Pelos corredores de Caxias, nesses dias posteriores ao golpe do 28 de Setembro, cruzavam-se os barbudos da época, a maioria à paisana, alguns fardados com um porte que fazia a angústia dos puristas.
Algumas salas estavam atulhadas de papelada da PIDE, a cujo escrutínio sabia-se que tinham acesso figuras com ligações partidárias, com caras sempre graves.
Eu e o Casimiro Talhinhas, então capitão da Força Aérea, tínhamos sido escolhidos pelo brigadeiro Pedro Cardoso, que chefiava a divisão de informações do EMGFA, onde trabalhávamos, para ir a Caxias consultar alguma documentação que poderia ser relevante para dossiês que estávamos a seguir.
Por vaga indicação de um tenente da Marinha – os marinheiros pareciam dominar Caxias –, fui parar a uma determinada sala e iniciei o vasculhar de uns caixotes com documentos.
De súbito, uma voz masculina interrompeu-me:
“O que é que está aqui a fazer? Quem é você?”.
Voltei-me e vi-me confrontado com uma figura à civil, especada na soleira da porta, claramente in charge da situação e do lugar. Eu também estava sem farda, mas socorri-me de uma vaga autoridade militar:
“Eu sou oficial do Exército”. E contra-ataquei, ainda amável: “E o meu amigo quem é?”.
A resposta veio seca, definitiva:
“Chamo-me Jean-Jacques Valente e você não pode estar aqui!”.
Nesse segundo, rebobinei década e meia de história contemporânea e dei-me conta de estar perante alguém que tivera um papel central na saga da morte do capitão Almeida Santos, revolucionário do “golpe da Sé”, nessa tragédia político-romântica que o José Cardoso Pires viria a consagrar, anos mais tarde, na «Balada da Praia dos Cães».
Tentei recuperar a iniciativa:
“Essa agora! por que é que não posso estar aqui a trabalhar?”.
“Porque eu não deixo e, se quiser, vá perguntar porquê lá acima”, lançando-me um nome de um conhecido graduado da Marinha.
Saí furioso, fui inquirir da autoridade do meu histórico interlocutor e logo fui confrontado com a inevitabilidade de ter de me acomodar. O setor político a que Valente pertencia dominava essa área do arquivo da PIDE e nem os militares, pelos menos aqueles a quem eu tinha acesso, podiam contrariar a liberdade com que a sua gente se movimentava por ali.
Regressei de mãos a abanar à 2ª Divisão.
Mas, vá lá!, ao menos eu tinha tido um inesperado encontro com a História.
2 comentários:
Havia assim umas "matérias" em que a Marinha estava mais bem "colocada" na altura, também me dei conta disso ainda que em assuntos muito menos "sensíveis".
A quem interesse permita-me uma ligação dos arquivos da "Ephemera":
https://officialjpp.com/8203assassinato-do-capitatildeo-almeida-santos-abril-de-1960.html
Ontem ouvi João Soares, no papel de comentador, dizer que hoje está convencido que o 28 de Setembro não era um golpe de estado, mas o exercício do direito à manifestação.
É provável que tenha razão. Um outro General, Gomes da Costa, também deve ter querido exercer o seu direito à manifestação, foi de Braga até Lisboa, e deu o resultado que se sabe.
J. Carvalho
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