sábado, setembro 28, 2024

Primeira história do 28 de setembro de 1974


Hoje sabemos melhor o que foi o chamado “28 de Setembro” de 1974 - um primeiro grande momento de confronto público entre setores ultra-conservadores, apoiantes de um movimento para dar plenos poderes ao general Spínola, e forças políticas da esquerda, que habilmente aproveitaram o ensejo para afastar o polémico presidente da República que, no 25 de Abril, haviam sido forçadas a aceitar, para a legitimação da Revolução, e que se estava a tornar progressivamente mais incómodo. É que, à época, assistia-se a um crescente ambiente anti-25 de Abril, alimentado pelo próprio Spínola, que estava a colocar a esquerda e o Movimento das Forças Armadas à beira de um ataque de nervos.

Nessa noite, eu tinha sido destacado para uma determinada missão, juntamente com o António Reis - o líder dos milicianos da Escola Prática de Administração Militar, de onde eu era originário, embora, à época, eu fosse adjunto da Junta de Salvação Nacional, instituição que os acontecimentos desse dia iria transformar radicalmente. Íamos sob o comando de um jovem alferes “do quadro”, o Manuel Geraldes, uma generosa figura do MFA, que não vejo nem contacto há mais de 40 anos. Levávamos connosco uma “praça”, um soldado, o Moura. O Moura tinha na sua mão uma intimidante metralhadora G3. 

Estávamos a entrar para o meu carro pessoal, um Fiat 128, algures nas “Avenidas Novas”, a altas horas da noite. Por razões que não vem ao caso explicar, a tensão do momento então muito grande. Aquela noite do 28 de Setembro acabou por ser muito complexa e longa.

De súbito, uma surpresa: começa a vislumbrar-se, à distância, vinda do alto da rua, uma figura de baixa estatura, estranhamente com as mãos no ar, como se estivesse a render-se. Naquele enquadramento noturno, sem vivalma em roda, a cena era patética e infundia uma súbita insegurança. 

O soldado Moura começou a demonstrar uma perturbação agitada, com jeitos de querer afirmar a capacidade operacional de que a sua condição de barman da messe da EPAM era “sólida” garantia: num instante, põe a patilha da G-3 na posição de disparo, leva a arma ao ombro e, num derradeiro e precioso segundo, é travado pelo Geraldes com um “está quieto!” e o afastar a arma do alvo.

Aparentemente sem se aperceber do nosso nervosismo e do risco de vida que estava a correr, a personagem continuava lentamente a aproximar-se, agora já se lhe ouvindo coisas, numa voz procuradamente surda, para não alertar a vizinhança, tais como “Sou eu! O Manel”. Lentamente, pudemos identificar quem lá vinha.

Era o Manuel Serra, o sempiterno revolucionário dos golpes da Sé e de Beja, figura que, meses depois, titularia uma célebre cisão de esquerda no Partido Socialista, com a criação da Frente Socialista Popular, afastando-se de Mário Soares. 

As vidas políticas dos últimos meses haviam-nos feito, entretanto, cruzar com essa curiosa personalidade, com um brilho quase adolescente nos olhos e um sorriso cúmplice, oriunda do cristianismo radical, que há muito trazia a revolução nas veias. Nos anos 60, ainda antes do fracassado golpe de Beja, em que participou de forma ativa, o Manel havia sido protagonista de uma lendária fuga da embaixada de Cuba em Lisboa, onde estava refugiado, disfarçado de padre... 

Depois do 25 de Abril, por uma escolha que a confusão política proporcionou, Manuel Serra tinha sido nomeado o inesperado chefe de gabinete desse igualmente improvável ministro que foi o jornalista Raul Rego.

“Então, rapazes, há novidade? Vi-vos por aqui e vinha perguntar se necessitam de alguma coisa. Temos ali duas viaturas com pessoal e material, para o que der e vier. Não precisam mesmo de nada? Está tudo em ordem?”

Ficou a ideia que o Manel e os seus amigos andavam nessa noite pela cidade, numa espécie de piquete do ACP, para “avarias” de outra natureza. 

Demos os abraços da praxe e presumo que devemos ter esclarecido que “está tudo sob controlo”. No fundo, sem lho revelarmos, estávamos imensamente aliviados por se ter conseguido travar a precipitação quase trágica do Moura, o qual talvez nunca tenha entendido bem quem era aquela alma penada e meio careca, saída do escuro da rua, afinal amigalhaço dos seus superiores, a quem estivera prestes a dar um tiro. 

E lá foi o Manel de volta, pela noite, à busca da revolução que sempre lhe consumiu os dias. Dias que terminaram em 2010, quando o Manel tinha 78 anos.

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