiares, a edição portuguesa (pós-25 de abril) do álbum "Tintin na América", recordei o facto de um dia me ter dado conta de que a primeira aparição da história em Portugal havia sido objeto de uma discreta intervenção da censura. Já aqui havia falado do assunto, mas só agora posso documentar esse ridículo ato censório.

Hoje, dei-me ao cuidado de procurar, na coleção completa do "Cavaleiro Andante" (1952-1962), de que sou feliz proprietário, e lá fui encontrar, no nº 210, de Janeiro de 1956, a primeira imagem dessa história**. Olhem para ela:

O Estado Novo, na sua cuidadosa preservação das figuras da autoridade, entendeu não dever permitir que um polícia pudesse ser apresentado a fazer a continência a um gangster.

O "Cavaleiro Andante" optou também por uma tradução livre do texto original francês, que - já agora! - assim reza: "À Chicago, où règnent en maîtres les bandits de toutes espèces, un soir..." Talvez tivesse sido ponderada a necessidade de remeter para um prudente e bem qualificado passado essas mesmas aventuras. Não fosse dar-se o caso de, em 1952, alguém ter a veleidade de pensar que, noutras partes do mundo, pudesse haver "bandits de toutes espèces" a reinarem sob a proteção de polícias...

* Eu havia escrito "desfolhar", o que era um enormíssimo erro. Um leitor atento corrigiu-me, o que agradeço.

**Para os mais curiosos e conhecedores da obra de Hergé, noto que a história  tal como publicada no "Cavaleiro Andante" é claramente baseada na primeira edição do "Tintin en Amérique", que surgiu na revista belga "Le Petit Vingtième", em 1931, o que justifica a total diferença na coloração (a versão original era a preto-e-branco), para além de bizarros pormenores de "publicamente correto" que não vêm para o caso...

FMI

Anda por aí uma "escola" de pensamento fácil que é de opinião que a vinda do FMI em socorro das finanças portuguesas seria naturalmente desejável, por significar empréstimos a juros mais baixos dos que o que são praticados pelos mercados onde o Estado português se financia e, no essencial, representaria um sossego para estes. Essa "escola" - claro! - nunca se perguntou por que razão, se o cenário é assim tão róseo, todos os países mostram a maior relutância de terem de recorrer ao FMI.

Essa doutrina, que despreza, em absoluto, as dimensões de perda de soberania que o recurso a essa ajuda implicaria, para além do imprevisível pacote de medidas acrescidas de rigor que nos seria imposto, esquece um ponto essencial: a dívida mais importante com que Portugal se defronta - que não é a do Estado, mas a dos bancos nacionais - não seria abrangida por essa operação de "rescue". 

É estranho (será?) que poucos falem disto.

Vitor Alves (1935-2011)

Deve ser geracional: cada vez tenho mais mortos conhecidos.

Vitor Alves é um nome que, nos dias de hoje, pouco dirá a largos setores da opinião pública. Contudo, é pena que se não saiba que foi uma figura que muito contribuiu para a liberdade que abril nos trouxe, nessa magnífica aventura de 1974. Coordenador do programa do Movimento das Forças Armadas, era um homem sereno e de extrema cordialidade, um "cavalheiro" que, em diversas ocasiões, encontrei nos corredores da Revolução, com um sorriso simpático, um discurso e uma prática política de onde esteve sempre ausente qualquer radicalismo.

Um dia, no final dos anos 90, Vitor Alves procurou-me para tratar de assuntos profissionais, recordo-me que ligados à atividade de empresas nacionais em Marrocos. A conversa tinha condições para ser bastante breve. Num instante, vieram à baila os tempos do "verão quente". Os seus olhos brilharam e ali ficámos - o velho capitão de abril e o antigo oficial miliciano - a recordar gentes e factos desses tempos de esperança, por mais de uma hora. Nunca mais o vi.

sábado, janeiro 08, 2011

Ainda o WikiLeaks

Foi muito interessante o debate em que ontem participei na "Rádio Renascença", a convite de Marina Pimentel, a propósito do caso WikiLeaks, na primeira edição do novo programa "Em nome da lei". Durante quase uma hora, o juiz Eurico Reis, o professor universitário Luís Fábrica e eu próprio abordámos as consequências políticas e jurídicas do caso WikiLeaks.

No essencial, julgo que estivemos de acordo: tratou-se da divulgação de segredos de Estado, sujeita a procedimento criminal. E, na minha opinião, nenhum "interesse público", eventualmente arguível por alguns dados novos revelados nessa documentação, justifica uma devassa generalizada que põe em risco a segurança de Estados e dos seus servidores, que expõe interlocutores de boa fé e que cria um véu de suspeição sobre o exercício da profissão diplomática.

