sábado, maio 03, 2025

Tarrafal


(Foto de Tânia Matos) 

Num final de tarde de um domingo, em Luanda, há mais de quarenta anos, no Kapossoca, um ancoradouro onde se guardam os barcos vindos do Mussulo, foi-me apresentada a figura franzina de um branco sorridente, de bigode. Teria, à época, menos de 50 anos.

O Fernando Valpaços, um bom amigo que tinha uma loja de artesanato e organizava umas festas divertidas numa moradia em que, em outras noites, vim a cruzar o "tout Luanda", disse-me: "O Francisco já conhece o Luandino?" Não conhecia.

Tive, interiormente, um sobressalto. Seria ele, o Luandino Vieira, o escritor, o resistente? Não tinha ar disso. Estava ali perante uma pessoa serena, suave, sem o perfil "épico" que eu associava ao nome de Luandino Vieira.

Por essa época, as relações entre Angola e Portugal andavam num péssimo estado. A imprensa oficial angolana - não havia outra, diga-se - dizia cobras e lagartos do governo de Lisboa, acusado de acolher com simpatia a UNITA e alimentar uma atitude desagradável face ao governo do MPLA. Poucas eram as figuras do regime angolano que corriam o risco de manter relações pessoais com os diplomatas portugueses, dos quais eu fazia parte. 

Voltando a Luandino. Aquele era mesmo Luandino Vieira, o escritor que, em 1965, ao tempo em que estava preso no Tarrafal, fora galardoado em Lisboa com o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores, pelo seu livro de contos "Luuanda" . O resultado é conhecido: a SPE foi assaltada pelos esbirros do regime, antecedendo a sua extinção oficial. O fascismo não brincava em serviço.

Luandino Vieira, ao que recordo, dirigia por essa época o instituto de cinema angolano. Era um intelectual do regime, ortodoxo e nada mediático.

O Fernando Valpaços propôs, a mim, ao Luandino e a um pequeno grupo: "Não querem ir beber um copo lá a casa?". E fomos. 

Numa espécie de varanda, comigo seguramente com um whisky na mão, procurei "confessar" o Luandino durante uma boa meia hora. 

Falei-lhe do livro, do seu antigo amigo e meu antigo professor de quimbundo Mário António, um intelectual luandense que tinha "mudado de sítio" político. E de algumas outras coisas mais. E também, claro, puxei o Tarrafal a terreiro, mas rapidamente percebi que queria mudar de conversa. Acabámos por falar de outros temas anódinos. 

Devo confessar que saí um pouco frustrado com esse meu único encontro com aquela que tinha sido uma figura maior da história política e cultural de Angola. Não me recordo de o ter voltado a encontrar nos quase quatro anos que passei por Angola. O que não deixa de ser um pouco estranho.

Hoje, lembrei-me de Luandino Vieira. Estive no Tarrafal, no presídio onde Luandino passou oito penosos anos da sua vida. 

Percebi agora um pouco melhor por que razão, nessa noite de Luanda, não lhe apeteceu alimentar o tema. Estivesse eu no lugar dele e teria procedido da mesma maneira.

É que também eu, turista político conjuntural por um dos lugares de memória de um Portugal que, por cima do império, para aqui foi um dia exportado à força, sinto dificildade em transmitir, agora por escrito, o que senti nesta romagem, que tinha prometido a mim mesmo, a um dos nossos lugares de tragédia e de ignomínia histórica.

4 comentários:

aguerreiro disse...

Conheci o Luandino anos depois travestido em eremita no convento de São Paio, em loivi Vila Nova de Cerveira onde o seu conterrâneo escultor José Rodrigues tinha a sua Tebaida.
Era um ser ensimesmado, fugidio e avesso a contactos.

Anónimo disse...

Percebo tudo. Só não percebo como é que um revolucionário angolano deixa Angola e vem viver para Portugal. As voltas que a vida dá.

Retornado disse...

Penso que o Luandino não deseja que os seus ossos sejam transladados um dia para Luuanda.

Era bom que o homem não desistisse, pois dá ideia que desistiu da sua luta.

Anónimo disse...

Visitei o Tarrafal em 2019, e sai de lá sem nenhuma vontade de falar sobre isso. Nessa visita, das coisas que mais me marcou, foi uma frase do médico lá colocado por Salazar que estava inscrita numa parede e dizia qualquer coisa como "não vim para aqui para curar ninguém, vim para passar certidões de óbito!". Como diz "um dos nosso lugares de tragédia e ignomínia histórica"

Aposto

A missiva de Mark Rutte a Trump é um nojo. Mas até aposto que, no seio dos seus colegas, a grande maioria aplaude-o e elogia o seu "sac...