"Procedimento concursal"

Há semanas, uma colaboradora minha trouxe-me um documento para assinar onde se falava de "procedimento concursal". Tratava-se das regras para um concurso público. Recordo-me - e ela recordar-se-á também - que reagi levemente à utilização da expressão. Mas logo me foi evidenciado que se tratava de uma fórmula que vinha assim crismada num documento vindo "de Lisboa". Porque tinha pouco tempo, e talvez também pouca paciência para me preocupar com pormenores, lá assinei o papel. Mas fiquei a remoer o assunto...

Acabo de ler, no último número do "Sol", que o Pedro d'Anunciação (numa coluna não assinada, mas que destila a sua pena teclada) se insurge - e muito bem! - contra o termo "procedimento concursal". 

Meu caro Pedro: receio bem que já não vamos a tempo de evitar este esmagamento definitivo pelo "administrativês", essa espécie de degenerescente iliteracia criativa, que dá foros de lei a desnecessários neologismos, promovidos por alguns juristazecos "de trazer por casa".

No Partido

Há dias, fui à sede do Partido Comunista Português, na rua Soeiro Pereira Gomes. Só aí consegui adquirir a "Antologia Poética" de José Carlos Ary dos Santos, que um amigo brasileiro, há meses, insistentemente me pedia. Em todas as livrarias me diziam que a obra, das "Edições Avante!", estava há muito esgotada. Numa noite, ao ver na televisão uma declaração pública de um responsável do PCP, tendo como cenário de fundo o que me pareceu serem estantes de uma livraria, achei que essa poderia ser a solução para o meu problema. E foi.

Esta era a segunda vez que entrava numa sede do PCP. A primeira havia-me ficado bem gravada na memória.

Estávamos em Maio de 1974. Num jornal, apareceu a notícia de que o PCP iria abrir a sua primeira sede, numa certa noite, na rua António de Serpa (aquela que iria ficar eternamente crismada, na memória política portuguesa, como "a António Serpa", simplificando o nome do poeta). No texto, dizia-se que o partido, logo na ocasião da inauguração dessa sede, iria pôr à venda exemplares de documentos clandestinos editados durante a ditadura. Eu era, à época, um colecionador dedicado de publicações desse género, tendo já então uma apreciável coleção, a qual, naturalmente, ficaria muito enriquecida com o que o PCP viesse a disponibilizar.

Assim, ao princípio dessa noite, apresentei-me no nº 26, 2º E, da avenida António de Serpa. Atenderam-me com simpatia, dizendo-me que teria de aguardar por alguém, o responsável que ia pôr o material à venda. Os minutos foram, entretanto, passando. As salas, quase vazias de móveis, começaram a encher-se de pessoas, reconhecendo-se entre si. Eu tentava imaginar os encontros anteriores dessa gente, figurava as suas atividades no mundo clandestino dos comunistas, presumia alguns nas batalhas eleitorais em que se haviam envolvido, do MUD e de Norton de Matos a Humberto Delgado, de Ruy Luis Gomes à CDE. Mas, por muito que procurasse, nessas caras, figuras que tivesse encontrado no Congresso Republicano de Aveiro, na célebre sessão do Palácio Fronteira ou por ocasião da "Plataforma" de S. Pedro de Muel, eu não conhecia ninguém. E continuava sozinho. Até que, num certo momento, me dei conta do ridículo da situação.

Com efeito, ali estava eu, por um motivo mais do que fútil, numa festa que não era minha e que, para aquelas pessoas, era uma verdadeira ocasião histórica. Aquela era a data em que um partido que entrara na clandestinidade 48 anos antes, cujos militantes haviam sofrido como nenhuns outros a violenta repressão da ditadura, abria, na legalidade, a sua primeira sede. E eu era, nesse evento, um verdadeiro intruso. Começava a ter a sensação, porventura exagerada, que essa solidão já deveria estar a ser olhada com estranheza por alguns. Não procurava estabelecer contactos, com receio que alguém me perguntasse qual era a minha relação com o partido, que não era nenhuma. Discretamente, fui-me aproximando da porta de saída.

Foi então que dei, de frente, com uma cara conhecida, um antigo quadro do movimento associativo de Medicina, que eu cruzara em várias "guerras" universitárias, constando que estava ligado ao PCP. Olhou para mim, com algum espanto, sabedor que aquela não era a minha "praia" política, seguramente perplexo com a minha presença no seio dessa festa do "Partido" - como, à época, a maioria de nós designava o PCP. Imagino que devo ter feito uma risível figura, quando lhe expliquei: "Vinha aqui comprar "Avantes!" antigos, que li que iam ser postos à venda...".

O Sporting, o Porto e o Benfica

Hoje, fui simpaticamente convidado para ir, com um grupo, ver jogar o Sporting com o Arsenal, em Alvalade, no dia 26 de novembro.  O Sportin...